quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

482 - ** NEW CONCEPT EXPOSITION, NEW CONCEPT GALLERY, NEW CONCEPT INVITATION TO NEW CONCEPT COFFEE & SHOP


Um andará pelos quarenta, o outro pouco aquém disso, disputam a pujança dentro do grupo dos “Amigos Do Pidal” e pedalam, vinte, trinta, quarenta ou mais quilómetros cada sábado, cada domingo, em cada arrancada. De semana trabucam e trocam impressões, sentados na esplanada do New Concept Coffee & Shop esgrimem pedaleiras, calções, carretos, equipamentos, rodados, óculos de vidrado espelhado, pisos, mas também riscos, cores, desenhos, esquiços, pinturas, quadros e visões, sonhos.


Foi num destes momentos que os apanhei e disparei a Polaroid, fixei a imagem, agora há que levá-la à tina do preparado e revelá-la porque vocês ainda não o sabem mas sei-o eu já, a revelação mostrou-se surpreendente, uma verdadeira revelação aliás como deverá ser qualquer surpresa que se preze. Então não foi que após tantos anos vividos na mesma cidade, sem se conhecerem, as bicicletas os aproximaram ?


Talvez não deva dizer aproximaram, talvez deva dizer ligaram, já que entre eles se descobriram ambos adeptos das mesmas cores, das mesmas tendências, do mesmo gosto pelos lápis, pelo carvão, traço, risco, desenho, pintura, até se descobrirem ambos pintores, artistas da tela e do pincel, das bisnagas, dos cavaletes, tendo-se então olhado bem e descoberto a si mesmos iguais em muitas coisas, até na cor dos olhos e, de descoberta em descoberta, chegaram à conclusão que o pai de um deles assim assado mas também o pai do outro assado e assim, p’lo que apesar de demorada a coisa acabou por ser concluída, eram irmãos ! Digo meio irmãos !


Então não foi mesmo uma revelação surpreendente ? Até eu, a quem pouca coisa já surpreende fiquei admirado, espantado, pasmado com esta constância e exuberância dos genes, dos cromossomas, do ADN, claro que depois surgiu naturalmente a pergunta; por que não contar esta linda história ? Como ? De que modo ? Arranjando uma base, um pódio onde colocar os manos em exposição e com uma pequena legenda por baixo ? Vestidos de ciclistas ? Nus ? De pincel na mão ?


É inverno, está frio, e quem viria ver dois cabeludos mal encabelados em cuecas ? A história é bonita, comovente, surpreendente e, depois de lhes conhecer as obras sugeri que ao invés deles se mostrassem os seus quadros, e daí até sondarmos o Nuno Fernandes foi um passo, há que aproveitar o espaço, o espaço e o conceito do seu café. O sorriso rasgado que nos serviu de bandeja mal lhe esboçámos a ideia tirou-nos todas as dúvidas, e a Dora ?


A Dora adora estas coisas, cores, pintura, desenhos, adora tudo isso e pintar os olhos, estava montada a marosca.


Depois foi dar aos pedais, projectar a coisa, convidar mais criaturas, artistas locais, regionais, promover o artista local, pescámos o João Concha da Rusty Place * um consagrado para âncora, ficará exposto mal se entre no café, uma escultura num ponto central p’ra deslumbrar, p’ra surpreender e criar uma centralidade, uma atmosfera, é artista conhecido e batido nestas lides, bom tipo, terapeuta, pachorrento, bonacheirão e amigo de toda a gente, comedido quanto deve ser um artista.


Além dele o José da Fonseca, também ele já rodado e com quem expositoremos de braço dado, é um apoio sólido, como se diz agora, uma mais valia considerável e nada despicienda, talvez arregimentemos a Sandra Bravo, a Helena Sousa, e sabe Deus quem mais pois a coisa já começou a andar sozinha, já está imparável e não queremos excluir ninguém, antes incluir todos, quem sabe se aparecerá a Sara Caieiro com algumas pinturas ou barros, a Sandra está lá longe no Porto e poderá não participar, é pena, haverá uma próxima, haverá mais, este é o meu modo de meter as mãos nas tintas, nas cores, na argila, no ferro, a vida só é bem vivida se nos lambuzarmos dela nã é ?


