Claro
que gosto de encontrar e de me encontrar com os bons amigos, de confraternizar,
de falar, largar umas larachas, beber uns copos, petiscar umas coisas,
mordiscar outras. Quem diz amigos diz amigas, não faço discriminação de
géneros, nem sequer ao Apolinário que é todo não me toques, e eu não lhe toco,
desde que fiquemos por aí tudo bem, não perde o malmequer as pétalas nem eu
fico menos macho por isso.
Por
isso ou por isto, ou por aquilo, de vez em quando lá vem à baila o estranho
facto de eu gostar de ler no café, e realmente gosto, e muito, é no meio do
bulício que encontro a paz e provavelmente a coisa terá muito a ver com o facto
de há mais de quarenta anos o meu sítio predilecto ter sido o Café Portugal,
uma colmeia, um enxame, um mundo, cosmopolita como nunca mais tivemos outro,
uma tertúlia, aliás dezenas de tertúlias, uma por mesa e dentro de cujo
burburinho, zum zum, zoada, fumo de tabaco e cheiro a café, banhado num estável
e constante murmúrio me sentia como peixe na água, ou melhor num aquário.
Ali
conseguia o milagre da evasão, da descontracção, do relaxamento tibetano de que me falou
anos mais tarde a Constança, toda ela prenhe das influências do yoga, do flower
power e de dois livros que lera na altura e estiveram na berra, “Viagem ao
Mundo da Droga” e poucos anos mais tarde “Os Filhos da Droga” duas obras de
referência para gente passada, gente de quem diríamos hoje cobras e lagartos,
gente para quem a loja dos Porfírios, ou dos Por-fi-ri-os na baixa pombalina
era o supra sumo da modernidade.
Não
vejo o que possa haver de estranho no facto de ler no café, dantes estudava, já
que o silêncio me perturba imenso e nem me permite concentrar-me, como se o
organismo ficasse alerta, tenso, pronto a disparar como uma mola ao mais
pequeno ruído e contudo esse mesmo ruido envolve-me, embala-me, consegue que o ignore
e dele me isole numa bolha, relaxe, pois bastará que todo ele se suma
repentinamente para que eu então levante os olhos curioso do calar dos
pássaros, todos eles emudecidos ao mesmo tempo.
Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora
Existe
portanto uma gigantesca diferença ou poderá existir, entre o que alguns de nós
acham estranho e a opinião de muitos outros, os quais advogam parecer
completamente contrário. É possível, e acontece, o modo de pensar, de ver, de
observar, variar de pessoa para pessoa de acordo com a sua visão da coisas, do mundo,
de acordo com os seus interesses, variando até de acordo com deformações
profissionais cujos reflexos induzem a ver ou a olhar só, ou sobretudo, numa
determinada perspectiva. O mesmo em relação a qualquer quadro numa exposição de
pintura. Aliás a própria pintura não evoluiu por fases ao acaso, o naturalismo,
impressionismo, o expressionismo, o surrealismo, o abstraccionismo, o cubismo,
o construtivismo e tutti quanti mais não são ke diferentes formas de ver a
realidade, e de a mostrar claro…
Não
esqueçamos espécimes como o meu amigo Morais, provocador, extrapolador, nem
além destas tipologias o visionário, nem o sonhador. É aqui que torna a entrar
o meu amigo Apolinário, por procurar ver e mostrar precisamente o que não está
à vista, no que é o oposto da Constança. O meu amigo Apolinário escreve
epitáfios, uma ocupação senão curiosa pelo menos caricata mas que leva muito a
sério. Ele busca, escava nas biografias dos defuntos não para garimpar o que
toda a gente sabe mas o que neles seja nobre, sendo essa pepita que nos dá a
ver, nos mostra, uma faceta do morto até ali ignorada ou desconhecida, o lado
bom dessa alma, quantas vezes causa de espanto e de estranheza.
Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora
Porém
a Constança, fotógrafa amadora com algum jeitinho para a coisa, é mais prosaica
na busca desse mesmo espanto ou estranheza com que nos possa cutucar a
curiosidade, ela busca e mete em destaque, exacerba o que possa ficar escondido
arrancando o banal à sua quieta banalidade. Ela engrandece, ou glorifica,
destaca, põe em evidência o que de outro modo ficaria esquecido, ignorado,
desprezado numa perspectiva da qual ficaríamos alheados.
À
sua maneira ambos me espantam, a ele convidá-lo-ei enquanto é tempo a que me
escreva o obituário, ela que me fotografe em grande plano esta carinha laroca,
em especial o sinalzinho catita, herança familiar, pois é sempre por ele, é
sempre por aqui que os avanços da Benedita começam, mais madura e impaciente, e
outra amante genuína da fotografia cuja insistência não trava enquanto não
pousa a máquina e contrariado lhe mostro um outro sinal, a operar e remover em
breve por tropeçar nele a fivela do cinto e me atormentar de dores quantas
vezes nem sei já, só sei que mal sinto a sua mão junto ao umbigo lhe adivinho o
costumeiro pedido:
Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora
-
Deixa tirar uma fotinha para o meu álbum da ciência, deixas fofinho ?
