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quinta-feira, 2 de maio de 2019

601 - MURAL / MORAL / PAIXÃO / SAUDADE ...

A terra a quem a trabalha
               

Agora nada. Agora de novo uma simples parede alta que fora alva como quase todas na cidade mas não então, então, nesse dia radioso uma trupe afadigava-se desenhando nela e pintando-a, uns por baixo outros por cima, uns de lado outros pendurados ou encavalitados em escadas e escadotes, crianças na relva aos pinotes, e o paredão volvendo tela, pintura, picture, celebração, recordação.

Recordo bem esse domingo do verão quente de 75, esse feliz 6 de Julho, recordo bem o dia e o lugar, lembro menos mal a azáfama sem igual, um cravo, uma ceifeira, gentes, soldados, uma visão, crentes, alarido, festa, liberdade, e tu ponderando a avaliação, olhando-me, mirando-me de cima abaixo, sopesando-me e sorrindo irónica ou matreira, de qualquer maneira ponderando, avaliando, não o mural mas a mim mesmo, a mim e à minha atitude, firmemente tomada e tornada perante ti questão moral.
Aqui se fez história

Apaixonarmo-nos é quedarmo-nos,  submetermo-nos, sujeitarmo-nos esperançados a uma qualquer ponderação, a quaisquer criteriosas avaliações, cedermos, arriscarmos,  e eu esperando expectante, temente, duvidando no momento do julgamento da tua habitual razoabilidade, medroso de que esse teu racionalismo me julgasse mal, receoso que, o que tanto em ti gabava me ditasse uma má sorte sem igual.

Enervado olhava e comentava o mural, o porte das gentes exortadas, o garbo da ação concertada que os gentios procuravam eternizar, tornar imortal pintando-a na pedra como havia feito o homem das cavernas, homem que eu me sentia julgando as pernas tremer, buscando um lugar onde sentar- me, onde nos sentarmos, contudo não o lobrigando.

Hoje e muitos outros dias precisei e precisarei sentar-me perto de ti recordando-te e não soube nem saberei onde nem como, talvez asneira essa tua ideia da doação do corpo à ciência, não há uma campa onde me dirigir, que limpar e florir, não há uma urna com cinzas para adorar e ante a qual ajoelhar, somente uma lembrança tua, uma memória tua, uma recordação tua. Mas quem ousava contrariar-te ?
De mãos dadas passámos aquele arco

Por isso eu aqui, percorrendo à mesma hora o mesmo caminho que trilhámos de mãos dadas tanto nos momentos felizes como nos mais cruciantes das nossas vidas, ou deverei dizer da nossa vida visto ter sido ali que oficialmente essa vida começou ? Ou não foi ali que tu oficialmente me aprovaste ? Deambulo por aqui muitas vezes, desço do jardim Diana onde sempre nos demorámos e percorro a passo lento este percurso até a Igreja do Espírito Santo, dela guino para as Portas de Moura, Jardim do Bacalhau e última paragem antes que na noite soassem as doze badaladas, antes disso estarias no Farrobo, na Travessa da Viola e em casa da avó Joaquina, sem perder o tino nem o sapatinho, sem coches de abóbora e sem que se visse um único ratinho.
O muro agora tornando ao antes da festa

Naquele dia, no dia do julgamento o passeio foi a horas vivas e vivaças, estando as gentes pintando o mural naquele muro, naquele enorme paredão. Viçosas em seu redor as flores, a relva, e tu cuja vida prometia alegria e a companhia felicidade eterna.

Recordar-te enquanto marcho é o que me resta para preencher o vazio em que me deixaste. A horas certas tenho percorrido sozinho em passo lento os mesmos caminhos por nós tantas vezes palmilhados. Por vezes Nau, pironilha, Gabriel Pereira, Bombeiros, pironilha, Nau, outras vezes vice-versa, para lá e para cá, em amena conversa comigo mesmo e tu, sempre presente, tanto mais presente quão te sinto ausente, ausente em parte incerta sendo isso que me atormenta e desconcerta.
Ainda visíveis restos do mural de antanho

E enquanto as gentes pintavam de cores garridas o muro, o mural, tu julgavas-me e eu temia me julgasses mal. Afinal durámos mais que o muro, digo mais que o mural, cuja longa vida cedo se extinguiu e hoje de novo uma velha e esquecida parede, talvez até novo acontecimento a convocar e dela faça de novo tela, ou um outro casal de namorados debaixo dela passe e se contemple, se julgue e se prometa como nós prometemos;

- Até que a morte nos separe.

e separou, abalaste, e eu para aqui estou gerindo o vazio que me deixaste, chorando-te mais que lembrando-te, sentindo por ti mais desejo que saudade.

