sábado, 24 de novembro de 2018

552 - INVEJINHA, INVEJINHA... by Luísa Baião ‎* ...

Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora. 

Hoje senta-se à minha mesa no café, até podia dar-se o caso de ser meu pai, tem idade para tal, mas é simplesmente um amigo, e que bom amigo ele é.

Talvez por isso é fatal que, ao fim de semana, nos procuremos para esse ritual, de onde um cheiro emana e, o sabor nos chama como apelo que, repetido ao longo do dia, já sem o mito a que o primeiro dá corpo, acalma todavia a alma e lhe dá conforto.

È um atlas este homem singular, enciclopédia vasta de uma vida escondendo estórias que a sua memória arrasta. Nada nele há de que se deva envergonhar, tanto que gravatas são coisa que nem usa, até porque a longa vida vivida não é comédia, nem recusa contá-la se a conversa a jeito segue. O primeiro que se negue.

Não passava eu ainda de um sonho, uma vontade, e já este meu amigo se esforçava, naquela outra metade do mundo que o nosso império então pintava a cor-de-rosa e que mudou de supetão, porque em alguma parte da terra uma mariposa bateu asas, segundo os astro - físicos, ou porque um povo indígena se lembrou em algum momento de dizer basta, mais não.

Qual ave de arribação de novo volveu à sua origem, não sem que essa forçosa migração o tivesse levado a rumar primeiro a sul, onde a vertigem das horas e da moda o não prendeu, antes o atirou para o que agora chamo o seu convívio, mas que ele todas as auroras apoda de seu desígnio.

Conheceu povos usos e costumes e em cada um dos novos fusos e latitudes que pisou tanto aprendeu, que é hoje um homem sereno, que do pleno da vida alcançou o cume, vida que, embora madrasta por vezes, nunca permitiu a alguém ouvir-lhe um queixume ou notar-lhe sequer leve azedume.

Ganhou amor à terra em planaltos e savanas, imensidões por onde alargou olhar e espírito, apanhou sobressaltos e, talvez repastos de lembrar e chorar por mais, que o atiraram para o clube dos barriganas. Caçou provavelmente leões, hoje cria gado, revolve a terra que aprendeu a amar e entretém-se nas horas vagas caçando chavões em jornais.

Com nostalgia recorda a África, onde se fez homem e deles amigo. Dessa lonjura carregou sabedoria que, como castigo desabrido lançou nesta terra de que fez porto de abrigo. Mendigo é que não, a não ser da amizade, que cultiva com prazer e das quais por vezes tem vaidade.

Como não há-de correr-lhe a vida em beleza ?  Se o nosso homem é todo dado à natureza ! Bom garfo, melhor conversador, perto dele não há sururu, apenas o calor contagiante de conversas longas e serenas. Não parte um copo o Francisco mas no remanso esfuziante dessas horas perversas é um pândega, ninguém sossega.

Calhou-nos encontrá-lo de partida para férias, que após algumas lérias soubemos no mesmo destino. Foi um desatino. Não partilhámos a cama mas partilhámos a mesa, que do primeiro prato à sobremesa nos deu tempo para desatar a língua e, apesar do calor, nunca deixámos a conversa morrer à míngua ou criar bolor, por tão ricos os vinhos e petiscos e tão sem dor as farpas nos políticos.

Sempre foram umas férias diferentes, com um compatriota à porta com quem debater os assuntos imanentes à nossa condição. O meu marido adorou e, um dia houve, mesmo sem fatiota a rigor, que nos passeámos de jipão por toda aquela área lindíssima a que os nuestros hermanos chamam o Parque Natural de Doñana.

Não valem comparações, o que eles usam ao domingo usamos nós de semana. Nunca terão uma floresta como a nossa, quase virgem, selvagem, onde só bicho-do-mato entra. Na nossa só entra bicho e fagulha, na deles não se vê no chão nem dos muitos pinheiros uma agulha...

Como diria o Francisco, orgulhoso da sua barriguinha, invejinha, invejinha... 


* Maria Luísa Baião,‎ justissíma e merecida homenagem ao grande amigo Francisco Pândega, escrito quinta-feira, ‎7‎ de ‎agosto‎ de ‎2003, pelas ‏‎22:31h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.
Foto de Helena Margarida de Sousa, Évora.


