terça-feira, 30 de novembro de 2021

FERNANDO PESSOA, UM LIBERAL À DIREITA.

 


739 - FERNANDO PESSOA, UM LIBERAL À DIREITA
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FERNANDO PESSOA - reflexões sobre estética e ética da sua obra  “PAGINAS DE ESTÉTICA E DE TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA”

 

Nesta obra que por milagre me veio parar às mãos num alfarrabista, de Fernando Pessoa estão reunidos alguns fragmentos dispersos do seu pensamento, por vezes escassos mas contudo autênticos e geralmente condensados de modo brilhante.

 

Pelas suas características e necessidade há muito procurava este livro, naturalmente esgotadíssimo pois é raro que sejam reeditadas obras que garantam pouca saída e ainda um menor lucro comercial. Uma pérola a cujo estudo me dediquei de imediato.

 

Trata-se de fragmentos esparsos do pensamento de Fernando Pessoa (F.P.), um pensamento que todavia parece nunca ter fim. Folhas soltas, agendas, cadernos, em tudo que tinha à mão o mestre F.P. escrevinhava e anotava o que lhe ia na alma. São esses fragmentos dispersos do seu pensamento, que agora, bem aglomerados ou condensados, que diria mais parecendo nunca terminarem.

 

Ainda que soltos, o trabalho dos feitores do livro foi precisamente juntarem-nos por temas, estão como disse brilhantemente interligados, constituindo uma torrente de pensamento, ou se quiserem uma corrente, quer dedutiva quer intuitiva, mas sempre tecendo uma tal rede de relações entre si que nos permitem sem qualquer margem de erro formular ou formatar a partir deles a sua concepção ética.

 

Ética por ser sobretudo de estética e crítica que a obra trata, e onde vimos críticas estéticas vimos análise, quantificação já que, quer a crítica quer a avaliação estética implicam uma escala de valores, uma apreciação, uma comparação com, uma medição a partir ou baseada em, sendo esse “em” o conjunto de valores ou regras, entre eles os éticos, os da moral, que enformam a apreciação crítica e acabam por sobressair numa obra não especificamente a eles dedicada.   

 

Fragmentos sim, mas que porém nos permitem formular acerca de si, dele, uma unidade, uma coerência, aliás consentida pela repetição obsessiva dos temas, de citações ou fórmulas que, inda que fragmentadas e tão esparsas quão escassas, nos desvendam contudo a unicidade, o rumo, a raiz do seu pensamento. São de tal ordem que poderei dizer estar F.P. a mostrar-nos a raiz escondida do seu pensamento mais íntimo que, ainda que abstracto, não se desvia do raciocínio puro, especulativo, abrindo-nos a alma, coisa a que parece anuir.

 

Foi o facto de parecer desejar que possamos observar o seu pensamento, ético e estético, mostrando-nos ou permitindo-nos reconhecer nele Fernando Pessoa a existência consciente que tem da importância do seu papel, dessa sua missão espiritual pois conhecia-se a si mesmo, sabia o seu próprio valor, sabendo como influenciar, tendo consciência de que influenciaria as gerações futuras, e como tal entendia que devia doar à humanidade o produto do seu génio, que me levou, primeiro inconscientemente, depois com acutilância a dar atenção a ele, pensamento, tanto quanto às expressões por ele tidas ou demonstradas, e que me levaram a compará-lo com uma outra personalidade ultimamente muito em voga, ultimamente muito reconhecida, diria que finalmente reconhecida e respeitada, tanto quanto o foi e é Fernando Pessoa.

 

Passaram quarenta e sete anos sobre o 25 de Abril, o qual não só se limitou a derrubar um regime e uma elite aos quais a maioria dos portugueses não dedicava apreço, para não dizer pior, quarenta e sete anos durante o qual se malhou nesse regime a despeito de tudo e de nada sem contudo o tentar perceber, estudar ou perceber. Os portugueses apercebem-se agora, lentamente é certo, que o dito regime tem as costas largas e tudo que é culpa lhe é atirada acima, em especial do elemento ou personagem que mais personifica (desculpem a redundância) esse regime e à frente do qual se manteve durante mais tempo, António de Oliveira Salazar.