Acompanhar-te todos estes anos não foi consolo amor, foi dádiva dos céus que os céus traindo-me cedo me roubaram. Deambular é sina minha. Não consigo, não voltei a encontrar o meu lugar querida, o mundo parece-me outro sem ti e todos os lugares me surgem novos, desconhecidos, assustadores.

São temores amor, são só temores, são só horrores, pesadelos, dias, noites, uma tristeza sem fim.

Enquanto gentes pintavam um garrido mural, tu julgavas-me... 


quarta-feira, 11 de junho de 2014

193 - UMA FANTASIA VELHA ..............

  
Levou o dedo à boca e molhou-lhe a ponta com a língua. Estava nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada, para isso contribuía. Era um sonho velho, melhor dizendo, era uma velha fantasia.

Lembrava-se vagamente do filme em que vira uma cena assim pela primeira vez. Tornou-se-lhe desde aí fixação. O nome do filme esquecera-o há muito, a voluptuosidade da cena nunca mais lembrara, melhor dizendo, quer dizer, até hoje.

Há coisas que crescem connosco, sonhos que se alimentam e dos quais por sua vez nos alimentamos, era o caso. Na idade em que o vi aquele filme marcou-me, posso adiantar que naquela época eu não sabia nem conhecia nada de nada por assim dizer. Melhor dizendo, eu não sabia mesmo nada.

Fui aprendendo com o que vi e ouvi, muitas vezes mal e porcamente pois por vezes nem entendia o que mesmo à minha frente acontecia. Não entendia nem perguntava a quem soubesse, e escondia atrás de alguma fanfarronice a minha nunca assumida ignorância.

Talvez fosse melhor dizer boçalidade, pelo menos em relação a alguns assuntos candentes, hoje reconheço-o, mas naquela altura não o seria nem mais nem menos que quaisquer outros dos que me rodeavam, melhor dizendo, era e éramos uma trupe de labregos xico-espertos, ainda hoje o seria não tivessem sido as minhas primas, especialmente as duas de Lisboa que eram mais ricas, posso mesmo dizer ter sido com elas que, admirado, me espantei com tanta coisa que nem sabia, melhor dizendo, tanta coisa com que nem sequer sonhava.

Há coisas que não se aprendem na escola, se há…
E tantas coisas, ó se há …

Fiz cinquenta anos o verão passado e posso garantir-vos que, metade delas, os meus velhos amigos inda as não sabem. Há coisas que não se ensinam a ninguém, se há … tantas coisas… ó se há …

Errei, admito, algumas vezes errei, admito-o, mas nunca mais cometi duas vezes o mesmo erro, melhor dizendo, os mesmos erros.

- E não digas que vais daqui !

Que é como quem diz come e cala, ou a papa se acaba, era mais ou menos assim que a Miquelina rematava cada lição que me dava, ou melhor dizendo, que me davam, porque parecia mesmo que estavam combinadas, a Miquelina e a Jacinta, mas não estavam, melhor dizendo, não sei se estavam, nem sei inda hoje se não estariam.

A mecânica da coisa foi-me explicada detalhadamente por uma delas, nem eu me lembro nem interessa qual, porque afinal ambas gostavam que o fizesse daquele modo, sem aquilo era tempo perdido, porque mais minuto menos minuto para conseguir um resultado minimamente satisfatório tinha que levar o dedo à boca e molhar-lhe a ponta com a língua.