551 - TERRAS D’EL - REI, by Maria Luísa Baião ‎*…

Foto roubada na Net, Praça principal de Reguengos e igreja neo-gótica.

Vou contar-vos uma história, de um almoço que tomei na companhia de amigos de quem até já falei. Por causa das invejinhas e porque há almas penadinhas por degustar bom petisco, creio não cair no risco e arrisco sem remorso, por isso vos afianço que, em qualquer outro lugar ou em qualquer uma outra rua, se come tão bem na terra como eu comi na “taberna” dessa vila que é tão minha, quanto crê ser ela sua.

Embora o uso não lembre, são terras que eram D’El-Rei, que assim não ficaram sempre porque a lei dos liberais cuidou de lhes dar finais.

Eram terras “realengas”, p’ra outros terras “reguengas”, que de nobres ou de reis, davam ainda para os pobres verem dali alguns réis. Também o clero tinha parte que, com arte, como a nobreza ou a coroa, acudia à pobreza que, como agora, como sempre, esperava dos mais fortes, os restos d’alguma broa.

Nascidas da esperança aceite, de o cristianismo alargar, enquanto alguns nossos reis acossavam o belicismo para ao Algarve chegar, muitas, como esta terra hoje chamada D’El-Rei, a guerreiros os reis doavam, dando de alarve riquezas que o património gizava, que quer o tempo e a história não cuidaram de emendar.

Foram dadas a templários ou a quaisquer usurários, nem o poeta Papança teve algum dia o prazer, de, a rendeiros e seareiros, ver na cara alegria franca por ter visto repartida terra de tanta abastança, cujos limites não estão hoje longe dos que há séculos já tinha a nobre casa de Bragança.

Mas, voltando à minha história e ao almoço bem regado que nos ficou na memória. Foi na Casa do Benfica que o néctar ditou as leis que, e nisso faço questão, deixar aqui afirmado que em qualquer outro casão aos manjares apropriado o prazer seria o mesmo, pois o dito que aqui louvo, teria saído gostoso de uma mesma barrica, senão duma mesma pipa.

A verdade é que esse néctar, ali mesmo apadrinhado, trazia rótulo da terra, pois ainda antes de almoço já era certo e sabido cuidar de ter a tempo e horas tal remédio encomendado.

Da história antiga só resta a sagrada toponímia que mui bem calhou à pinga ali mesmo baptizada. Ou "D’El-Rei" ou "Monsaraz", coisa que muito me apraz e tive até o condão de, passado belo momento, ter que descascar o casaco, por efeito não de tormento, mas de ventos e grinaldas que a imaginação tece, em que apesar de exaurida, a sensibilidade sofrida nos mostra poentes belos, enquanto cada medida por dentro mais nos aquece. 

"Reguengos" ou "Monsaraz", vila ou aldeia tanto faz, são pérolas rústicas, mágicas, brancas, medievais e ambas belas. Gótica manuelina uma, menina preservada a última, plantada em jazida xistosa que por ser pedra tão branda a torna mais amorosa.

Postada em alto-relevo que meus sonhos pintam de imaginárias e bruxuleantes estampas a que o néctar dos Deuses mistura as cores na paleta, devo reconhecer que, a páginas tantas, as palavras falavam connosco e o ruído ensurdecedor do silêncio intuído burilava, alternando a visão do possível actual, ou do actual possível, nessa terra que parece não mudar.

Reguengos a da igreja neo-gótica que, diria imaginada se a não visse aos céus virada, de lindos vitrais pintada, testemunhando a fé, a crença do seu povinho atarefado, contrastando felizmente com a lembrança nebulosa do pelourinho ainda erguido no adro da praça grande da Monsaraz majestosa, sentinela vigilante.

Como um mar de água crescendo, enquanto íamos almoçando e a sala transformando numa festa a pedir sesta, a barragem ia tecendo os destinos dessa terra e, espero p’ra bem de todas não ver o tempo gizar terra que, à soleira do futuro fique sentada mirando o passar deste mundo que parece prometer tudo. Que ninguém em terras D’El-Rei se remeta ao silêncio mudo.

Se os sonhos que no ar pairam, teimarem em querer falar, teimarem acreditar que tudo lhes é possível, creio que ao povo desta terra até o inimaginável será um dia acessível, inda que demore mais algum tempo…
  

* Maria Luísa Baião‎ escrito Quarta-feira, ‎3‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2003, ‏‎pelas 04:29h e publicado nos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎

Foto de Helena Margarida de Sousa - Évora


NÃO ERA UM BOTÃO DE ROSA by Luísa Baião‎* ...


