terça-feira, 21 de maio de 2019

605 - ELISABETE BARRADAS – EXPOSIÇÃO "TRAÇOS" – UMA CRITICA JUSTA E MERECIDA


 Encontrámo-nos ombro a ombro e casualmente ao balcão da pastelaria Violeta, eu dando um rombo na dieta e alambazando-me com uma trouxa-de-ovos e ela enfardando um farta brutos.

- Tu aqui ?

- Tu por aqui ?

Estou para uma visita à galeria Casas de Sant’Ana e São Joaquim, quero ver a exposição “TRAÇOS” de Elisabete Barradas de quem já vi em tempos umas coisas, parece valer a pena e para tal aqui estou...

- E eu ! Então vamos os dois, pagas as bicas que és tu o cavalheiro e eu uma senhora.

Assim foi, e lá fomos os dois cantando e rindo ver a exposição da Elisabete Barradas, a dois passos dali, exposição dela e de outros.

- Já vi umas coisitas dela repeti, fizeram-me lembrar o louco do mestre José Cachatra * os temas e as cores eram muito aproximadas, mais que tudo foi esse aspecto que me convenceu a visitar a exposição, e a ti ? Que te move ?

- Ela tem trabalhos muito diferentes desses que referiste, a mim é mais a curiosidade acerca dos novos trabalhos dela que me atrai, isso e o trabalho dos seus alunos que também estarão ali expostos.

- Muito bem nina, olha é já aqui, mete lá o dedo nessa coisa e faz força que eu impo !

Entrámos na galeria, nada mais nada menos que a casa senhorial do meu amigo Cordovil e que nos recebeu com a peculiar hospitalidade característica desta nobre e antiquíssima família eborense.

Depois foi deambularmos por ali, vendo e admirando o “palacete” e simultaneamente a exposição. Um palacete amplo e belo, uma panóplia e infinidade de divisões, escadas, corredores, arrecadações, terraços, um quintal no interior, enfim, praticamente o paraíso no centro da cidade. Até um gongo tocámos e quase dançámos na cozinha, tal a sua dimensão.

Para outra dimensão nos remeteram os trabalhos de Elisabete Barradas, remeteram ou pretendiam remeter, quase todos eles, e se não todos uma grande percentagem, apontando aos céus, encaminhando-nos para as alturas, para a transcendência, a lua, o universo, o astro, o infinito, o nirvana, onde nem um escadote faltava.

- Que estranho Sandra, já reparaste no grosso das obras dela ? Há aqui uma tendência muito acentuada para o alto, ora vê !

E ela viu, reviu e confirmou a minha impressão, à primeira vista surgia-me como uma ocorrência inverosímil, repetitiva, mas lá estava. Diria que como a expressão involuntária de uma tara ** ou mais que uma tara, uma panca, uma pancada, uma pedrada disse eu rindo para a Sandra.

- Será ela daquelas que metem na veia Sandra ?

- Parvo, não digas parvoíces.

- Sei lá, não seria a única a fazê-lo, nem seria a primeira vez que tal aconteceria nos anais da pintura cuja história está pejada de casos desses e eu nem conheço esta Elisabete.

Respaldámo-nos confortavelmente conversando recostados nos antiquados e fofinhos sofás de uma das salas, é que muitos artistas pintaram sob o efeito de drogas psicotrópicas, há até um género de pintura assim classificada, psicadélica. Van Gogh foi um exemplo extremo, cortou uma orelha, Picasso era doido por mulheres segundo uma série que há pouco passou num canal por cabo, Cachatra era louco, são dezenas ou milhares os exemplos de pinturas e pintores que carregaram taras... Salvador Dali idem... Além de louco era excêntrico…Temos outro caso extremo, o de WilliamTurner que uma vez se fez amarrar ao mastro de um navio em plena tormenta para não ser tentado a acobardar-se e obrigando-se a sofrer e viver uma tempestade com o fito de a mais tarde a pintar. O que terá motivado esta Elisabete a repetir-se dentro do mesmo tema ?