Embora a situação já não fosse inesperada continuava a excitar-me, só a ideia por si só já me excitava, para melhor dizer adianto que nem era por a coisa ter sido fantasia ou fixação que perdia o encanto, bem pelo contrário, no que me toca posso afirmar que o potenciava, melhor dizendo, quero dizer que ampliava, aumentava, porque a língua portuguesa é muito traiçoeira e potenciava, se bem que seja uma expressão potente, melhor dizendo, forte, atira-nos para o universo das possibilidades, potencialmente possíveis, eu diria que, em potencia em possibilidade está ali, pode acontecer ou não acontecer, tem essa capacidade, essa possibilidade, se faz ou não uso dela é outra conversa, quero dizer é outra questão.

Isto é como tudo, quero dizer cada um terá a sua perspectiva, e de acordo com a sua própria experiencia pessoal, nem todos temos iguais ideias acerca do perfeccionismo por exemplo, ou da higiene, pelo que cada um terá o seu modo próprio de o fazer não será ?

Fiquei-me por perfeccionismo e higiene para não me alongar, quer-se dizer-se para não vos maçar com conversas de treta, melhor dizendo com conversas de merda, mas certamente já intuíram que poderíamos não nos limitarmos a essas duas premissas e invocar com o mesmo direito a eficiência por exemplo, a invocar ou a convocar, é como quem diz, chamar, trazer, não subtrair à colação se me faço entender, e com base no mesmo espírito de apreciação, ou observação, como queiram, é-me indiferente, há modos diversos de dizer o mesmo, as palavras são como as cerejas ou como as conversas, já nem sei o que digo, perdi-me um pouco, melhor fazer uma pausa, quero dizer um momento de reflexão.

Voltemos pé ante pé atrás, sei que recordava a Júlia a Jacinta e a Miquelina, nem sei por que não me  saem hoje do pensamento, quer dizer eu lembrava-as, mas lembrava-as a propósito de quê ?

Rememorando, lembranças do cinema, quero dizer daquele filme que se me tornou obsessão, melhor dizendo, fixação, ora quero dizer que eu lembrava uma minha fantasia, e não temam porque não me vou pôr aqui a arengar ou a desbobiná-las todas porque o fio à meada já eu perdi, e vamos lá a ver é se mesmo assim consigo desenrolar o novelo, melhor dizendo retomar os pensamentos onde os perdi, e por falar em perder já me ocorreu, acabei de me lembrar, melhor dizendo, relembrar.

Levei o dedo à boca e molhei a ponta com a língua. Fiquei nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada para mim contribuiu para isso.

Era um velho sonho, melhor dizendo, uma velha fantasia.

E depois de ter aberto as malas, no filme eram duas malas cheias de dinheiro, uma vermelha e uma preta, abraçaram os maços de notas em cada uma, à vez, tendo começado a contar cada nota de cada molhe, quero dizer maço, mais por voluptuosidade que outra coisa pois que contá-las todas lhes levariam duas vidas e esse tempo era coisa que decididamente já não tinham.

Mas para ser franco já nem recordo bem todos os pormenores, diria que como aquele da Miquelina, dela e das outras,

- E não digas que vais daqui ! 

- Come e cala, ou a papa acaba-se-te, rematavam...

Melhor dizendo, gritavam ou segredavam, ou sussurravam para não dizerem que falto à exactidão das coisas, e nisso parecia mesmo que estavam combinadas, mas acho que nem estavam, para melhor dizer não sei se estariam, só sei que qualquer delas invocava dois motivos muito importantes para me exigir que me calasse, quer dizer era uma coisa que faziam especialmente por duas ordens de razões, por tudo e por nada.

Lembro sim que uma delas adorava entalar-me a mão nas coxas quentes, era uma coisa que ela apreciava fazer, isso lembro, e depois ria-se às gargalhadas com o inusitado da suspensão, claro que não passávamos a tarde nisto, mas era um bloqueio que concitava ao avanço, ambos o sabíamos, o que eu já não sei mesmo é qual delas tinha essa mania, quero dizer esse tique, melhor dizendo não me recordo a qual delas atribuir esse capricho, mas diria que apesar de tudo me faço entender ou melhor dizendo me faço perceber.