Chegou como quem está para partir, que é o seu modo de nos fazer pensar se não será incómodo, esquecendo ter sido eu mesma quem lhe pedira para vir. Lembrou então que era convidado e se sentou à minha mesa sem se fazer rogado. Na mão um lindo botão de rosa, escuro e encarnado que me ofertou singelamente e coloquei num jarro.

Tal qual um pisco se serviu da mesa, preparada com tempo para visita que se deseja e nos é querida. Falou mais que comeu, o que bastante me agradou e alegrou a vida. Talvez tenha gostado do jantar, é bom conversador e conversando ficou, diz que não é social mas ninguém acreditou, pois não é o bicho-do-mato que acredita ser, já que qualquer de nós ficou contente por connosco o ter.

Calado e modesto é o seu jeito, nem se apercebe que até uma criança vê a bondade que lhe enche o peito. Não o sabe mas, lobriga muito mais que qualquer de nós possa imaginar, e, como os poetas, vê mesmo os pássaros evoluindo no ar ou ideias práticas navegando no ignorar que nos afoga.

Nasceu antes de tempo, é o que é. É de outro século que ainda está por vir, daí sentir-se neste mundo como em jigajoga e se ache mesmo mais émulo de si que dos demais.

É homem que ama a vida e certamente amou, pois tem alma gigante e não é cego. Não terá quem lhe acaricie o pequenino ego, nem lembrará já quem o merecido orgulho lhe roubou. Quem será a mulher que o afaga ? O faz viver ? Porque me parece outra razão não ter para continuar a ser, e não creio que a aziaga tristeza que por vezes o carrega, seja ludibriada a partir de um estojo no bolso da carteira, por onde aquece a vida que, certeira, nele se alojou como uma ferida.

Não haverá uma de nós que o não conheça, ainda que admita ter havido muito quem por conveniência o esqueça. Mas quem é ? Perguntarão. Não mais que mais um ser sofrido pela desilusão de tudo em que nos tornámos. Bandarra do nosso destino, psicólogo dum íntimo que desconhecemos, cigarra agora de muitos trabalhos tidos, como um menino, mordaz mas não malévolo, crítico dos nossos modos, brincalhão da língua que falamos, cirurgião da fauna que somos e que semanal e exemplarmente se disseca, nos disseca, sem rebuços nem enganos.

Mas é um ser sensivel que decerto percorre os carreiros de forma irregular, para não pisar a vida que os preenche. Ortopedista da natureza traído pela espécie a que pertence, disso posso eu ter a certeza, tanta como jurar não ser a sua vida uma mimese.

Singela me pareceu aquela rosa em botão. Não tivesse sido a sua expontânea e ofuscante abertura, que ainda dura, e a lembrança da sua presença e simpatia, não teria dado aso a esta crónica, que mais não procura que fazer fluir do coração para a mão, uma empatia que não é de agora, antes se funda em velha escora, tão profunda e tão fecunda que espero fazer durar e perdurar, até ao longínquo dia que para o último de nós chegar.

Tenho a cozinha banhada por uma aurora florida que é um hino à própria vida. Por culpa de um peregrino c’a vida em busca de tino, que num instante consciente teve um gesto tão bonito, lembrar-se que eu era gente. E aquela rosa ardente, vinda ela de quem veio e que afinal também sente, me tem alegrado os dias, alvoraçado os sentidos, arrancado de apatias e tornado mais coloridos os sonhos que ainda alimento.

E àquele velho amigo que sempre achei penitente e sempre considerei gente, como eu, como você, hoje é para mim um parente e como eu combatente pela vida, essa torrente presente que, pungente, imanente, contingente, crescente, resistente, fremente, potente, absorvente, florescente, ignescente, incandescente, reluzente, imponente, consequente, impaciente, intransigente, omnipotente, irreverente e estridente nos está acometida e por atrevida é tão querida.

* Maria Luísa Baião‎ escrito ‎ terça-feira, ‎10‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2006, ‏‎11:51h e publicado num dos dias ou na semana seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER‎ em homenagem a António Saias.
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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O BOLINHAS DA MARIA ISABEL by Luísa Baião *

     
Uma rua quedou triste. Uma alma alvoraçada por, no meio de vidas em riste vivendo desapaixonadas e, quais janelas fechadas, fugazes tumultos são. Não mais que instante e trovão de quem nada de absoluto diz, senão, quão distante e apressada a vida tange, acabada.