Será giro, ver como eles vêem o mundo e no-lo mostram.












domingo, 17 de dezembro de 2017

481 - O OBSERVADOR QUANDO OBSERVADO .....


  Claro que gosto de encontrar e de me encontrar com os bons amigos, de confraternizar, de falar, largar umas larachas, beber uns copos, petiscar umas coisas, mordiscar outras. Quem diz amigos diz amigas, não faço discriminação de géneros, nem sequer ao Apolinário que é todo não me toques, e eu não lhe toco, desde que fiquemos por aí tudo bem, não perde o malmequer as pétalas nem eu fico menos macho por isso.

  Por isso ou por isto, ou por aquilo, de vez em quando lá vem à baila o estranho facto de eu gostar de ler no café, e realmente gosto, e muito, é no meio do bulício que encontro a paz e provavelmente a coisa terá muito a ver com o facto de há mais de quarenta anos o meu sítio predilecto ter sido o Café Portugal, uma colmeia, um enxame, um mundo, cosmopolita como nunca mais tivemos outro, uma tertúlia, aliás dezenas de tertúlias, uma por mesa e dentro de cujo burburinho, zum zum, zoada, fumo de tabaco e cheiro a café, banhado num estável e constante murmúrio me sentia como peixe na água, ou melhor num aquário.
      
  Ali conseguia o milagre da evasão, da descontracção, do relaxamento tibetano de que me falou anos mais tarde a Constança, toda ela prenhe das influências do yoga, do flower power e de dois livros que lera na altura e estiveram na berra, “Viagem ao Mundo da Droga” e poucos anos mais tarde “Os Filhos da Droga” duas obras de referência para gente passada, gente de quem diríamos hoje cobras e lagartos, gente para quem a loja dos Porfírios, ou dos Por-fi-ri-os na baixa pombalina era o supra sumo da modernidade.

  Não vejo o que possa haver de estranho no facto de ler no café, dantes estudava, já que o silêncio me perturba imenso e nem me permite concentrar-me, como se o organismo ficasse alerta, tenso, pronto a disparar como uma mola ao mais pequeno ruído e contudo esse mesmo ruido envolve-me, embala-me, consegue que o ignore e dele me isole numa bolha, relaxe, pois bastará que todo ele se suma repentinamente para que eu então levante os olhos curioso do calar dos pássaros, todos eles emudecidos ao mesmo tempo.
  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Existe portanto uma gigantesca diferença ou poderá existir, entre o que alguns de nós acham estranho e a opinião de muitos outros, os quais advogam parecer completamente contrário. É possível, e acontece, o modo de pensar, de ver, de observar, variar de pessoa para pessoa de acordo com a sua visão da coisas, do mundo, de acordo com os seus interesses, variando até de acordo com deformações profissionais cujos reflexos induzem a ver ou a olhar só, ou sobretudo, numa determinada perspectiva. O mesmo em relação a qualquer quadro numa exposição de pintura. Aliás a própria pintura não evoluiu por fases ao acaso, o naturalismo, impressionismo, o expressionismo, o surrealismo, o abstraccionismo, o cubismo, o construtivismo e tutti quanti mais não são ke diferentes formas de ver a realidade, e de a mostrar claro…

  Não esqueçamos espécimes como o meu amigo Morais, provocador, extrapolador, nem além destas tipologias o visionário, nem o sonhador. É aqui que torna a entrar o meu amigo Apolinário, por procurar ver e mostrar precisamente o que não está à vista, no que é o oposto da Constança. O meu amigo Apolinário escreve epitáfios, uma ocupação senão curiosa pelo menos caricata mas que leva muito a sério. Ele busca, escava nas biografias dos defuntos não para garimpar o que toda a gente sabe mas o que neles seja nobre, sendo essa pepita que nos dá a ver, nos mostra, uma faceta do morto até ali ignorada ou desconhecida, o lado bom dessa alma, quantas vezes causa de espanto e de estranheza.
                         Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Porém a Constança, fotógrafa amadora com algum jeitinho para a coisa, é mais prosaica na busca desse mesmo espanto ou estranheza com que nos possa cutucar a curiosidade, ela busca e mete em destaque, exacerba o que possa ficar escondido arrancando o banal à sua quieta banalidade. Ela engrandece, ou glorifica, destaca, põe em evidência o que de outro modo ficaria esquecido, ignorado, desprezado numa perspectiva da qual ficaríamos alheados.

