O
catraio fez-me lembrar de mim mesmo ao avançar por ali saltitando p’ra não
pisar os riscos entre mosaicos. Eu devia ter onze, doze anos quando fazia as
arcadas do princípio ao fim sem pisar as juntas entre as lajes de granito,
coisa de rapaz.
Não
me lembro quem vinha atrás dele, se alguma mãe galinha se outra qualquer
mãezinha, focado que fiquei no que trazia entre mãozinhas. Talvez para guardar os
rebuçados do petiz, ou bolinhos pequeninos, pétalas de rosa ressequidas com
cheirinho ou pedrinhas redondinhas, calhaus de várias cores ou berlindes
coloridos ! Vá-se lá saber agora p’ra que quereria ela aquela caixa de vidro,
um quadrado bem quadrado, vinte de lado, vinte, como ela Rosa Silva, devendo
andar por essa idade pois muitos mais não teria e me irritou ao deixar tudo
aleatoriamente pendurado, quando é sabido que isto anda tudo ligado, e me
encolerizou e fez chorar não teria eu mais que dezasseis, dezassete anos.
Chorei
eu e a turma inteira, até uns dias depois em revolucionária reviravolta, a
fazermos chorar a ela, obrigando-a a cingir-se ao universo, a ver melhor onde
pendurava as coisas, a ligar tudo quanto andaria desligado, pois aquilo nem
eram aulas nem eram fados, era a nossa triste sina. Fez-lhe bem, olhou-se ao
espelho, meditou no nosso conselho, adoptou mesmo um escaravelho e, quando
voltou ao grupelho trazendo Mendel na bagagem, provetas de cromossomas e uma alcofa de ervilhas, todos sorrimos felizes por nos sentirmos bem firmes, ela e nós
c’os pés no chão, com confiança p’ra olharmos nos olhos de cada um espreitando nas íris coloridas os segredos bem guardados por doses de eumelanina.
Não
sabeis quem é Rosa Silva ? Quem é ou quem foi a menina, talvez seja viva ainda,
tão linda era e tão querida de todos se tornou, tão querida que nunca mais
frustrações, nunca mais irritações, todos ficando sabendo da divisão os
segredos, das células o enredo, de enzimas carregando chaves, de mitocôndrias e
osmose, p’lo que a felicidade sentida foi finalmente de tal ordem que chegados
ao H2O já resolvíamos problemas somando e subtraindo reacções, e malabarismos com moléculas cujas terminações desenhávamos com proficiência e esmero tornando-se mera
brincadeira de crianças.
Por
isso esqueci o catraio saltitando p’ra não pisar os riscos, esqueci a mãe galinha
ou quem a seguia, a mulher do Evaristo, e me foquei na caixa de 20x20 e no
desafio da Rosa Silva ao desencantar nem sei de onde vinte e tal caixas
daquelas num tempo em que Lojas Dos Trezentos nem vê-las e lojas dos chineses ainda
menos. Distribuiu-as por nós todos, uma a cada, cuidado pois são mui frágeis,
iremos fazer uma experiência da china que posteriormente reportarão em
relatório, p’ra nota naturalmente. Comigo foi um milagre, até um feijoeiro lá cresceu
e só aos céus não subiu por a caixa o ter abafado. Como todos deveis saber os
feijoeiros só param de crescer nas nuvens, e se não crescem cuidado, ou quem os
semeia envelheceu, envileceu, ou passou a adulto e esqueceu as maravilhas
prometidas p’la Rosa Silva e cumpridas dentro daqueles cubos mágicos.
Só
não viu quem não quis ver, cada caixa colocada c’a abertura p’ra baixo no
jardim ou quintal de cada um, ou onde cada um pôde e quis, e depois, não
imaginar mas ver, com estes olhos que a hereditariedade pintou, c’os olhos que
os genes coloriram, os dominantes ou os recessivos, e durante um mês inteirinho
c‘a
lupa que alguém comprou, observei e registei num caderninho alterações,
ocorrências, transformações tidas e havidas nessa caixinha de surpresas que
tanto nos sensibilizou para os mistérios da flora e fauna, do ambiente e seus
precários, periclitantes ou sensíveis equilíbrios, tudo apontado com amor num
caderninho verdinho, porque aquela professora de ciências que ensinámos a
professar o pedia e exigia e, linda como era quem iria ousar desobedecer ou não
dar-lhe motivos para uma boa nota ter ? Quem ?
Eu
fui da minhoca ao grilo, do cogumelo a outros fungos, vi ervas brotar, raízes
avançar, escaravelhos passar, besouros esvoaçar, centopeias centopar,
lagartixas lagartar, sem contar com as aranhas, aranhóis e aranhiços que
quebraram em mim o enguiço. Olhando aquela caixa e seu microscópico mundo passei
a ver de repente a ténue teia ambiental em que todos nos movemos e quanto
estamos minando o frágil tecido que a cerze. A civilização está perdida, ou
muda de rumo ou será engolida por si mesma, pelo monstro que criou. Tudo isto
nos ensinou a simpática e linda Rosa Silva somente c'uma caixa que emprestou. Nem disse nada, nem falou, limitou-se a ouvir cada um de nós lendo o
relatório pessoal e deixando a turma intervir, compreender, explicar, agir e
interagir, fez-nos investigadores, críticos de nós próprios, exigentes,
responsáveis, competentes. Então já não as coisas no ar como de início, em que
tudo nos parecia atado com arames e ninguém tinha noção do que quer que ela
dissesse ou sequer onde estivéssemos ou se situava a acção.
Após
tuti bien entendido houve vagar p’ra uma incursão não prevista ao universo
quântico, aos átomos, à fissão, à fusão, e quanto mais se cingia ao programa
mais exigíamos mostrasse e desvendasse o mundo e o universo, a frente e o
verso, por isso eu pecador me confesso sucumbi à sapiência e beleza da Rosa
Silva, eu e a turma toda. Foi no ano em que descobrimos não terem as mulheres só mamas, pernas e um palminho de cara, têm também sabedoria, inteligência, são
interessantes uma hora, duas horas, mas também por uma vida. Tudo isto me
ensinou aquela estranha e jovem mulher que me revelou a maravilha do
deslumbramento, me ensinou a ver as coisas, a descobrir nelas outras coisas,
ensinou-me dependência, independência, interdependência, fotossíntese, simbiose e
parasitismo. Ah ! Surpresa ! E osmose, e o mal e principio de todo o bem que acabámos por
encontrar. Não há melhor que encarreirar, achar o caminho, perceber quão o
percurso, o ambiente, a vida e a democracia são frágeis equilíbrios dificílimos
de manter e a cuidar, com amor, pois também esse nos ensinou, amor às coisas, à
natureza, à beleza, à estética, à ética, como não acabar amando-a a ela ?
Torres
Vedras diziam os concursos, Torres Vedras ou Bombarral, não sei precisar já,
sei que chorámos, sei não haver nada mais triste e lamentável que uma turma
inteira em lágrimas, disfarçando os olhos envergonhados por esse sentimento de
perda que inda lembro com ternura.
Cresci,
percorrer as arcadas sem pisar os riscos é agora dificílimo senão impossível por
ter a passada maior, mas jamais esqueci a brincadeira, como não esqueci a frágil
caixa 20x20, não era maior que isso, e nem estou certo de ter sido Torres
Vedras ou Torres Novas, ou Bombarral ou Rio Maior, onde num ou noutro ano tudo e todos vomitavam ameaças, lançando a mão a veras mocas, estaria ela lá ?
Ter-lhe-ão partido as caixas todas ?
Eu
guardei uma, no coração.