Por incrível que pareça não é a primeira vez que encontro quem por bem padeça, d’uma tristeza insanável gerada por perda sentida de quem lhe alegrou a vida. O bolinhas é um cão que, não escondendo razão forte para a alguém fazer sentir que solidão não é morte, deixou saudades fundadas, daquelas que muitas almas, que o não parecem nem são, não nos deixarão jamais, quer por razões bem fundadas, ou por serem almas penadas que, sem que o saibam, já  não são.

Dizem poetas soezes acontecer bastas vezes haver quem viva sem por tal dar e morra sem isso saber. Gente que passa que existe, distante, porém, nada mais. Compondo um mundo sombrio, um mundo de amor vazio, que não dá vida a arraiais... Uma rua ficou triste tudo gelando em redor quando o ocaso tragou quem irradiava amor. Pedras frias na calçada fizeram ressoar passos a quem calava agonias que, traduzidas em verso, são um exemplo, entre poucos, de que a esperança ainda existe num canto deste universo.

Dizem haver gente que passa, dizem haver gente que existe, há de tudo, em demasia por vezes. Em todo e qualquer dia, trapaça, a todo e qualquer momento, chiste. Não creias, Maria Isabel, acreditar em quem passa, não passes os dias triste. Acredita que os amores em que em dias de eleição cremos varrerem dos céus dias cinzentos, tristeza, e a quem por devoção abrimos sempre as nossas portas, não são na verdade amigos. Bem nos juram lealdade, sei-o bem, a quem o dizes... mas acredita em quem sabe e de sobra tem razões para não crer em amizades que, menos que um cão, nos devam fidelidades.

Sei que a saudade te mata e que a sensação é fria quando nessa rua entras. Falta a fogosidade dessa pequena silhueta plena de alacridade que, eu imagino acrobata e que à vizinha ladrava como quem, cortando a meta, de forma amena acenava e à mecenas alinhava como p’ra hino ou rainha. A rua ficou mais triste do primeiro até ao fim, cinquenta e seis incluído, porque não se enxerga em riste aquele brejeiro de cetim que, ternurenta, dizeis, em alarido atrevido exibia a liberdade que agora volveu saudade, a quem adoravas tanto quanto se adora um arlequim.

À saída da cidade, como p’la Garraia seguindo e se o Bolinhas não voltar, poderás matar a saudade. Uma fada e uma Aia te aguardarão. Adivinha, p’ra te alegrar e oferecer a liberdade perdida de que te queixas e bem, não veres a rua preenchida. Cantinho dos Animais, assim se chama o palácio onde tu e as demais poderão encher o regaço, não de rosas, mas de ais, de alivio, de aconchego, de amor e grande enlevo para quem queira dar guarida a tantos com vida perdida, que aguardam o vosso apego.

Pudessem no mundo, Antónios ou outros quaisquer durões, deixar derreter a alma e soldar alguns neurónios que os guindassem a Camões, não das letras mas das artes e, com calma, se transformassem de molde a ficar na história, não demónios mal amados, antes seres queridos, saudosos, como descreves Bolinhas ou mesmo até outros cães, mas nunca por charlatães.

Amigos do coração, fiéis, leais, brincalhões, como o são os cães para os seus donos, não são fáceis de encontrar e a chorar nos postamos se alguma vez os perdemos. Mas de muito boa gente com um lamento o afirmo, o mesmo já não dizemos se amizades encontramos que não duram mais que um espirro.

Desejo sinceramente que o contraste ora existente seja de bem pouca dura, que a névoa que a rua tolda, encontre um dia abertura por onde entre um raio de sol, um latido, um atrevido, que de dente arreganhado acabe com o banal, o boçal inevitável que nos atravanca a rua e nos afunila a vida.

Beijinhos.

* Luísa Baião,‎ escrito entre ‎2000/2005‏‎, publicado em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

550 - É P’RA PULAR ! by Maria Luísa Baião * ..........

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Tenho já saudades da chuva, não tanto da chuva como do cheiro da terra molhada, adoro o Alentejo e as suas paisagens a perder de vista, mas o que sobremaneira aprecio é a vastidão verde que faz com que os olhos se percam e o coração se sinta bendito por viver nestas planícies. Estamos quase na Primavera, que, como já perceberam é o meu tempo de eleição.