Aquilo ficara a fazer-me coca-bichinhos na mona, e embora saibamos como a pintura, aliás não só ela como toda a arte é subjectiva e nos interroga, na primeira oportunidade indaguei junto da própria pintora que me tirasse as dúvidas pois tantas mas tantas pinturas famosas se devem a loucos, à loucura ou a drogas... A manias... A taras.. Freud pegava nas pinturas e na explicação que os doentes delas davam e elaborava diagnósticos certeiros... A par dessa estratégia existem em psicologia os chamados testes psicométricos, e também a psiquiatria recorre à interpretação dos conhecidos testes de Rorschach, acho que é assim que se chamam, os quais têm por base a interpretação de borrões, de manchas, no fundo de pinturas... Pinturas esborratadas digamos... 

Mas chegar à fala com a artista foi um desastre, ela parece ignorar que quem se expõe publicamente, quem se expõe (em galerias ou não) sujeita-se a ser criticada, entendendo eu aqui a critica como comparação, análise e avaliação, e no fundo preparação pessoal para a enfrentar, à critica, ripostar explicar, justificar, defender a sua posição, usando da retórica, da lógica, tendo-me vindo à memória o esforço uma vez observado ao meu amigo Marcelino Bravo, ilustre pintor eborense, que numa exposição se desfez em atenções para explicar à turba o significado de uma sua nova tendência ou conceito tendo faltado somente fazer-nos um desenho para que melhor o compreendêssemos.

Tal nem de perto aconteceu com esta Elisabete, com quem troquei impressões no chat duma rede social, as quais vou reproduzir aqui integralmente para vosso inteiro conhecimento e apreciação:

Eis o diálogo tido domingo, 19 de Maio, no Messenger entre mim e a pintora Elisabete Barradas após esta ter aceitado a amizade solicitada:

EU - Bem vinda, vi ontem uma exposição sua, gostei.  🙂
ELA – Obrigada
EU - Só não percebi uma coisa.
ELA - Diga lá o que não percebeu?
EU - A fixação pelas alturas, pelo céu, pela lua, o escadote sempre presente, a tentação de ascender, subir, trepar, a convergência ao alto, e eram numa grande percentagem as figuras que apresentavam essa particularidade, será fixação ? Pelo quê ?
ELA - Não me parece que seja fixação, um determinado estilo do artista, fase !!!
Continuo
Não é fixação !!!
EU - Usei a palavra sem sentido pejorativo, tal como comentei com a Sandra que aquilo me parecia uma tara, igualmente sem esse sentido destrutivo. Estilo, fase, compreendo.
ELA - Tara?
EU - Fase, é melhor fase.
ELA - Desculpe
Boa tarde !!!!
EU - Falo de um comentário com a companheira com quem fui ver a exposição, leia bem, pk não é o que parece

(Mas ELA  já tinha “desligado”, já se fora embora… )

EU - Tem mesmo uma tara, tenho razão, acabou de ma conceder 😀  Boa tarde e boa continuação enquanto pintora, e reveja a sua posição, cultura e atitude enquanto pessoa, não basta pintar melhor ou pior, é necessário algum humanismo, alguma disposição para levar até ao fim as trocas de impressão com o visitante, o impacto da sua arte nele visitante, observador, consumidor, imagino-a nova, nova demais, sem experiência de vida, a dose certa de humildade e modéstia poderão fazer muito por si, já a arrogância e a prepotência são as armas dos ignorantes... Ah ! E leia, leia muito, bons autores 🙂 Xau bjs e boa sorte

ELA depois disto cortou-me a amizade tendo-me bloqueado.

                    _____________ / ___________

Ora o que sucedeu foi nem mais nem menos a senhora ter confundido soberba com disponibilidade, e arrogância com ignorância. Custa-me entender que quem cursou Belas Artes não tenha estudado a história da pintura, biografias de pintores famosos, que não tenha ligado à literatura (está lá tudo) ou possa descurar o humanismo, a psicologia, a que a arte pela sua natureza anda intimamente ligada, ou a formação pessoal. 

          Não basta saber pintar melhor ou pior, existe a chamada inserção social que obriga a respeitar cânones, não basta vender mais baratas ou mais caras as obras, há que ser educado, bem formado, estar preparado para lidar com a clientela, que, se de arte, será minimamente culta, bem formada e exigente, e sobretudo, se se mantém uma escola de pintura há que defender o seu bom nome e não prejudicar artistas convidados nem alunos com condutas de todo inutilmente impróprias.  

Exposições de Elisabete Barradas jamais, ou nunca mais, e é pena porque a senhorita até pinta umas coisitas, nem pinta mal de todo, podia ser uma promessa não fosse o seu feitio irrascível, veja-se o caso de Joana Vasconcelos, não é engraçada mas soube cair em graça e expõe por todo o mundo que conta, já quanto a esta duvido que esse mundo para a qual nem de perto está preparada alguma vez se lhe abra.