E
eu, impaciente, disparando e repetindo eternamente a mesma ladainha:
- OK
Benedita, depois tiras, agora manda lá vir as caracoletas na chapa quente e
umas cervejas bem frescas…
E
enquanto chupava e mastigava as caracoletas numa tasca catita ali ao Largo de
Alcântara, fui-lhe confessando serem com ela os meus melhores pensamentos,
aliás fazia-me sentir borboletas no estômago, ao que ela não ficou de todo
indiferente tendo retrucado:
-
Mas afinal quais são esses pensamentos se é que os podes dizer pois nunca
chegaste a dizer-me o que pensas, ou sequer quando me pensas.
Eu
quedei-me pensando, depois de muito pensar, que o melhor seria calar-me pois se
começo posso cair no exagero, e mal por mal antes o desespero, mas ela,
matreira, adivinhando-me o cogito;
-
Deixa-te de tretas já me conheces.
Eu, a medo, baixinho; - Quando te sonho até te cheiro.
- E
a que cheiro eu dizes-mi ?
A
flores de rosa, a maçãs verdes, jasmim, e já me tens cheirado a mel, cheiros
que adoro e aos quais associo sabores, a flores de rosa se sonho beijar-te o
peito, a maçãs verdes se atrevido ajoelho abraçando-te p’los joelhos,
lambendo-te as coxas, encostando a testa ao teu ventre quente, a jasmim se tu
sim, dizes que sim e te metes a jeito, a mel porque só o mel chama as abelhas e
é o principio de tudo…
Se não houver beleza no que
somos, no que fazemos e dizemos, seremos bichos, quase te sinto agarrando-me
com força os cabelos quando te sonho
- E
eu faria isso mesmo fonix.
E eu
adoraria fazê-lo, e que o fizesses, seria por aí que adoraria começar-te, pelo
cheiro, p'lo sabor acre de maçãs verdes, por esse mel da natureza, saborear-te
as coxas primeiro e dar tempo a que uma flor abrisse na floreira do beiral... E
gostarias ? Será que desabrocharias como uma flor matinal ?
- Qual a dúvida?
Não
é dúvida, temos que dar tempo ao desejo, torná-lo urgente, imparável enquanto,
paciente, espero que prometas e cumpras,
-
Não sou de promessas mas se as faço cumpro.
Abriria
então docemente as pétalas para as beijar se e quando as tuas mãos, carregando
o vaso, exigissem aflitas que o fizesse pois amo ser um querido e de me saber
querido ao saborear-te, abrir a flor da manhã com dois dedos e beijá-la,
lambê-la, sugá-la porque, como canta Ney Mato Grosso,
No
fundo do tacho um gosto de fel
Mas
um dia as abeias se vortam todinha
No
milagre da lida, ai, o amor vira mel
E no
milagre da lida, ai, o amor vira mel *
- És
muito bom com as palavras e não precisas de Ney Mato Grosso para te ajudar. Eu
não consigo competir com isso.
Mas
amo a música e gosto de mel como as abelhas. E não quereria uma competição,
querer-te-ia a ti, beijar a tua pele branca de mármore, o mel e tu e eu…
- Tu
deixas - me sem palavras.
- Tu
inspiras-mas Benedita.
- Ai
Leonardo ai ai, tu lixas -me a cabeça.
Talvez
agora entendas por que me "furto" a ti, vida é beleza, ensinou-me a
Rosa Silva.
-
Inteligente isso sim.
E a
beleza, se não se frui, respeita-se, não se conspurca, claro que eu podia
sonhar com a beleza, e até excitar-me com ela mas quem senão eu tem obrigação
de estimar o objecto do meu amor ? Respect, és um rochedo.
-
Rochedo ?
- Sim,
rochedo, não percebes nada de filosofia pá, és um rochedo.
Foto: Aldeia da Terra - Évora
Tu
és como um penedo, falas pouco, nunca dizes nada, pouco ou nada dizes, mesmo
assim sonhei contigo, eras uma fada e eu, acabrunhado, tive porém ainda tacto
para, envergonhado, te soprar os cabelos da testa quadrada e nela depositar um
beijo matreiro, depois nos olhos, roçando na tua face a minha face, os lábios
nos teus lábios e, ruborescendo, qual aventureiro, tocar c’a ponta da língua a
tua língua o que, despertando aberto o apetite, viu despertar também um seio a
descoberto, oferecido coroado por doce auréola, então, toldada a minha mente,
endoidecida p’la névoa, desatou-se-me a língua enlouquecida que, passeando-se
nele, tornada anónima pelo denso nevoeiro dessa praia, ousou poisar com doçura
no mamilo, sugado com filial ternura sim mas, abruptamente arrependida,
recolheu ao palato atrapalhada quando, gizando-me na mente uma guinada,
levou-me a genuflexão acalorada, pelo que me persignei e, sinceramente
acanhado, aflito e embaraçado, mergulhei em ti desvairado, ébrio do teu olor,
ávido do teu sabor, tendo sido então que, receoso do Senhor, arrependido
acordei desse sonho lindo que tudo daria para não dar por terminado chamando-te
minha.