E vocês que acham ? 




sábado, 7 de junho de 2014

192 - MAGDALENA ...................................................


Carregava sobre os ombros frágeis trinta e três anos de constrangimentos. Nem sonhar lhe era permitido, nem olhar com atenção, ou demoradamente, nem devaneios, que se percebidos seriam severamente castigados.

Restava-lhe, como a tantas outras, dedicar-se à família, ou ao marido se o tivesse, senão esperar que Deus Pai lhe concedesse a graça de a entregar a um, e a felicidade de ser bem aceite, bem tratada e considerada, capitulo em que já nem se atrevia a pedir mais que a conta esperada. Até lá ia-se entregando com espírito de missão a uma vida recatada, apagada, dedicada aos afazeres domésticos, à prática do culto, às sementeiras, à fiação e ao tão honrado quão odiado mister da submissão.

Da primeira vez que o viu amassava figulino para acrescento da casa patriarcal, e enquanto os pés lhe dançavam no barro escorregadio ousou levantar a vista numa curiosidade disfarçada, mirando de alto a baixo aquele carpinteiro de sandálias e tez morena que, de modos calmos, discutia com seu pai a altura das aduelas e a medida de uma janela.

O porte erecto jogou a favor dele, e uma túnica limpa caindo a direito testemunhava-lhe o ar saudável e acrescentava-lhe a altura. Uma barba aparada rematou a imagem que nas noites seguintes havia de atormentá-la em sonhos e pesadelos que nem diferenciava já, pois o peito lhe batia em ambos e em ambos era obrigada a abafar os suspiros que da alma se soltavam.

Tudo almejava ainda olvidar quando voltou a vê-lo. Desta vez conduzindo uma carroça e vários molhes de caniço-colmo que seu pai lhe encomendara para cobrir o telhado da nova habitação tendo notado, com um estremeção que a pregou ao chão quando mais dali queria fugir, que também ele reparara nela, e ousou até pensar se a demorada conversa entre tão simpático carpinteiro e seu pai a envolveria, pois estava em idade de casar. Seu pai nada lhe dissera sobre o abordado com o dedicado carpinteiro e ela nada se atreveu a perguntar-lhe, confiando que estaria ciente da necessidade em casar uma filha que tardava em sair-lhe de casa. Seria ele ainda solteiro ?

Este pressuposto, que nunca lhe ocorrera, deixava-a agora prostrada roubando-lhe o sono das noites estreladas em cujo firmamento o julgava caminhando a seu lado, não à sua frente, e isso lhe bastava para que os sentidos, em alerta, avivassem um instinto maternal que julgara abafado, enquanto se sentia convocada pela natureza para um festim e os seios, arfando aflitos, lhe aumentavam de volume e lhe subiam no peito, queimando-a e afrontando-a, num martírio a que não sabia pôr fim.

De verdade nem queria dar fim a essa inquietação, custava-lhe, mas entregava-se-lhe em deliquescente meditação grande parte das noites, só parando quando, vencida pelo mesmo cansaço que lhe acentuava a urgência do corpo, ditando-lhe que devia há muitos anos ter sido esposa e mãe, e que a idade, avançando inexoravelmente sem que uma qualquer solução lhe cumprisse o destino, tornando-lho mais difícil quanto mais tardiamente consumado, ditava-lhe uma sensação de perdição que procurava abafar na oração, lugar e modo de buscar as respostas que a alma lhe negava. No próximo domingo iria ao templo, devota, fazer as suas costumeiras libações e orações.

Acabara-as nesse domingo quando se deparou com o jovial carpinteiro, e as faces ruborizaram-se-lhe. Zangado, ele expulsava do templo com palavras rudes e gestos expressivos os vendilhões e sentiu-se exortado por grande parte das gentes que assistiam à cena, que o aplaudiram com uma veemência impossível de não ser percebida por ele. No rescaldo dos distúrbios ficou-lhe um convite, por ele dirigido à populaça para que o seguissem e lhe ouvissem a “palavra“ do Deus Pai e fossem seguidos os Seus ensinamentos. Ela aceitou, prometendo voltar, e essa semana de impaciência não se lhe aproveitou nem a deixou dormir sossegada.