É pena, mas nem todos podem ser sublimes… 

Como por exemplo eu ahahahahahahahahahahhahaha !!!









FICHA TÉCNICA DA PINTORA SEGUNDO ELA MESMA: - Artista plástica na empresa Self-Employed e trabalha em Artista plástica na empresa Carvão Estúdio, Évora Portugal - Estudou Artes Plásticas - Pintura em Belas-Artes ULisboa - Anterior: Escola Secundaria Gabriel Pereira - De Évora - Artista Plástica - Representante de artistas argentinos e uruguaios -




** SIGNIFICADO DE TARA SEGUNDO O DICIONÁRIO PRIBERAM DE LINGUA PORTUGUESA:  Ver pontos 4, 6, 7, 8. 9 e 10.

Ta·ra
Substantivo feminino

1. Peso de recipiente ou continente vazio, sem o produto que pode conter (ex.: para obter o peso real da mercadoria, é preciso deduzir a tara do peso bruto).

2. Recipiente ou objecto que pode conter determinado produto (ex.: prefira bebidas engarrafadas de tara retornável).

3. Peso de um veículo de transporte vazio, sem a carga (ex.: o reboque tem tara superior a meia tonelada).

4. [Medicina]  Anomalia hereditária (ex.: tara genética).

5. Defeito de fabrico (ex.: moedas sem tara). = FALHA

6. [Figurado]  Mácula, defeito, senão.

7. [Informal]  Desequilíbrio mental (ex.: ele não deve ser bom da cabeça, deve ter uma tara qualquer). = PANCA, PANCADA

8. [Informal]  Fixação ou atracção muito forte, por algo ou por alguém (ex.: tara por melancia). = MANIA, OBSESSÃO, PANCA

9. [Informal]  Desvio patológico do comportamento sexual considerado normal (ex.: tara com pés). = DEPRAVAÇÃO, PERVERSÃO

10. [Veterinária]  Defeito que diminui o valor de uma cavalgadura.

11. [Botânica]  Taioba.

"Tara", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/tara [consultado em 20-05-2019].













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quarta-feira, 15 de maio de 2019

604 - SUBIR AO CÉU COMO O ANJO MENADEL


O meu amor não lhe deu vida pois ela sempre a teve própria, mas creio solenemente tê-la ajudado a manter em alta a auto-estima que, como se diz por aqui, chegava para dar e vender, sempre em alta.

Observava-a e, quanto mais a olhava mais o meu maravilhamento recaía sobre tanta confiança, tanta certeza, tanta disponibilidade amor e carinho dado mas não vendido, vendo-a eu a ela um pouco a modos como quem vê um anjo na terra.

Eu olhava e quanto mais olhava mais me convencia estar vendo um anjo… Ou seja, ver para crer como São Tomé e eu, que tanta coisa já vira, pasmava surpreendido ao ver-me confrontado não tanto com a sua beleza celestial, mas com a sua capacidade de dar, de dar-se. Ela para quem na vida tudo fora parco, sopesado, comedido e submetido a criteriosa ponderação.

Sentindo-me protegido por um misto de beatitude celestial e profana dela emanada, senti-me sempre um privilegiado e, não desejando extrapolar a modéstia dessa visão revi tudo, não me atrevendo a considerar-me um eleito, um escolhido, ainda que no meu íntimo me sinta como tal, tal a felicidade fruída ao ser por ela abençoado, tocado. 

Difícil será para um mundo de pecadores como nós ascender aos céus, muito mais fácil é vogar nos ares da sua bênção, limbo para onde me senti levado e para onde a toda a hora me sinto arrastado numa santidade beatífica, tendo daí resultado ter solidificado em mim uma vontade imperiosa de fazer o que está certo, de ser mais que eu mesmo, de me superar, de me ultrapassar, bafejado e impulsionado por essa energia vital p’la qual me sinto tocado, que me tocou e transformou.