 À sua maneira ambos me espantam, a ele convidá-lo-ei enquanto é tempo a que me escreva o obituário, ela que me fotografe em grande plano esta carinha laroca, em especial o sinalzinho catita, herança familiar, pois é sempre por ele, é sempre por aqui que os avanços da Benedita começam, mais madura e impaciente, e outra amante genuína da fotografia cuja insistência não trava enquanto não pousa a máquina e contrariado lhe mostro um outro sinal, a operar e remover em breve por tropeçar nele a fivela do cinto e me atormentar de dores quantas vezes nem sei já, só sei que mal sinto a sua mão junto ao umbigo lhe adivinho o costumeiro pedido:
                             Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

- Deixa tirar uma fotinha para o meu álbum da ciência, deixas fofinho ?

  E eu, impaciente, disparando e repetindo eternamente a mesma ladainha:

  - OK Benedita, depois tiras, agora manda lá vir as caracoletas na chapa quente e umas cervejas bem frescas…
   
  E enquanto chupava e mastigava as caracoletas numa tasca catita ali ao Largo de Alcântara, fui-lhe confessando serem com ela os meus melhores pensamentos, aliás fazia-me sentir borboletas no estômago, ao que ela não ficou de todo indiferente tendo retrucado:
  
 - Mas afinal quais são esses pensamentos se é que os podes dizer pois nunca chegaste a dizer-me o que pensas, ou sequer quando me pensas.

  Eu quedei-me pensando, depois de muito pensar, que o melhor seria calar-me pois se começo posso cair no exagero, e mal por mal antes o desespero, mas ela, matreira, adivinhando-me o cogito;

  - Deixa-te de tretas já me conheces.

  Eu, a medo, baixinho; - Quando te sonho até te cheiro.

  - E a que cheiro eu dizes-mi ?
  
 A flores de rosa, a maçãs verdes, jasmim, e já me tens cheirado a mel, cheiros que adoro e aos quais associo sabores, a flores de rosa se sonho beijar-te o peito, a maçãs verdes se atrevido ajoelho abraçando-te p’los joelhos, lambendo-te as coxas, encostando a testa ao teu ventre quente, a jasmim se tu sim, dizes que sim e te metes a jeito, a mel porque só o mel chama as abelhas e é o principio de tudo…
   
          - És tão intenso no que dizes. Quase o sinto ao dizeres-me isso, és um homem sábio Leonardo.

         Se não houver beleza no que somos, no que fazemos e dizemos, seremos bichos, quase te sinto agarrando-me com força os cabelos quando te sonho
  
- E eu faria isso mesmo fonix.
   
E eu adoraria fazê-lo, e que o fizesses, seria por aí que adoraria começar-te, pelo cheiro, p'lo sabor acre de maçãs verdes, por esse mel da natureza, saborear-te as coxas primeiro e dar tempo a que uma flor abrisse na floreira do beiral... E gostarias ? Será que desabrocharias como uma flor matinal ?
   
           - Qual a dúvida?
   
Não é dúvida, temos que dar tempo ao desejo, torná-lo urgente, imparável enquanto, paciente, espero que prometas e cumpras,
  
 - Não sou de promessas mas se as faço cumpro.

 Abriria então docemente as pétalas para as beijar se e quando as tuas mãos, carregando o vaso, exigissem aflitas que o fizesse pois amo ser um querido e de me saber querido ao saborear-te, abrir a flor da manhã com dois dedos e beijá-la, lambê-la, sugá-la porque, como canta Ney Mato Grosso,

No fundo do tacho um gosto de fel

Mas um dia as abeias se vortam todinha

No milagre da lida, ai, o amor vira mel

E no milagre da lida, ai, o amor vira mel  *


 - És muito bom com as palavras e não precisas de Ney Mato Grosso para te ajudar. Eu não consigo competir com isso.

  
 Mas amo a música e gosto de mel como as abelhas. E não quereria uma competição, querer-te-ia a ti, beijar a tua pele branca de mármore, o mel e tu e eu…
  
 - Tu deixas - me sem palavras.
  
