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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

479 - EU SÓ QUERIA VER-LHE A AURA, A ALMA

                                                  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora


Tenho uma amiga Maria que estudou sociologia mas detesta socializar, e outra mui popular a quem pura e simplesmente aborrece conversar, mas também tenho uma outra que por aqui costuma entrar  atrelada a dois rebentos, a quem vivamente aviso p’ra não pisarem o risco.

Quando isto se me depara ergo o copo até aos olhos, observo bem o soluto e, ensaiando adivinhá-lo, reparti-lo, analisá-lo, tento encontrar as respostas p’ra muitas interrogações que cogito mas não esbulho. 

Como o fiz, como o faço ou como o devo fazer ?

simplicíssimo, espraio numa caixa de Petri um pouquito, coloco no microscópio e experimento ver-lhe a aura. São tentativas seguidas, só desejava olhar-lhe a alma, a essência, valência intrínseca cuja interpretação implícita se obtém mantendo a pressão, a temperatura, a energia, os ácidos e as bases, catalisador e solvente, não descurando a cinética, tudo em perfeito equilíbrio porque as interrogações são muitas e a solução um mistério a contragosto, porque até ser decomposto tal soluto não mostrou mais que, afinal, ser uma bola de cristal coberta de múltiplos espelhos reflexo do que vai no seu olhar, ou seja, do essencial.

E mesmo após tanta análise que foi que eu vi afinal ? Espelhos, milhares de imagens, não tangenciais, transversais ou esbatidas, antes surpreendentemente invertidas e em quantidades tais que animavam dois arraiais e a mim, que nem sou fotografista, antes entomologista, mais pareceram borboletas, variegadas, coloridas, não guardadas em gavetas mas em dois sites* catitas numa tal arrumação, quantidade e profusão que abismado fiquei quando todas elas mirei, produto do seu olhar, produto do seu canhão, alvos de prémios e honras, todavia banhadas em tamanho eclectismo, tão profundo e aleatório que me impediu de ajuizar por ser tão grande o reportório.

Sinto-me ali meio perdido cada vez que por lá me perco, como em procissão onde, não suportando a triste cruz, arraste vera questão. Há uma série de dias e mirando essas imagens tento entender, tento ver, quão se vê nelas mostrado e sobretudo perceber a subtil unidade entre si, digo entre elas, ou até por quê aquelas e não outras, também belas. Imagino-me tentando espreitar p’lo canudo do canhão, almejando ver eu também quanto ela vê, ouvir as imagens falando p'lo seu olhar, contando por si as histórias que ela desse peculiar modo se proporia contar.  


            Debalde, mesmo munido de rede caço eu a custo borboletas, mas apreendo as pessoas como tendo elas etiquetas, apanho-as pelo perfume ou aftershave, p’lo que lêem, calçam, vestem, pelos modos, p’las atitudes e acções, até p’lo arrumar do carro, pelo pegar no cigarro, p’lo telemóvel, p’la gravata, unhas, corte de cabelo, pela dor de cotovelo, pelo que dizem e escondem, pelas palavras que soltam e inda melhor pelas que calam. A linguagem é um mapa e quer gritem quer se calem, tudo serve e dispensa a lupa, desnudam-se perante mim, mas este mistério falado e quiçá tão premiado, p'lo contrário não tira nem os botins.

E foi por isso, ou foi assim que fui parar a pessoal página numa rede social** onde sim, existe unidade entre imagens, uma difusa coerência, uma opção ou preferência que me permitiu espreitar e ver o fundo ao seu olhar, mas então mais confuso inda fiquei pois contra tudo que eu esperava dessa panóplia de imagens, contra tudo que eu previra, conjecturara, imaginara, essas imagens tão lindas voltaram a acordar-me, a trazer-me a este país donde em sonhos me pisgara.
  
                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

       E lá estava novamente retratado o abandono, abandono como desígnio, a renúncia a fazer mais e melhor, a alienação de tudo a estranhos, a desistência da luta, a negligência cultivada, o desprezo p’la competência, tudo retratado a preceito e a que nem faltava ar bucólico. Era o perfil singelo e puro, quasi diria ingénuo, dos ignorantes inocentes que povoam este reino, reino nostálgico e triste, saudoso do que abomina, afastado da verdade, banhado em melancolia, tudo isso eu via, e doía, um país em estado caótico, uma sociedade informe, povo confuso e indolente. Tudo presente nessas fotos tão marcantes, a irresponsabilidade latente, o respeito desregrado, o território desordenado, o dissoluto poder, a depravação como doutrina e mestra da corrupção, sim eu vi com estes olhos, a depredação dum país e só não vi, coragem de navegante ou valentia de antanho. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Pesaroso saí de mim e, como náufrago agarrado a tabua de salvação, me agarrei eu aos mestres  sábios em busca de explicação, por nem saber já o que via e duvidar do que sentia pois não ficara indiferente, sentira mesmo um arrepio. Nem sei se toda a gente sente, eu senti e estranhei, e recolhi-me, melhor seria dizer refugiei-me no meu próprio pensamento, meditando e comparando os mestres e a mestria, interrogações e respostas que aqui e ali ouvia e lia, abraçando as que intuía ou, se olhando de novo atentamente cada nova fotografia a resumia ao que encantada ou deslumbrada a mente dela inferia.