Aceitarão que não subi aos céus, inda que vogue na terra imbuído desse espírito de boa vontade entre os homens que ela tão bem inculcou em mim. Afirmá-lo seria manifestamente exagerado, contudo, todavia mas porém e, quer bafejado pela fortuna quer aspergido pela sua virtuosidade, também eu me senti e sinto tocado pela sua bondade e destinado a cumprir quanto compete a um homem bom, a qualquer cidadão consciente do seu dever, a todo o apaixonado que se preze e respeite o amor, a sua dádiva, a sua força anímica. No fundo a coragem a força e a energia que dela emanam e ao longo de séculos tem transformado a face deste planeta.

É quando fecho os olhos que melhor vejo ou recordo a sua beleza, a sua face, a tez ruborizada a que o amor deu cor, os olhos amendoados transportando a essência de amendoeiras em flor, os lábios finos de anjo que convidam envolvem e abraçam, o fácies todo ele num repente de uma beleza ímpar que só a ascensão consente e redime, eu repentinamente flectido em genuflexão respeitosa ante a sua graça e a imagem endeusada que de si construo passo a passo e por isso hoje um candelabro no seu altar e uma jarra com rosas vermelhas que a celebrem, testemunhem e jurem a assumpção da minha fé, a minha devoção, o meu amor por ela, jurado e prometido crente ser o amor que nos move e nos une, ciente de que a esperança não é uma palavra vã e que o Senhor sabia o que afirmava ao gritar aos quatro ventos amai-vos uns aos outros, multiplicai-vos, ide e povoai a terra.

Nunca busquei nem verei nela a Madre Teresa que nunca foi, nem a meus olhos tal serás meu amor, mas o teu amor a tua bondade a tua beleza e serenidade será lembrança que me acompanhará doravante e de mim fará por ti um homem novo, simultaneamente ávido e saudoso da tua doçura, da tua meiguice, da tua candura.

 Não num concílio dos deuses e menos ainda num qualquer concílio papal, se porá em causa menos a importância o lugar e o tempo que a autoridade celestial ou terrena. Estará eternamente em causa a unidade e intimidade familiar, não o núcleo nuclear, o núcleo do universo, o núcleo elementar, o núcleo central, fulcral, a célula, o átomo, a partícula ínfima deste universo maravilhosamente expandido e descoberto ou o maravilhamento da paixão como a única força gravítica celestial. É neste momento único, neste horizonte de eventos, nesta singularidade, neste limite que se jogará o amor, é aí mesmo, é precisamente nesse momento, tal como apostolava Einstein quando professava, que uma justificação, uma explicação será devida e dada aos gentios.

Sit Dominus Deus inhabitare facit unius moris


603 - SEDA, ERAM MESMO DE SEDA ......................


Agora são verdes, verdinhas da cor da esperança e mais confortáveis, modernas e humanas. Têm bancos reclináveis individuais forrados num tecido colorido agradável ao tacto e até ficha eléctrica para ligar o portátil ou carregar o telemóvel. Muito longe das carruagens de há quase cinquenta anos e nunca asseadas, bancos de madeira ou napa surrada, por vezes rasgada, magalas dormindo nos suportes da bagagem de mão sobre as nossas cabeças.

Era uma corrida, uma marcha apressada dos prédios da caixa onde ela vivia até à estação. Meia hora ou quase batendo tacão pela noite dentro que o comboio partia cedo para estar pelas nove em Lisboa e ainda havia que atravessar o tejo num cacilheiro. Chegava a Évora pela matina e vinha já repleto de magalas e gentes arrebanhadas desde Elvas e Estremoz até cá, gente tão bruta quanto a de agora, mas então muito mais selvagem porém mais genuína.

Agora não nos amontoamos, cada passageiro tem um bilhete e um lugar reservado, o pica está ligado em rede e aceita pagamento pelo multibanco. Um espanto.

Espanto nessa época só mesmo nós dois, a Luisinha e eu, novos, novinhos em folha, novíssimos, primeiro não mas depois já de aliança no dedo, ar divertido, um indisfarçável ar de felicidade, apaixonados, descomprometidos. Eu bisando o Ministério da Marinha, ela Santa Maria, Curry Cabral e companhia. Ver-nos-íamos cada dia da semana, voltaríamos na sexta ou somente ao fim de semanas, meses, ou anos. O tempo correndo devagar, parado e devagarinho, a nossa ligação marinando em paciências, esperas e carinhos, a ternura uma promessa garantida, a meiguice relevando na brejeirice consentida e partilhada, a doçura animando-nos os sonhos de meninos e tudo junto engrossando o caldo de saudade em que permanentemente andávamos mergulhados.