 - Tu inspiras-mas Benedita.

 - Ai Leonardo ai ai, tu lixas -me a cabeça.

  Talvez agora entendas por que me "furto" a ti, vida é beleza, ensinou-me a Rosa Silva.

  - Inteligente isso sim.
   
E a beleza, se não se frui, respeita-se, não se conspurca, claro que eu podia sonhar com a beleza, e até excitar-me com ela mas quem senão eu tem obrigação de estimar o objecto do meu amor ? Respect, és um rochedo.
   
- Rochedo ?

- Sim, rochedo, não percebes nada de filosofia pá, és um rochedo.
                                    Foto: Aldeia da Terra - Évora
Tu és como um penedo, falas pouco, nunca dizes nada, pouco ou nada dizes, mesmo assim sonhei contigo, eras uma fada e eu, acabrunhado, tive porém ainda tacto para, envergonhado, te soprar os cabelos da testa quadrada e nela depositar um beijo matreiro, depois nos olhos, roçando na tua face a minha face, os lábios nos teus lábios e, ruborescendo, qual aventureiro, tocar c’a ponta da língua a tua língua o que, despertando aberto o apetite, viu despertar também um seio a descoberto, oferecido coroado por doce auréola, então, toldada a minha mente, endoidecida p’la névoa, desatou-se-me a língua enlouquecida que, passeando-se nele, tornada anónima pelo denso nevoeiro dessa praia, ousou poisar com doçura no mamilo, sugado com filial ternura sim mas, abruptamente arrependida, recolheu ao palato atrapalhada quando, gizando-me na mente uma guinada, levou-me a genuflexão acalorada, pelo que me persignei e, sinceramente acanhado, aflito e embaraçado, mergulhei em ti desvairado, ébrio do teu olor, ávido do teu sabor, tendo sido então que, receoso do Senhor, arrependido acordei desse sonho lindo que tudo daria para não dar por terminado chamando-te minha.


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

480 - ROSA SILVA, ROSA SILVA QUE SAUDADES



O catraio fez-me lembrar de mim mesmo ao avançar por ali saltitando p’ra não pisar os riscos entre mosaicos. Eu devia ter onze, doze anos quando fazia as arcadas do princípio ao fim sem pisar as juntas entre as lajes de granito, coisa de rapaz.

Não me lembro quem vinha atrás dele, se alguma mãe galinha se outra qualquer mãezinha, focado que fiquei no que trazia entre mãozinhas. Talvez para guardar os rebuçados do petiz, ou bolinhos pequeninos, pétalas de rosa ressequidas com cheirinho ou pedrinhas redondinhas, calhaus de várias cores ou berlindes coloridos ! Vá-se lá saber agora p’ra que quereria ela aquela caixa de vidro, um quadrado bem quadrado, vinte de lado, vinte, como ela Rosa Silva, devendo andar por essa idade pois muitos mais não teria e me irritou ao deixar tudo aleatoriamente pendurado, quando é sabido que isto anda tudo ligado, e me encolerizou e fez chorar não teria eu mais que dezasseis, dezassete anos.

Chorei eu e a turma inteira, até uns dias depois em revolucionária reviravolta, a fazermos chorar a ela, obrigando-a a cingir-se ao universo, a ver melhor onde pendurava as coisas, a ligar tudo quanto andaria desligado, pois aquilo nem eram aulas nem eram fados, era a nossa triste sina. Fez-lhe bem, olhou-se ao espelho, meditou no nosso conselho, adoptou mesmo um escaravelho e, quando voltou ao grupelho trazendo Mendel na bagagem, provetas de cromossomas e uma alcofa de ervilhas, todos sorrimos felizes por nos sentirmos bem firmes, ela e nós c’os pés no chão, com confiança p’ra olharmos nos olhos de cada um espreitando nas íris coloridas os segredos bem guardados por doses de eumelanina.