Foi fácil segui-lo e mais fácil ainda divulgar-lhe a palavra. Sentiu-se nascida para aquilo e pela primeira vez julgou ter encontrado um sentido para a vida.

A admiração por aquele homem depressa passaria de empatia a arrebatamento, e deste a platónica paixão foi um passo bem curtinho.

Com ele difundiu a palavra e tomou a luta contra prepotências e desmandos, pelo direito à dignidade do homem, feito à semelhança e imagem de Deus e, como ele, foi perseguida e expulsa, muitas vezes difamada e apedrejada, tendo não raro que fugir para se manter viva.

Valia-lhe nessas ocasiões o conforto da atenção dele, o seu carinho desinteressado, até que, num dia mais amargo se pôde recolher no seu abraço e sentiu que também ele recuperava forças se acolhido entre os seus braços.

A palavra foi-lhes o móbil enquanto não se entenderam com um simples olhar, depois foi o olhar abrindo-lhes todos os caminhos e ditando todos os limites que, paulatinamente, se entretiveram ultrapassando.

Mais que a palavra movia-os agora a fé e o amor, e furiosamente expiaram na carne os pecados dos homens, para no fim de cada dia e na hora do balanço, sempre encontrarem motivo e tempo para se recomporem das injustiças do mundo e se reconfortarem das iniquidades sofridas, para se amarem perdidamente.

- “Amai-vos e multiplicai-vos” pregava a palavra do Pai.

E amaram-se 
apaixonada, desalmada, frenetica e compulsivamente, tendo a fé e a paixão como vício, nela encontraram linimento à incompreensão dos homens de alma impura, impenetrável, dura.

A vida, que antes tivera parada, acossava-a agora, e a palavra e a fuga tornaram-se duas faces de uma mesma moeda. A necessidade de dádiva tornara-se-lhes mais forte que a de entrega. 

Aprenderiam que o coração não era lugar onde se pudesse viver, e a precariedade da vida não lhes permitiu o “multiplicai-vos”.

Ele agoniou entre ladrões, traído, ela encetou uma fuga épica e migrou para Marselha onde expiou, até ao impossível, tanto amor vivido e que lhe foi negado.

Exemplo de dignidade impossível de esquecer, todas as preces no viático imploraram que a tornassem santa.

E assim se fez.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

191 - FOI POR ELA , FOI POR ISSO ...…


Ela sorriu, com a cara entalada entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.

Debaixo da dor lancinante berrei e fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.

Ela sorria e mostrava-me os polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e dando fim ao episódio.

- Lindo ! Estás lindo outra vez !

E espetou-me um beijo na bochecha ainda doída.

E foi assim.

E foi por isso que a tomei pela cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.

Lembro-me que ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Há dias foi a vez dela, e eu a ver.

Sentada na cadeira da dentista, nem a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e dava-nos confiança.

O prédio tinha sido totalmente recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.

Ali, onde agora a recepcionista, dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de madeira vidrada  mostrando os bolos da padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que alimentavam a fornalha.

Aqui, nesta sala, exactamente no lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem cheirava.

Lembro-me bem, era inverno, quase três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava as mãos geladas.

Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o sentimento.
Enrolámo-nos.

Precisamente nesse lugar, hoje, muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.

Queria muito, mas assustava-a o momento.

A médica soletrava-lhe palavras de calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de extrair-lhe o queixal.

Retoiçámos.

Sentiu-se acalmada, confiante, medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes para esboçar um sorriso amarelo.

Como que espantada, num instante abriu muito a boca e soltou um gritinho.

Já estava.

Eu afastei-me um pouco, e sim, era verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a saia.
E nem fizera assim tanto sangue.

Orgulhosa, a médica exibia um grande queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :

- Pronto, já está, afinal não custou nada pois não ?
  Era mais medo que outra coisa querida !

Lembro-me que depois daquilo ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Alguém alvitrou serem quase três da manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do Aurélio.

- Foi por ela, foi por isso que sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias brancas e …

Levantámo-nos num repente, montámos as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…