 

Certamente de forma não inocente nem negligenciável A. O. Salazar ganhou há poucos anos um concurso da RTP destinado a premiar o português mais ilustre e competente da nossa história. Para surpresa de muita gente e apesar de tanto malharem nele António de Oliveira Salazar ganhou folgada e exuberantemente a contenda. Parece ter sido a partir daí que as consciências se abriram e procuraram analisá-lo de modo coerente, e em especial comparar a sua acção com os feitos da nossa recente democracia, pleito que uma vez mais António de Oliveira Salazar parece estar a vencer sem concorrência. Com efeito, se comparadas as realizações de trinta e seis anos de governo Salazarista com os quarenta e sete que esta democracia já leva ninguém poderá duvidar que fomos enganados. Esta democracia não presta, nem merece chamar-se democracia.

 

Fernando Pessoa conhecia o seu próprio valor, tinha consciência dele, pois sobre tudo reflectia conscientemente estando cônscio da sua superioridade intelectual e cultural, podendo com justiça aferir-se a partir desses “fragmentos” existir nele uma sede de imortalidade que aliás se encontra plasmada também nas páginas de “Erostratus” e de “Impermanence”.

 

E pergunto eu, não se tornou ele e imortal ? Ele e os seus heterónimos ? Ele e o seu pensamento ?

 

Prendeu-me a ele em especial um pensamento alusivo ao génio e ao talento citado na página oitava (XIII) da introdução, muito p’lo modo como ele admirava o génio, em especial os grandes génios da humanidade, ora vejamos;

 

A essência do génio é ficar incompreendido na própria época e ser descoberto pela época seguinte, prevendo assim o seu próprio destino.

Cada época reage, diz-nos Fernando Pessoa, contra as fórmulas mortas da época precedente e venera os génios que, nessa altura viveram em oposição ao seu tempo.

O que o génio pode esperar dos seus contemporâneos, é o desprezo: e quanto mais nobre o génio, menos nobre o destino.

 

E não foi assim com Salazar ? Não o ignorámos primeiro pra o desprezar depois ? Não foi ele, mais que incompreendido, escondido dos portugueses por outros portugueses ?

 

Fernando Pessoa era extraordinariamente dedutivo e perspicaz, e a sua exposição, a sua expressão escrita, o seu legado, é quanto a isso mais que suficientemente esclarecedor.

 

Segundo Fernando Pessoa o homem génio é aquele que supera a sua época por estar em oposição a ela, dividindo os homens em superiores e inferiores, com os génios acima da espécie enquanto os restantes são os ignotos, “meros componentes da massa ignara”, havendo que colocar entre os génios e o povo uma barreira que ele nunca possa transpor…

 

Não esteve Salazar sempre acima de tudo e todos ? Não estabeleceu ele uma barreira entra a massa ignara e o poder que representava, que exercia  ?

 

Certamente F. P. nos deu neste testemunho uma concepção mítica mas desumanizada do génio, porém outros escritos nos ajudam a conjugar esta sua concepção antidemocrática com a pouca fé por ele tida na democracia.

 

Todavia nunca existiu a mínima dúvida de que Fernando Pessoa era um patriota, definindo Portugal como criador de um elemento básico da civilização moderna, o universalismo, ou a universalidade, pois demos mundos ao mundo, mas de igual forma é capaz ou foi capaz de certeiramente acentuar a nossa pobreza cultural caracterizando exemplarmente o provincianismo mental português, mal de que infelizmente ainda padecemos.

 

 Quanto a ele seríamos e somos uma espécie de adjacência civilizada da Europa, e que somos não um país de poetas como dizem os idiotas (palavras dele), mas um país de mandriões. Neste item daremos igualmente razão a António Sérgio que de idêntico modo nos classificou, item que é corroborado pelos estudos que Hernâni Cidade nos deixou sobre nós enquanto povo.

 


O prefácio de Georg Rudolf Lind e a participação de Jacinto Prado Coelho e outros valoraram imenso esta obra, já de si muito hermética, como são muitos dos pensamentos de Fernando Pessoa, digamos que as suas colaborações são valiosíssimas no contexto e conteúdo que o livro aborda.