Não sabeis quem é Rosa Silva ? Quem é ou quem foi a menina, talvez seja viva ainda, tão linda era e tão querida de todos se tornou, tão querida que nunca mais frustrações, nunca mais irritações, todos ficando sabendo da divisão os segredos, das células o enredo, de enzimas carregando chaves, de mitocôndrias e osmose, p’lo que a felicidade sentida foi finalmente de tal ordem que chegados ao H2O já resolvíamos problemas somando e subtraindo reacções, e malabarismos com moléculas cujas terminações desenhávamos com proficiência e esmero tornando-se mera brincadeira de crianças.


Por isso esqueci o catraio saltitando p’ra não pisar os riscos, esqueci a mãe galinha ou quem a seguia, a mulher do Evaristo, e me foquei na caixa de 20x20 e no desafio da Rosa Silva ao desencantar nem sei de onde vinte e tal caixas daquelas num tempo em que Lojas Dos Trezentos nem vê-las e lojas dos chineses ainda menos. Distribuiu-as por nós todos, uma a cada, cuidado pois são mui frágeis, iremos fazer uma experiência da china que posteriormente reportarão em relatório, p’ra nota naturalmente. Comigo foi um milagre, até um feijoeiro lá cresceu e só aos céus não subiu por a caixa o ter abafado. Como todos deveis saber os feijoeiros só param de crescer nas nuvens, e se não crescem cuidado, ou quem os semeia envelheceu, envileceu, ou passou a adulto e esqueceu as maravilhas prometidas p’la Rosa Silva e cumpridas dentro daqueles cubos mágicos.


Só não viu quem não quis ver, cada caixa colocada c’a abertura p’ra baixo no jardim ou quintal de cada um, ou onde cada um pôde e quis, e depois, não imaginar mas ver, com estes olhos que a hereditariedade pintou, c’os olhos que os genes coloriram, os dominantes ou os recessivos, e durante um mês inteirinho c‘a lupa que alguém comprou, observei e registei num caderninho alterações, ocorrências, transformações tidas e havidas nessa caixinha de surpresas que tanto nos sensibilizou para os mistérios da flora e fauna, do ambiente e seus precários, periclitantes ou sensíveis equilíbrios, tudo apontado com amor num caderninho verdinho, porque aquela professora de ciências que ensinámos a professar o pedia e exigia e, linda como era quem iria ousar desobedecer ou não dar-lhe motivos para uma boa nota ter ? Quem ?

Eu fui da minhoca ao grilo, do cogumelo a outros fungos, vi ervas brotar, raízes avançar, escaravelhos passar, besouros esvoaçar, centopeias centopar, lagartixas lagartar, sem contar com as aranhas, aranhóis e aranhiços que quebraram em mim o enguiço. Olhando aquela caixa e seu microscópico mundo passei a ver de repente a ténue teia ambiental em que todos nos movemos e quanto estamos minando o frágil tecido que a cerze. A civilização está perdida, ou muda de rumo ou será engolida por si mesma, pelo monstro que criou. Tudo isto nos ensinou a simpática e linda Rosa Silva somente c'uma caixa que emprestou. Nem disse nada, nem falou, limitou-se a ouvir cada um de nós lendo o relatório pessoal e deixando a turma intervir, compreender, explicar, agir e interagir, fez-nos investigadores, críticos de nós próprios, exigentes, responsáveis, competentes. Então já não as coisas no ar como de início, em que tudo nos parecia atado com arames e ninguém tinha noção do que quer que ela dissesse ou sequer onde estivéssemos ou se situava a acção.

Após tuti bien entendido houve vagar p’ra uma incursão não prevista ao universo quântico, aos átomos, à fissão, à fusão, e quanto mais se cingia ao programa mais exigíamos mostrasse e desvendasse o mundo e o universo, a frente e o verso, por isso eu pecador me confesso sucumbi à sapiência e beleza da Rosa Silva, eu e a turma toda. Foi no ano em que descobrimos não terem as mulheres só mamas, pernas e um palminho de cara, têm também sabedoria, inteligência, são interessantes uma hora, duas horas, mas também por uma vida. Tudo isto me ensinou aquela estranha e jovem mulher que me revelou a maravilha do deslumbramento, me ensinou a ver as coisas, a descobrir nelas outras coisas, ensinou-me dependência, independência, interdependência, fotossíntese, simbiose e parasitismo. Ah ! Surpresa ! E osmose, e o mal e principio de todo o bem que acabámos por encontrar. Não há melhor que encarreirar, achar o caminho, perceber quão o percurso, o ambiente, a vida e a democracia são frágeis equilíbrios dificílimos de manter e a cuidar, com amor, pois também esse nos ensinou, amor às coisas, à natureza, à beleza, à estética, à ética, como não acabar amando-a a ela ?

