Agora são verdes, verdinhas da cor da esperança
e mais confortáveis, modernas e humanas. Têm bancos reclináveis individuais
forrados num tecido colorido agradável ao tacto e até ficha eléctrica para
ligar o portátil ou carregar o telemóvel. Muito longe das carruagens de há quase
cinquenta anos e nunca asseadas, bancos de madeira ou napa surrada, por vezes
rasgada, magalas dormindo nos suportes da bagagem de mão sobre as nossas
cabeças.
Era uma corrida, uma marcha apressada
dos prédios da caixa onde ela vivia até à estação. Meia hora ou quase batendo
tacão pela noite dentro que o comboio partia cedo para estar pelas nove em
Lisboa e ainda havia que atravessar o tejo num cacilheiro. Chegava a Évora pela
matina e vinha já repleto de magalas e gentes arrebanhadas desde Elvas e
Estremoz até cá, gente tão bruta quanto a de agora, mas então muito mais
selvagem porém mais genuína.
Agora não nos amontoamos, cada
passageiro tem um bilhete e um lugar reservado, o pica está ligado em rede e
aceita pagamento pelo multibanco. Um espanto.
Espanto nessa época só mesmo nós
dois, a Luisinha e eu, novos, novinhos em folha, novíssimos, primeiro não mas
depois já de aliança no dedo, ar divertido, um indisfarçável ar de felicidade, apaixonados,
descomprometidos. Eu bisando o Ministério da Marinha, ela Santa Maria, Curry
Cabral e companhia. Ver-nos-íamos cada dia da semana, voltaríamos na sexta ou
somente ao fim de semanas, meses, ou anos. O tempo correndo devagar, parado e devagarinho,
a nossa ligação marinando em paciências, esperas e carinhos, a ternura uma
promessa garantida, a meiguice relevando na brejeirice consentida e partilhada,
a doçura animando-nos os sonhos de meninos e tudo junto engrossando o caldo de
saudade em que permanentemente andávamos mergulhados.
É outra hoje a saudade vivida e
sentida. Mui diferente esta paixão siliciosa e masoquista que apadrinho, com a
qual me fustigo numa ânsia de lembrar-te e vinda do fundo de mim que nem um
minuto de descanso me concedo, como se fosse sacrilégio ignorar-te a ti que
caminhas sempre a meu lado, como outrora ocupavas o lugar respectivo no banco
de napa corrido dessas carruagens em que eras estrela viçosa, jovem, alegre e
bem formosa.
É outro hoje o mundo, não somente por
terem passado por ele mais de quatro décadas, não só devido a melhorias,
progresso e as tecnologias terem assentado arraiais na praça, mas porque nele
falta o principal, tu, tu que davas sentido às coisas, mantinhas o mundo nos
eixos e eu tinha onde me agarrar. Agora foge-me o chão debaixo dos pés, nada é
firme, nada é certo, tudo é inseguro e o meu mundo, dantes um Jardim das Delícias*
é agora um deserto sem sombra, sem água, sem um oásis ou ao menos uma qualquer
enganadora miragem onde, por momentos pudesse dessedentar-me e descansar desta
caminhada sob o sol abrasador da tua ausência.
És uma obsessão que me cresta e abre
chagas ao derramares sobre mim memórias vivas em todos os lugares por onde
passo, por onde passámos, e que revivo com excitante assombro e dor apaixonada
numa subtileza inocente, cujos matizes e cambiantes me mudam a disposição da
noite para o dia num minuto, quando não num segundo, tudo dependendo de Cronos
** da força da lembrança, da nitidez da miragem, da sede de ti e da saudade do
momento.
Hoje é o comboio que te traz até mim,
mas pode ser uma música, uma imagem, o título de um livro ou de um filme, uma
frase que alguém profira, uma palavra, um gesto, um objecto com que me depare,
um gancho do cabelo, um guarda-jóias, a lata da laca, sete escravas, a tua escova de dentes no
copo e ele por sua vez ainda no lugar onde o deixaste, no lugar de sempre no
armário da casa de banho, as cortinas das janelas ainda por
mudar e as quais nem me atrevo a trocar.
Mas é sempre linda e jovem que te
vejo, revejo, lembro, imagino e sonho pois sempre foste e continuas sendo para
mim um sonho lindo.
Assim me encerro em silêncios e reflexões
despoletadas pelo mais pequeno pormenor, por quaisquer aparentemente pequenos
factos e hoje, que coloquei no roupeiro da arrecadação toda a roupa de inverno
e de lá trouxe a de verão, quedei-me no robe verde de seda que me ofereceras
tocando o tecido entre os dedos e, fechados os olhos foi a ti que lembrei na
tua imaculada camisa de dormir até aos pés e em seda branca, tu e eu enredados
nela, comprida demais naquelas horas em que nós, e eu impaciente a levantava
impetuoso porque todos os minutos e todos os segundos perdidos eram dano e o
amor urgia, clamava e irrompia feroz até que a saciedade e o cansaço nos dessem
a calma e a paz diariamente procurada e construída com a mesma paciência amor e
carinho com que eram feitas as surpreendentes quão majestosas construções de
areia que víamos no Tamariz na Nazaré ou no Algarve.
Depois, como em suave quietação o fluxo e refluxo das
ondas na praia arrasta em vai-vem algodão doce ou espuma e serenidade, e nós, abraçados,
sentindo esse mar calmo, essas ondas frescas arrefecendo a fornalha das turbinas,
testa com testa, nariz com nariz, lábios, línguas, até a tua face roçagar a minha
e eu, deleitado, adormecer sonhando por ser deitado que melhor te sonho lembro
e choro, escondido de todos escondido de tudo, só tu e eu e esta dor insana, tu
e eu e esta cidade agora sem nexo, este mundo absurdo, indiferente e todo
igual, sem charme nem piada onde tudo se repete até à exaustão, até cansar,
apesar do constatado, nada dá em nada, nada conduz a lado algum e afinal o mais
livre de todos sou eu, prisioneiro de mim mesmo mas fora deste labirinto de
enganos onde loucos, todos loucos, parecem ter perdido o fio à meada.
Mundo onde talvez seja mais fácil encontrar-te a ti que um qualquer magote de gente atinada.
Mundo onde talvez seja mais fácil encontrar-te a ti que um qualquer magote de gente atinada.