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Será um estranho encantamento ou mero truque de magia, quem sabe se dualismo resultante da introspecção ou inspecção do que se observa, a verdade é que nos podem causar estranheza e ela, estranheza, por sua vez induzir-nos p’los seus efeitos milagrosos a ver num qualquer objecto o que mais ninguém nele vê, isto é a interpretar, ou a consentir-nos sobre eles a ajustar e reajustar aspectos inexprimíveis da privacidade e intimidade dos ditos que não pretendamos mostrar mas simultaneamente procuramos, todos possam observar.

Walter Pater e Matthew Arnold garantiriam haver ali aparente desinteresse que contudo se isolado, circunscrito ao que nele é estranho, a estranheza e, catapultando-a do seu genérico para um patamar superior, capaz de suscitar espanto, e portanto vir a ser ponto de partida e génese dum feliz acto criativo. Encontrada a novidade, haveria móbil p'ra disparar, através do enquadramento, do isolamento e exaltação do pormenor, do conceito enquadrado ou demarcado do contexto.

Não duvido existir associada àquele olho espreitando a objectiva, uma mente progressiva cuja arrumação de neurónios, conexões, axónios e sinapses seja estruturalmente diferente de todos nós vulgares mortais, embora nunca possa ou possamos saber ou perceber como acontece o fenómeno, por isso alguns têm “olho” mas não o têm os demais.

Isto é coisa que o tal Matthew Arnold o “olhista”, sabe existir para além do prazer dum clic, dum flash, o prazer advindo da capacidade de ver mais, ver de outro modo. Como saberá Northop Frye, o mundo conceptual assim criado interage com outros universos conceptuais ligados à mesma imagem num universo que a todos se mostra mas onde nem todos são bafejados com a capacidade de perceber ou percepcionar na totalidade. 

                                                 Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

A realidade é um prisma multifacetado, um caleidoscópio ante o qual agitando a mente, esta desperta e veremos a perspectiva mudando radicalmente. Será por essa causa, esse motivo ou juízo que, dando razão a Oscar Wilde, não devemos encerrar o significado do exposto, observado ou mostrado, nem tentar perceber a intenção do “olhista” a fim de que o objecto exposto não mumifique numa única ideia de apreensão ou percepção, mas se mantenha aberto a mil interpretações/concepções, pois somente assim um qualquer objecto de arte pertencerá a todos quantos nele se revejam ou com ele se identifiquem. Tal qual como cada cabeça sua sentença, também aqui cada olhar cada resolução, ou revelação, sendo embora o objecto semente e fruto da mesma diversidade, único, total.

                                                Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Hugo Von Hofmannsthal como bom “olhista” que foi, atribuía a tudo que existe uma realidade própria, imanente, afirmando-se rodeado de um mundo de reacções deliciosas e infindável, merecedor das suas atenções. Afirmava-o ainda muito antes da vulgarização da fotografia, Hofmannsthal (1874-1929) que foi fotógrafo e retratista, um olhista, sabia bem o que dizia. Lembro que o “Calótipo, ou Talbótipo” o primeiro processo aceitável de fotografia, fora inventado por William Fox Talbot em 1836 e registado na Royal Society de Londres em1841, poucos anos antes do nascimento de Hofmannsthal.

Talvez tudo isto explique por que Oscar Wilde, poeta e dramaturgo, homem de rara sensibilidade, tivesse sido fascinado sobretudo p'la atitude contemplativa do observador, do retratista, do fotógrafo, da sua luta pelo melhor ângulo, a melhor luz, e, uma vez atingido o vício, p’lo estado de excitação atingido inda que imperceptível para nós, em linguagem clara absorvido p'lo êxtase vivido. Quem ama a fotografia por ela dará ou se sujeitará a tudo.

Tudo tem uma explicação. Isto anda tudo ligado…






Bibliografia consultada para apoio a este texto:

Pedreira, Frederico; Uma Aproximação à Estranheza, Imprensa Nacional, Lx 2017.

Hugo Von Hofmannsthal,  “A Carta de Lord Chandos”  (trad de João Barrento) Belo Horizonte Edições Chão da Feira 2012.

Matthew Arnold,  The Function of Criticism at the Present Time by Matthew Arnold (reprinted from ”Essays in criticism”)  and An Essay on style, by Walter Pater (reprinted from “Appreciations”), New York: Macmillan and Company  1895, pag 39. trad. Frederico Pedreira.

Northop Frye, Anatomy of Criticism: Four Essays, Princeton  (New Jersey), Princeton Universsity Press, 1973, pp 17-18. Trad.  Frederico Pedreira.

Oscar Wilde,  Intenções;  Quatro  Ensaios sobre Estética (trad.  António M. Feijó),  L isboa Edições Cotovia, 1992, pp. 79-171.

Walter Pater, The Renaissance: Studies in Art and Poetry, New York, Dover Publications, 2005. Trad.  Frederico Pedreira.