Torres Vedras diziam os concursos, Torres Vedras ou Bombarral, não sei precisar já, sei que chorámos, sei não haver nada mais triste e lamentável que uma turma inteira em lágrimas, disfarçando os olhos envergonhados por esse sentimento de perda que inda lembro com ternura.

Cresci, percorrer as arcadas sem pisar os riscos é agora dificílimo senão impossível por ter a passada maior, mas jamais esqueci a brincadeira, como não esqueci a frágil caixa 20x20, não era maior que isso, e nem estou certo de ter sido Torres Vedras ou Torres Novas, ou Bombarral ou Rio Maior, onde num ou noutro ano tudo e todos vomitavam ameaças, lançando a mão a veras mocas, estaria ela lá ? Ter-lhe-ão partido as caixas todas ?

Eu guardei uma, no coração. 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

479 - EU SÓ QUERIA VER-LHE A AURA, A ALMA

                                                  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora


Tenho uma amiga Maria que estudou sociologia mas detesta socializar, e outra mui popular a quem pura e simplesmente aborrece conversar, mas também tenho uma outra que por aqui costuma entrar  atrelada a dois rebentos, a quem vivamente aviso p’ra não pisarem o risco.

Quando isto se me depara ergo o copo até aos olhos, observo bem o soluto e, ensaiando adivinhá-lo, reparti-lo, analisá-lo, tento encontrar as respostas p’ra muitas interrogações que cogito mas não esbulho. 

Como o fiz, como o faço ou como o devo fazer ?

simplicíssimo, espraio numa caixa de Petri um pouquito, coloco no microscópio e experimento ver-lhe a aura. São tentativas seguidas, só desejava olhar-lhe a alma, a essência, valência intrínseca cuja interpretação implícita se obtém mantendo a pressão, a temperatura, a energia, os ácidos e as bases, catalisador e solvente, não descurando a cinética, tudo em perfeito equilíbrio porque as interrogações são muitas e a solução um mistério a contragosto, porque até ser decomposto tal soluto não mostrou mais que, afinal, ser uma bola de cristal coberta de múltiplos espelhos reflexo do que vai no seu olhar, ou seja, do essencial.

E mesmo após tanta análise que foi que eu vi afinal ? Espelhos, milhares de imagens, não tangenciais, transversais ou esbatidas, antes surpreendentemente invertidas e em quantidades tais que animavam dois arraiais e a mim, que nem sou fotografista, antes entomologista, mais pareceram borboletas, variegadas, coloridas, não guardadas em gavetas mas em dois sites* catitas numa tal arrumação, quantidade e profusão que abismado fiquei quando todas elas mirei, produto do seu olhar, produto do seu canhão, alvos de prémios e honras, todavia banhadas em tamanho eclectismo, tão profundo e aleatório que me impediu de ajuizar por ser tão grande o reportório.

Sinto-me ali meio perdido cada vez que por lá me perco, como em procissão onde, não suportando a triste cruz, arraste vera questão. Há uma série de dias e mirando essas imagens tento entender, tento ver, quão se vê nelas mostrado e sobretudo perceber a subtil unidade entre si, digo entre elas, ou até por quê aquelas e não outras, também belas. Imagino-me tentando espreitar p’lo canudo do canhão, almejando ver eu também quanto ela vê, ouvir as imagens falando p'lo seu olhar, contando por si as histórias que ela desse peculiar modo se proporia contar.  


            Debalde, mesmo munido de rede caço eu a custo borboletas, mas apreendo as pessoas como tendo elas etiquetas, apanho-as pelo perfume ou aftershave, p’lo que lêem, calçam, vestem, pelos modos, p’las atitudes e acções, até p’lo arrumar do carro, pelo pegar no cigarro, p’lo telemóvel, p’la gravata, unhas, corte de cabelo, pela dor de cotovelo, pelo que dizem e escondem, pelas palavras que soltam e inda melhor pelas que calam. A linguagem é um mapa e quer gritem quer se calem, tudo serve e dispensa a lupa, desnudam-se perante mim, mas este mistério falado e quiçá tão premiado, p'lo contrário não tira nem os botins.