Andava há momentos arrumando este escritório, mais parecido com uma barafunda e dei com um pequeno livrinho de “Quadras P’ra Pulares”, o qual me fez parar a labuta em que andava como de empreitada. Como o autor diz, “a gente pega num tema...enquanto faz a sua vida prática, diária... até o septissílabo se enformar como um tijolo de sete furos, se ajustar ao outro... e sair a quadra...” como saem os bolinhos do forno da cozinha diria eu.

Diz o autor que qualquer quadra deve degustar-se a preceito, tomar-se com alguma parcimónia, retendo o seu sabor ao longo da jornada. É verdade, a poesia não se emborca como garrafas de cerveja enquanto os golos se concretizam em balizas de invenção, é bom que seja apreciada, avaliada no seu contexto e sobretudo mirada e remirada até que nada reste do seu sempre rico significado. Sempre é como quem diz, sempre desde que o artista tenha para tal jeito e engenho, o que infelizmente nem sempre sucede, ainda que não seja o caso.

Na sua modéstia confessa o autor; “Decerto já está errado / o trilho por onde vou / ninguém chega a nenhum lado / nunca ninguém se encontrou”. C’a grande mentira ! Pena é que não tenha insistido mais na poesia, tão cheia de verdade ela anda, como ele autor anda de solidão (andará?), inda que seja feliz, por muito que ninguém ligue ao que diz.

Pois eu espero que ele volte mais e mais à poesia, para gáudio de todas e para que se celebre quem, de entre nós, anda assim tão enganado e pensando ser, como todas, mais um (a) pateta entre muitos.

Não me lembra já quando o conheci, lembro-me apenas que é daquelas pessoas boas por natureza, e acerca de quem, com o passar dos anos, nunca tive que emendar a primeira impressão. Gosto dele agora, hoje, como gostei das primeiras vezes que trocámos palavras, talvez porque na sua velha sabedoria já tenha aprendido que não vale a pena ter dois lados, ou abanar como um cata-vento. É firme, é coerente, é mordaz, indolente, apresentando e manifestando sobretudo uma teimosa vontade de viver e um acalorado prazer pelos dias que entre nós todas (os) desfruta.

Bem pouca gente conheço a quem tanto falte no tudo / muito que lhe sobra, e se coisas há que lhe sobram é uma sabedoria de vida que nos devia fazer corar de vergonha. Quem me dera que o homem nunca mude, é como dizem agora, um dos raros exemplares ainda vivos entre nós, e que uma vez sumidos não seremos capazes de restituir à natureza nem de encomenda, preservem-no portanto, que como aquele não se fazem já, nem de loiça.

Com uma agudeza muito própria, que chega a incomodar-nos, faz-nos saber tão despidas, quanto folheadas e lidas, só porque a verdade incomoda, só porque a liberdade nos tolda.

Pois tu, “que julgavas não ter / na vida um só inimigo / deste contigo sem saber / se podias contar comigo”, claro que poderás contar sempre comigo, ou não me revisse naquelas quadras, feitas a martelo e a esmo, mas por natureza sinceras, algumas mesmo quimeras, de quem anda por esta vida, descontente dos contentes que por não saberem nada, acreditam que são gente.

Um poeta disse um dia “ que há quem morra  sem tal saber, e quem viva sem dar por isso”, o teu problema é só um, abriste os olhos ao mundo, e não te agradou o que viste, agora aguenta amigo, porque nem dois e dois são quatro, nem endireitas o mundo, nem o mundo te endireitará a ti.

Pena é, a ser como dizes, que adormeças tão cedo, meditar é bem preciso, meditar é precioso, pena é que o ganancioso, nem para dormir tenha tempo, quanto mais para meditar, por pouco tempo que seja, nos erros que atira a todos, nos erros que nunca são seus.

Ver-nos-emos por aí António Saias, mas foi bom não ter acabado hoje a arrumação desta barafunda, não arrumei os livros, mas arrumei melhor as ideias, que bem precisadas andam por vezes de um safanão.
  
* Maria Luísa Baião‎ escrito Domingo, ‎17‎ de ‎Fevereiro‎ de ‎2002, ‏‎20:14h e publicado num dos dias ou na semana  seguinte em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER.‎ 
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