 

Despertou sobremaneira a minha curiosidade uma carta de Fernando Pessoa a Marinetti* (o futurista) em que afirma categoricamente;

Se houvesse que sacrificar um povo, isso significaria a perda para sempre de um aspecto multitudinário da existência e, por este motivo procuro o nacionalismo com um propósito puramente ultranacionalista” … (in a History Of a Dictatorship, Cap. VII nº 12)

 

Do que deduzi ser Fernando Pessoa um ultranacionalista nacionalista, classificação que sobre Salazar assenta maravilhosamente e metodicamente tem sido nas últimas décadas malhada sobre a sua memória.

 

A dado passo interroga-se Fernando Pessoa acerca das qualidades do homem competente enumerando-as;

Conhecimento

Espírito imparcial

Objectividade

Isenção

Competência

Responsabilidade

 

Ora basta compararmos estas qualidades com o perfil de Salazar e o de qualquer um dos nossos ilustres e democráticos políticos para formularmos um juízo de valor em que, sem qualquer dúvida Salazar sairá a ganhar

 

Definindo a injustiça como a justiça dos fortes e caracterizando o homem de hoje como diminuto, e que gradualmente cada vez mais governar é administrar, guiar, Fernando Pessoa reconhece contudo colocar-se-nos desde o século XX um problema fundamental, conciliar a ordem, de âmbito intelectual e impessoal, com emoção imaginativa dos tempos recentes, o que considerava de todo muito difícil, se não impossível. Todavia, numa época em que o mundo esteve conturbado como nunca aconteceu nos tempos recentes, o génio de Salazar soube conciliar esse problema, talvez não de forma magistral mas no mínimo satisfatória. Ao invés, em quarenta e sete anos de paz e bonança temos feito da vida do e no país uma tormenta…

 

Hoje, digo eu, o sonho de governar, administrar, guiar, está reservado a bem poucos eleitos, e como razão e emoção tendem a contrariar-se, a combater-se, arrogo-me nesse capítulo o direito de encaminhar os meus amigos e leitores para os livros do casal Damásio, António e Hanna Damásio, especialistas no item, certamente gostarão de saber a opinião deles. Fica o link **

 

Que preciosismos e ensinamentos extraí do livrinho ? Que a nossa direita andou cega e perdida durante quase cinquenta anos, tendo sido incapaz de alinhar entre as suas figuras históricas uma personalidade impar como foi Fernando Pessoa.

 

Não tenho a menor dúvida ter-se tratado de um nacionalista, liberal e politicamente alinhado à direita. Folgo com isso, tanto quanto me entristece confirmar que a inteligência e a cultura nunca foram preocupação dos nossos dirigentes ou figuras politicas alinhadas à direita.

 

Do pequeno CDS poderia até dizer-se nem saberem quantos por lá andam o que seja a práxis da democracia cristã. Certamente andarão, há quase meio século, com a preocupação centrada nas herdades que perderam durante o Prec, decerto não no futuro e muito menos nos outros como compete a qualquer bom cristão.

 

Razão tinha Fernando Pessoa que dividia os homens em superiores e inferiores … Massa ignara dizia ele… 


* https://pt.wikipedia.org/wiki/Filippo_Tommaso_Marinetti

 

** https://expresso.pt/premio-pessoa/laureados/2010-10-31-Laureado-Premio-Pessoa-1992---Antonio-e-Hanna-Damasio


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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

ANDRÉ VENTURA, UM TRIBUNO EM TRIBUNAL

 

Eu e  A. V. quando ainda fazíamos juras de amor. 


                 738 - ANDRÉ VENTURA UM TRIBUNO EM TRIBUNAL 


Os acontecimentos dos últimos tempos têm-me chamado a atenção para André Ventura, sem qualquer sombra de dúvida um dos melhores tribunos que têm surgido na AR, se não o melhor deles todos.

 

A. V. agarra temas e oportunidades d'uma maneira nunca antes vista, dissecando tudo magistralmente em três tempos, de modo claro, sucinto e arrebatador, como deve ser o falar de um tribuno, de qualquer tribuno uma vez no púlpito de onde lhe caiba defender os interesses deste povo e deste país.