É outra hoje a saudade vivida e sentida. Mui diferente esta paixão siliciosa e masoquista que apadrinho, com a qual me fustigo numa ânsia de lembrar-te e vinda do fundo de mim que nem um minuto de descanso me concedo, como se fosse sacrilégio ignorar-te a ti que caminhas sempre a meu lado, como outrora ocupavas o lugar respectivo no banco de napa corrido dessas carruagens em que eras estrela viçosa, jovem, alegre e bem formosa.

É outro hoje o mundo, não somente por terem passado por ele mais de quatro décadas, não só devido a melhorias, progresso e as tecnologias terem assentado arraiais na praça, mas porque nele falta o principal, tu, tu que davas sentido às coisas, mantinhas o mundo nos eixos e eu tinha onde me agarrar. Agora foge-me o chão debaixo dos pés, nada é firme, nada é certo, tudo é inseguro e o meu mundo, dantes um Jardim das Delícias* é agora um deserto sem sombra, sem água, sem um oásis ou ao menos uma qualquer enganadora miragem onde, por momentos pudesse dessedentar-me e descansar desta caminhada sob o sol abrasador da tua ausência.

És uma obsessão que me cresta e abre chagas ao derramares sobre mim memórias vivas em todos os lugares por onde passo, por onde passámos, e que revivo com excitante assombro e dor apaixonada numa subtileza inocente, cujos matizes e cambiantes me mudam a disposição da noite para o dia num minuto, quando não num segundo, tudo dependendo de Cronos ** da força da lembrança, da nitidez da miragem, da sede de ti e da saudade do momento.

Hoje é o comboio que te traz até mim, mas pode ser uma música, uma imagem, o título de um livro ou de um filme, uma frase que alguém profira, uma palavra, um gesto, um objecto com que me depare, um gancho do cabelo, um guarda-jóias, a lata da laca, sete escravas, a tua escova de dentes no copo e ele por sua vez ainda no lugar onde o deixaste, no lugar de sempre no armário da casa de banho,  as cortinas das janelas ainda por mudar e as quais nem me atrevo a trocar.

Mas é sempre linda e jovem que te vejo, revejo, lembro, imagino e sonho pois sempre foste e continuas sendo para mim um sonho lindo.


Assim me encerro em silêncios e reflexões despoletadas pelo mais pequeno pormenor, por quaisquer aparentemente pequenos factos e hoje, que coloquei no roupeiro da arrecadação toda a roupa de inverno e de lá trouxe a de verão, quedei-me no robe verde de seda que me ofereceras tocando o tecido entre os dedos e, fechados os olhos foi a ti que lembrei na tua imaculada camisa de dormir até aos pés e em seda branca, tu e eu enredados nela, comprida demais naquelas horas em que nós, e eu impaciente a levantava impetuoso porque todos os minutos e todos os segundos perdidos eram dano e o amor urgia, clamava e irrompia feroz até que a saciedade e o cansaço nos dessem a calma e a paz diariamente procurada e construída com a mesma paciência amor e carinho com que eram feitas as surpreendentes quão majestosas construções de areia que víamos no Tamariz na Nazaré ou no Algarve.

Depois, como em suave quietação o fluxo e refluxo das ondas na praia arrasta em vai-vem algodão doce ou espuma e serenidade, e nós, abraçados, sentindo esse mar calmo, essas ondas frescas arrefecendo a fornalha das turbinas, testa com testa, nariz com nariz, lábios, línguas, até a tua face roçagar a minha e eu, deleitado, adormecer sonhando por ser deitado que melhor te sonho lembro e choro, escondido de todos escondido de tudo, só tu e eu e esta dor insana, tu e eu e esta cidade agora sem nexo, este mundo absurdo, indiferente e todo igual, sem charme nem piada onde tudo se repete até à exaustão, até cansar, apesar do constatado, nada dá em nada, nada conduz a lado algum e afinal o mais livre de todos sou eu, prisioneiro de mim mesmo mas fora deste labirinto de enganos onde loucos, todos loucos, parecem ter perdido o fio à meada. 

         Mundo onde talvez seja mais fácil encontrar-te a ti que um qualquer magote de gente atinada.







domingo, 12 de maio de 2019

602 - O SEU A SEU DONO, by Maria Luísa Baião * ...