E foi por isso, ou foi assim que fui parar a pessoal página numa rede social** onde sim, existe unidade entre imagens, uma difusa coerência, uma opção ou preferência que me permitiu espreitar e ver o fundo ao seu olhar, mas então mais confuso inda fiquei pois contra tudo que eu esperava dessa panóplia de imagens, contra tudo que eu previra, conjecturara, imaginara, essas imagens tão lindas voltaram a acordar-me, a trazer-me a este país donde em sonhos me pisgara.
  
                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

       E lá estava novamente retratado o abandono, abandono como desígnio, a renúncia a fazer mais e melhor, a alienação de tudo a estranhos, a desistência da luta, a negligência cultivada, o desprezo p’la competência, tudo retratado a preceito e a que nem faltava ar bucólico. Era o perfil singelo e puro, quasi diria ingénuo, dos ignorantes inocentes que povoam este reino, reino nostálgico e triste, saudoso do que abomina, afastado da verdade, banhado em melancolia, tudo isso eu via, e doía, um país em estado caótico, uma sociedade informe, povo confuso e indolente. Tudo presente nessas fotos tão marcantes, a irresponsabilidade latente, o respeito desregrado, o território desordenado, o dissoluto poder, a depravação como doutrina e mestra da corrupção, sim eu vi com estes olhos, a depredação dum país e só não vi, coragem de navegante ou valentia de antanho. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Pesaroso saí de mim e, como náufrago agarrado a tabua de salvação, me agarrei eu aos mestres  sábios em busca de explicação, por nem saber já o que via e duvidar do que sentia pois não ficara indiferente, sentira mesmo um arrepio. Nem sei se toda a gente sente, eu senti e estranhei, e recolhi-me, melhor seria dizer refugiei-me no meu próprio pensamento, meditando e comparando os mestres e a mestria, interrogações e respostas que aqui e ali ouvia e lia, abraçando as que intuía ou, se olhando de novo atentamente cada nova fotografia a resumia ao que encantada ou deslumbrada a mente dela inferia.

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Será um estranho encantamento ou mero truque de magia, quem sabe se dualismo resultante da introspecção ou inspecção do que se observa, a verdade é que nos podem causar estranheza e ela, estranheza, por sua vez induzir-nos p’los seus efeitos milagrosos a ver num qualquer objecto o que mais ninguém nele vê, isto é a interpretar, ou a consentir-nos sobre eles a ajustar e reajustar aspectos inexprimíveis da privacidade e intimidade dos ditos que não pretendamos mostrar mas simultaneamente procuramos, todos possam observar.

Walter Pater e Matthew Arnold garantiriam haver ali aparente desinteresse que contudo se isolado, circunscrito ao que nele é estranho, a estranheza e, catapultando-a do seu genérico para um patamar superior, capaz de suscitar espanto, e portanto vir a ser ponto de partida e génese dum feliz acto criativo. Encontrada a novidade, haveria móbil p'ra disparar, através do enquadramento, do isolamento e exaltação do pormenor, do conceito enquadrado ou demarcado do contexto.

Não duvido existir associada àquele olho espreitando a objectiva, uma mente progressiva cuja arrumação de neurónios, conexões, axónios e sinapses seja estruturalmente diferente de todos nós vulgares mortais, embora nunca possa ou possamos saber ou perceber como acontece o fenómeno, por isso alguns têm “olho” mas não o têm os demais.