 

Não é caso único mas é extraordinário. André Ventura tem o dom da palavra, verdade seja dita, há que reconhecê-lo, mas também tem uma liberdade que outros tribunos não têm, pois se limitam a ser a voz do dono, a falar só quando os deixam, e a dizer somente o que lhes mandam ou consentem. Estão prisioneiros dos partidos a que pertencem, André Ventura não, e é essa a sua vantagem, porque bons oradores haverá mais entre tantos "castrati" que habitam e habitaram a Assembleia da República.

 

O problema são os partidos, os partidos e o sistema eleitoral, tanto quanto o regimento da AR e a própria Constituição. Ou pertences a um qualquer partido e fazes o que te ordenam

 

ou ficas caladinho, se não, levas no focinho …

 

ou és livre de puxar de temas a teu desejo e de dizeres o que quiseres, mas lembra-te, terás somente três minutos para falar e somente o poderás fazer de quinze em quinze dias.

 

Durante esse breve flash de tempo André Ventura brilha, raramente falha uma oportunidade e, desse modo nos demonstra a todos o que é ser um bom tribuno, um bom deputado, e dando um exemplar exemplo de como todos deveriam ser.

 

O pessoal exulta, quem não exultaria se nos arrebata ? Quem não se sentiria arrebatado se ele coloca precisamente o dedo na ferida que deve ser cuidada ? Temos uma péssima democracia graças ao sistema eleitoral, a uma velha e caduca Constituição, da qual fazem vaca sagrada, mas também graças à ambição dos partidos e ao regime da AR, tudo minudências que ninguém apesar de tudo deseja mudar. O sistema protege-se a si mesmo.

 

Resvalamos direitinhos ao abismo e ninguém dispara o alarme a não ser André Ventura, que não factura mas colhe empatia e simpatia, adeptos, simpatizantes, militantes, tão só por se portar e fazer o que deve ser feito e mais ninguém faz. O sistema fecha-se sobre si mesmo.

 

Um caso de sucesso este André Ventura ? Sem dúvida que sim, sem sombra de dúvida um case study , e o seu reflexo só não é mais positivo porque André Ventura subiu, segundo o Princípio de Peter, o fatal degrau que o colocou acima de si mesmo e da sua capacidade, competência e saber. André Ventura é sem a menor dúvida um bom tribuno, mas é um péssimo político, um gestor e administrador mais que sofrível, e um democrata inqualificável, disso nos tem dado até à exaustão e diariamente péssimos testemunhos.

 

Politicamente está liquidado, o “seu” partido já não terá futuro, parece até que onde André Ventura mete as mãos tira Deus a virtude, o IV Congresso tem sido uma câmara de horrores onde o seu narcisismo exagerado nada mais terá gerado que muitas contestações em tribunal. André Ventura parece desconhecer que, depois de criado, um partido passa a ser uma entidade jurídica autónoma, com vida própria e tendo naturalmente que passar a, como qualquer outra entidade idêntica ou até como quaisquer vulgares cidadãos, a ter que cumprir leis, a reger-se segundo a legislação.

 

Ora A. V., o tal que não quer perder mão do "seu" partido, curiosamente tudo tem feito precisamente para o perder e para acabar com ele. Pior era impossível, as suas atitudes, provando que nada entende de democracia, nem de direito, nem de psicologia, história ou sociologia, e que o levam constantemente a esbarrar contra a Constituição, só provam que o homem, para além de bem-parecido e bem-falante, é um completo ignorante no que de mais essencial há nestas coisas e que, não fora a massa de ainda maiores ignorantes que o assessoram, seguem, aplaudem e ululam em seu redor, há muito se teria apagado.

 

A. V. conseguiu em três tempos rebentar com um partido e consigo mesmo, Cunhal diria;

 

- É obra !!

 

É que um partido não é um automóvel ou um imóvel, não tem livrete nem caderneta predial, não lhe podemos chamar nosso, pois é de todos...