Quando lá cheguei fiquei desiludida, coisa para voltar costas a tudo e vir embora. Esperava tudo menos aquilo, enfim, esperava um qualquer artista mesmo rasca que distraísse e debitasse uns acordes. Como disse, tudo menos aquilo.

A verdade é que se lá vamos muitas vezes nem será para fazer compras, felizmente quanto a essas modas estou sempre actualizada, não é uma feira que me leva a comprar o que não preciso. Mas gosto de feiras, sempre gostei e aquela ideia de dar um ar de arraial a essa feira até não foi de desprezar. Duas coisas houve com que contei ainda antes de para lá me dirigir, encontrar amigas e amigos com quem dar dois dedos de conversa, beber qualquer coisa e, claro, ouvir um qualquer artista, mas não aquilo, tudo menos aquilo.

Maus hábitos que a gente arranja, e depois quando apanha desilusões, é o que se vê, são tudo lamentações. E eu já andava a lamentar há algum tempo o facto de, devido a preocupações me ter escapado em claro uma coisa que eu queria muito e perdi. Ter assistido, na Azaruja, ou em S. Mancos, a um concerto de Canto e Piano, pela Classe Maitrisienne de Chartres, Escola Nacional de Música e Dança de Chartres e que teve lugar na Casa do Povo. Não sei quem nos serviços culturais da nossa autarquia se lembrou desses concertos, gostaria de agradecer-lhe pessoalmente apesar de ter perdido esses eventos.

Mas voltemos à vaca fria, não ter gostado do que encontrei uma vez chegada à feira. Bem sei que me animam uns preconceitos irracionais contra aquela malta, culpa deles pois tiveram muito tempo para os desvanecer e mais ainda para os ter evitado, mas as coisas são assim e não vale a pena estar agora a pintá-las de outra cor.

Por esses meus preconceitos infundados estive mesmo vai-não-vai p'ra virar costas a tudo e todos, não o fiz, em boa hora o não fiz, graças a Deus que o não fiz. Aqui me penitencio pelo meu erro, ao ter ficado tirei fundamentos à minha falta deles, derrubei preconceitos antigos que nenhuma falta me faziam, muito embora me não pesassem nem ignorasse tê-los.

Ganhei com aquela ida à Feira do Livro, mas também o Manuel Dias e a Gertrudes Pasto** ganharam em mim uma admiradora do trabalho desenvolvido que, ao ter ficado, mesmo contrariada, dei a mim mesma uma oportunidade única para reconhecer um erro crasso e dois artistas de gabarito internacional na apresentação e desenvolvimento de formas animadas.

Para aquelas que como eu não ligavam peva à nossa Bienal de Marionetas nem aos nossos artistas, saibam que os temos de craveira internacional. Nunca até aqui me preocupara se essa Bienal era um concurso ou uma reunião de excêntricos, se ficávamos bem ou mal classificados ou vistos, mas o espectáculo que vi naquela noite em que estive para me vir embora virou os meus preconceitos e conceitos todos do avesso.

Afinal gostei do que vi, adorei o profissionalismo e o cuidado na arte cuidada, vou certamente querer ver e conhecer mais daquele trabalho. Não sei se foi inspiração repentina ou se lhes exigiu muito esforço, mas há ali certamente muito tempo investido, muito suor e lágrimas, ai isso há.

Há muitos anos tive a felicidade de ver actuar em Paris um mimo, afinal não é preciso ir tão longe para ter a felicidade de fruir momentos assim. Obrigado.


* By Maria Luísa Baião, escrito ‎a 5 de ‎junho‎ de ‎2005, pelas ‏‎08:46h e provavelmente publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias ou semanas seguintes.
  




quinta-feira, 2 de maio de 2019

601 - MURAL / MORAL / PAIXÃO / SAUDADE ...

A terra a quem a trabalha
               

Agora nada. Agora de novo uma simples parede alta que fora alva como quase todas na cidade mas não então, então, nesse dia radioso uma trupe afadigava-se desenhando nela e pintando-a, uns por baixo outros por cima, uns de lado outros pendurados ou encavalitados em escadas e escadotes, crianças na relva aos pinotes, e o paredão volvendo tela, pintura, picture, celebração, recordação.

