Não
posso deixar de lembrá-la cada vez que sinto no côncavo da mão aquela meia bola
cheia, nem leve nem pesada, sem a sofisticada leveza do Molotof ou das Farófias
nem a densa gravidade duma fatia de Salame de Chocolate ou dum Bolo de Bolacha.
É
assim todas as manhãs ao pequeno-almoço, onde, sem estar, Ricardina está
presente todos os dias na minha mesa, repartindo as minhas memórias enquanto eu
divido com a Luisinha a manteiga p’las fatias e vaso o chá preto duma antiquíssima
chaleira de esmalte chinês, cujo apito adoro ouvir e não raro serve de móbil
para dar por terminada qualquer conversa de circunstância com a Maryzinha.
O cheiro
das torradas está no ar, como está o da canela na compota de abóbora, ou o da madeira na sala quando crepita na lareira, mas é o
cheiro de Ricardina, mais intuído que sentido a tolher-me o raciocínio mal
sinto, como vos disse, o côncavo da mão preenchido.
Nem
é uma questão de um qualquer fenómeno fenomenal nem de vazio existencial,
enfim, já lá vão umas décadas, cada um de nós tomou o seu rumo e refez a vida,
sem traumas, sem taras, ela foi guardar rebanhos, ou aprender a bordar, já nem me recordo, e eu meti-me a aprendiz de
pintor de automóveis, de quadros, de cenas ou de paredes, não interessa.
O pequeno-almoço
transforma-se como por artes mágicas num momento de análise do passado, uma
pausa de rememoração e em simultâneo de introspecção, pois a relembro e me
recordo tentando analisar-me e recapitular onde falhei, onde falhámos, enquanto
sem dar por isso pego na meia bola de queijo e, sopesando-a com uma mão, abro
com a outra a partir de duas patilhas, duas abas deixadas para o efeito na
colagem a vácuo e à pressão, a folha superior dessa embalagem, levantando-a e
olhando com apetite a massa cremosa do queijo com a mesma apetência ou concupiscência
com que abria o decote da Ricardina e, maravilhado, lhe olhava com deleite as
bolas brancas dos seios.
Vaso o
chá da chaleira com o mesmo cuidado e lentidão com que a ajudava a
posicionar-se de encosto à cabeceira da cama, tanto cuidado ou mais que aquele
que inda hoje tenho com o pão, o qual me obriga a persignar-me arrependido se
calha deixá-lo cair, distraído, e que num repente levanto e beijo. Assim me
ensinaram e assim procedo, faço-o já irreflectidamente, num acto intuitivo,
quase inato, um reflexo condicionado digamos, e muito longe da minha velha, maturada,
manhosa e premeditada atitude tratando-se da Ricardina.
O
respeitinho é muito bonito. Bonitinho.
Coisas
de rapaz, tempos que já lá vão, já lá vão e não voltarão mais como diz uma
célebre canção. Pego nas abas da embalagem e abro-a devagar, abre facilmente e,
mais uma vez lembro a Ricardina e os seus fechos de velcro com abertura fácil,
sempre soube quão eu embirrava com colchetes e, mal apareceu essa moderna e
maravilhosa invenção foi das primeiras a adoptá-la, nos ténis, nos blusões, nas
blusas, nos sutiãs. Mas continuando, abro a embalagem facilmente, tão
facilmente quão abria as dádivas que Ricardina me prodigalizava, primícias dizia-me
ela, frutos proibidos respondia-lhe eu, antevendo e ante saboreando as
dentadinhas.
Com a ajuda da impressão digital do polegar levantava a ponta da
casca de cera vermelha da fatia cortada ao queijo removendo-a facilmente, a fim
de a meter entre duas fatias de pão da “Padaria Primavera” das Alcáçovas, diariamente
trazido do “New Concept Coffee Shop” com a pontualíssima abnegação dum frade cartuxo
cujo convento dali se avista. Faço-o com o mesmo dedo que lhe passava nos
lábios molhados antes de os beijar, antes das dentadinhas, antes de a trincar acompanhada
duma chávena enorme de chá preto, quentíssimo que é como o aprecio, ele também
comprado em saquetas de abertura fácil. O que complica irrita-me, daí adorar o
velcro e abominar os colchetes. *
Ao
longo dos anos tentei outras, gosto de experimentar e de comparar, algumas
senão a maioria das vezes todas me pareceram iguais acabando por me manter fiel
às mesmas marcas, cliente satisfeito é cliente que volta, e eu voltei, voltei
sempre, e sendo o sabor idêntico, ou o mesmo, optei contudo pela abertura
fácil, por ser mais prático, por ser mais rápida a satisfação da gulodice, da
gula, do prazer ou do que quiserem chamar-lhe, por isso voltei sempre ao “Terra
Nostra”, aos Açores, sim, estive lá uma vez com a Ricardina, voltei lá anos, ou
décadas mais tarde com a Luisinha, a vida é assim, as lembranças são como as
cerejas e como as conversas, umas atrás das outras.
Perdi o rasto à Ricardina,
coloquei de parte o queijo Agros, o Limiano e as bolas do Pingo Doce, pela dificuldades
na abertura, impossíveis de abrir, irritantes, exasperantes, a casca de cera
vermelha inamovível, fininha, fui sempre incapaz de a destacar das bolas cremes
desses queijos, um problema irresolúvel, premente, urgente, e que só tinha sentido em toda a minha
vida quando ainda novo callhou deparar-me e debater-me com um colchete, nunca tive jeito ou fui capaz de
abrir um só colchete, daí a minha predilecção pelo fácil, pela abertura fácil,
curiosamente não me cativaram as aberturas fáceis da Ricardina, acabei casado
com a Luisinha que não tinha aberturas fáceis, não usava velcros, nunca me
facilitou a vida e se manteve sempre fechadinha e caladinha.
A
vida tem mistérios que nunca compreenderemos, não entenderemos ou não
aceitaremos. A outros sucumbiremos com a mesma facilidade com que abrimos a
carteira e puxamos do cartão de crédito. A vida fácil, o facilitismo, o
sectarismo, o amiguismo, o laxismo e o nacional porreirismo estão a
complicar-nos a vidinha até ao infinito…