Isto é coisa que o tal Matthew Arnold o “olhista”, sabe existir para além do prazer dum clic, dum flash, o prazer advindo da capacidade de ver mais, ver de outro modo. Como saberá Northop Frye, o mundo conceptual assim criado interage com outros universos conceptuais ligados à mesma imagem num universo que a todos se mostra mas onde nem todos são bafejados com a capacidade de perceber ou percepcionar na totalidade. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

A realidade é um prisma multifacetado, um caleidoscópio ante o qual agitando a mente, esta desperta e veremos a perspectiva mudando radicalmente. Será por essa causa, esse motivo ou juízo que, dando razão a Oscar Wilde, não devemos encerrar o significado do exposto, observado ou mostrado, nem tentar perceber a intenção do “olhista” a fim de que o objecto exposto não mumifique numa única ideia de apreensão ou percepção, mas se mantenha aberto a mil interpretações/concepções, pois somente assim um qualquer objecto de arte pertencerá a todos quantos nele se revejam ou com ele se identifiquem. Tal qual como cada cabeça sua sentença, também aqui cada olhar cada resolução, ou revelação, sendo embora o objecto semente e fruto da mesma diversidade, único, total.

                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Hugo Von Hofmannsthal como bom “olhista” que foi, atribuía a tudo que existe uma realidade própria, imanente, afirmando-se rodeado de um mundo de reacções deliciosas e infindável, merecedor das suas atenções. Afirmava-o ainda muito antes da vulgarização da fotografia, Hofmannsthal (1874-1929) que foi fotógrafo e retratista, um olhista, sabia bem o que dizia. Lembro que o “Calótipo, ou Talbótipo” o primeiro processo aceitável de fotografia, fora inventado por William Fox Talbot em 1836 e registado na Royal Society de Londres em1841, poucos anos antes do nascimento de Hofmannsthal.

Talvez tudo isto explique por que Oscar Wilde, poeta e dramaturgo, homem de rara sensibilidade, tivesse sido fascinado sobretudo p'la atitude contemplativa do observador, do retratista, do fotógrafo, da sua luta pelo melhor ângulo, a melhor luz, e, uma vez atingido o vício, p’lo estado de excitação atingido inda que imperceptível para nós, em linguagem clara absorvido p'lo êxtase vivido. Quem ama a fotografia por ela dará ou se sujeitará a tudo.

Tudo tem uma explicação. Isto anda tudo ligado…






Bibliografia consultada para apoio a este texto:

Pedreira, Frederico; Uma Aproximação à Estranheza, Imprensa Nacional, Lx 2017.

Hugo Von Hofmannsthal,  “A Carta de Lord Chandos”  (trad de João Barrento) Belo Horizonte Edições Chão da Feira 2012.

Matthew Arnold,  The Function of Criticism at the Present Time by Matthew Arnold (reprinted from ”Essays in criticism”)  and An Essay on style, by Walter Pater (reprinted from “Appreciations”), New York: Macmillan and Company  1895, pag 39. trad. Frederico Pedreira.

Northop Frye, Anatomy of Criticism: Four Essays, Princeton  (New Jersey), Princeton Universsity Press, 1973, pp 17-18. Trad.  Frederico Pedreira.

Oscar Wilde,  Intenções;  Quatro  Ensaios sobre Estética (trad.  António M. Feijó),  L isboa Edições Cotovia, 1992, pp. 79-171.

Walter Pater, The Renaissance: Studies in Art and Poetry, New York, Dover Publications, 2005. Trad.  Frederico Pedreira.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

....................... ROSÁCEA LILIÁCEA ........................

Liliaceae - lírio


   Liliácea
ROSÁCEA LILIÁCEA

Vi-a como vislumbre, ou ilusão
c’o vestido decotado até aos pés
a mão deslizando surda pelo corrimão.

No carrilhão terna valsa soava
eu resguardei-me, matreiro, no vão das escadas
mirando-lhe o vão das pernas nacaradas
era uma escada curva, em mármore perlino.

Espanto foi o peito oleoso, o olor de amêndoas
e no cerne dele o vale paraíso, Valparaíso ?
amparando um pendente, dois cílios protusos
aureolados, de ébano sensível,  num peito cheio e íntimo.

Íntimo do tronco mãe, da árvore genealógica
assente em duas colunas marmóreas, firmes
robustas como aço, e no regaço rosas
rosas senhor, rosas do jardim de Fernão Pó.

E ao vê-la descer altiva e só
balançando o pendente, o peito arfando-lhe
revi a minha escala de valores, o meu biótipo
travei nefando propósito e pior demanda.

Contive-me sonhando-a
de maçãs ao peito
rosas no regaço, rosas
o vértice um lírio...

Flower of Georgia O'Keeffe