Recordo bem esse domingo do verão quente de 75, esse feliz 6 de Julho, recordo bem o dia e o lugar, lembro menos mal a azáfama sem igual, um cravo, uma ceifeira, gentes, soldados, uma visão, crentes, alarido, festa, liberdade, e tu ponderando a avaliação, olhando-me, mirando-me de cima abaixo, sopesando-me e sorrindo irónica ou matreira, de qualquer maneira ponderando, avaliando, não o mural mas a mim mesmo, a mim e à minha atitude, firmemente tomada e tornada perante ti questão moral.
Aqui se fez história

Apaixonarmo-nos é quedarmo-nos,  submetermo-nos, sujeitarmo-nos esperançados a uma qualquer ponderação, a quaisquer criteriosas avaliações, cedermos, arriscarmos,  e eu esperando expectante, temente, duvidando no momento do julgamento da tua habitual razoabilidade, medroso de que esse teu racionalismo me julgasse mal, receoso que, o que tanto em ti gabava me ditasse uma má sorte sem igual.

Enervado olhava e comentava o mural, o porte das gentes exortadas, o garbo da ação concertada que os gentios procuravam eternizar, tornar imortal pintando-a na pedra como havia feito o homem das cavernas, homem que eu me sentia julgando as pernas tremer, buscando um lugar onde sentar- me, onde nos sentarmos, contudo não o lobrigando.

Hoje e muitos outros dias precisei e precisarei sentar-me perto de ti recordando-te e não soube nem saberei onde nem como, talvez asneira essa tua ideia da doação do corpo à ciência, não há uma campa onde me dirigir, que limpar e florir, não há uma urna com cinzas para adorar e ante a qual ajoelhar, somente uma lembrança tua, uma memória tua, uma recordação tua. Mas quem ousava contrariar-te ?
De mãos dadas passámos aquele arco

Por isso eu aqui, percorrendo à mesma hora o mesmo caminho que trilhámos de mãos dadas tanto nos momentos felizes como nos mais cruciantes das nossas vidas, ou deverei dizer da nossa vida visto ter sido ali que oficialmente essa vida começou ? Ou não foi ali que tu oficialmente me aprovaste ? Deambulo por aqui muitas vezes, desço do jardim Diana onde sempre nos demorámos e percorro a passo lento este percurso até a Igreja do Espírito Santo, dela guino para as Portas de Moura, Jardim do Bacalhau e última paragem antes que na noite soassem as doze badaladas, antes disso estarias no Farrobo, na Travessa da Viola e em casa da avó Joaquina, sem perder o tino nem o sapatinho, sem coches de abóbora e sem que se visse um único ratinho.
O muro agora tornando ao antes da festa

Naquele dia, no dia do julgamento o passeio foi a horas vivas e vivaças, estando as gentes pintando o mural naquele muro, naquele enorme paredão. Viçosas em seu redor as flores, a relva, e tu cuja vida prometia alegria e a companhia felicidade eterna.

Recordar-te enquanto marcho é o que me resta para preencher o vazio em que me deixaste. A horas certas tenho percorrido sozinho em passo lento os mesmos caminhos por nós tantas vezes palmilhados. Por vezes Nau, pironilha, Gabriel Pereira, Bombeiros, pironilha, Nau, outras vezes vice-versa, para lá e para cá, em amena conversa comigo mesmo e tu, sempre presente, tanto mais presente quão te sinto ausente, ausente em parte incerta sendo isso que me atormenta e desconcerta.
Ainda visíveis restos do mural de antanho

E enquanto as gentes pintavam de cores garridas o muro, o mural, tu julgavas-me e eu temia me julgasses mal. Afinal durámos mais que o muro, digo mais que o mural, cuja longa vida cedo se extinguiu e hoje de novo uma velha e esquecida parede, talvez até novo acontecimento a convocar e dela faça de novo tela, ou um outro casal de namorados debaixo dela passe e se contemple, se julgue e se prometa como nós prometemos;

- Até que a morte nos separe.

e separou, abalaste, e eu para aqui estou gerindo o vazio que me deixaste, chorando-te mais que lembrando-te, sentindo por ti mais desejo que saudade.

Acompanhar-te todos estes anos não foi consolo amor, foi dádiva dos céus que os céus traindo-me cedo me roubaram. Deambular é sina minha. Não consigo, não voltei a encontrar o meu lugar querida, o mundo parece-me outro sem ti e todos os lugares me surgem novos, desconhecidos, assustadores.

São temores amor, são só temores, são só horrores, pesadelos, dias, noites, uma tristeza sem fim.

Enquanto gentes pintavam um garrido mural, tu julgavas-me...