 

Rodeado de idiotas inúteis e perigosos ignorantes, tão ignorantes ou mais que ele, fomentam guerras internas quando deviam poupar os militantes e colocar o foco de tensões fora do partido. (poupar os militantes e os espectadores).

 

- Caros militantes ! Dai-me uma vez mais o vosso apoio ! Preciso de vós para mudar Portugal ! Sem vós estarei desarmado ! E incapaz de levar avante a nossa luta ! Confiai em mim uma vez mais ! Portugal precisa de todos nós !


E, engrandecendo todos alguém duvida que sairia em ombros ? Sem contestação e com uma adesão invejável ? Foi mais acertado chamar-lhes ratinhos e perder metade ou mais do seu eleitorado ? Foi mais acertado fazer dos que ficaram seguidistas ignaros e nada aconselháveis ? Terá sido melhor rodear-se duma turba de gente inútil e incapaz de dar ao menos ou sequer um bom nome ao partido ?

 

Os exemplos vistos, vividos e saídos daquele IV Congresso deitaram e deitarão o Chega ao chão e provocaram e provocarão uma sangria de militantes desiludidos e ofendidos. Um mau serviço prestado a Portugal e à democracia. O país necessita de partidos novos, mas também de gente culta e inteligente, com causas lógicas e pragmáticas.

 

É uma questão de tempo até vermos renovado todo ou quase todo o hemiciclo, e lá estará o Chega com dois ou três deputados, André Ventura na tribuna turbinando e tribunando, sem perceber jamais porque lhe fugiu o chão debaixo dos pés quando todos os imbecis lhe garantiam estar no caminho certo e o piso bom de pisar …

 

Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga …

 

Candidato à Presid. da Câm. Municip. de Évora durante dois meses, depois bati com a porta.

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quinta-feira, 18 de novembro de 2021

737 - MARIA DO ROSÁRIO, A POETISA PINTORA.

                    

                

 Não sou piegas, nem tão pouco um grunho insensível, tenho-me até descoberto no que de mais recôndito em mim existe já que dia após dia a poesia vem, comigo, ganhando maior adesão e significado. Não aprecio poesia por poesia, para ser franco detesto o rimar por rimar da poesia popular com que se enganam os tolos nos jogos florais, compreendo que saia mais barato e dê menos trabalho distribuir prémios que ensinar àquela gente os contornos da poética, cousa a que abro pequenas excepções, como ao poeta António Aleixo por exemplo.

 

Aprecio poesia inteligente, trabalhada, lavrada ou bordada, culta ou como queiram chamar-lhe, e já agora retiro o bordada não vá dar-se o caso de pensarem que a adoro adornada de enfeites e confetes, referi bordada do sentido de trabalhada, no entanto também admiro a poesia espontânea, evidentemente desde que rica de sentido e de conteúdo, substância, forma, corpo, o que a coloca longíssimo das quadras populares dos jogos florais que atrás referi.

 

É neste sentido que sou, e ao longo dos anos me tornei um admirador de Maria do Rosário Pedreira, MRP, a cuja poesia torno e retorno com uma cadência eivada por uma cada vez menor amplitude, pois se chapéus há muitos, e palermas, a poesia de MRP reveste-se porém de limites ilimitados, desculpai-me a contradição e redundância. Ainda que havendo muitos poetas, cada um assinala presença no mundo com a sua marca, o seu estilo, a sua época, ou geografia. Com a sua particular "literatura" MRP é única entre os únicos, “primo inter pares” ela surgiu-me como a poetisa da pintura, Maria do Rosário Pedreira escreve como quem pinta.

 

E pinta mesmo, pinta sensibilidades como quem pinta aguarelas, e do remanso de cada poema surge uma tela, que me sensibiliza até ao mais fundo de mim, até ao íntimo, cousa que eu mesmo desconhecia. O vento despenteando searas, os barcos aos gritos sobre as ondas, a agitação dos dedos fazendo crescer morangos, ou passeando-se insolentes nas sombras de um decote, cores vivas que a poetisa nada impunemente selecciona, grão a grão, pincelada a pincelada, abrindo ante nós paisagens imaginárias e deslumbrantes, sensuais pequenas histórias, as suas histórias, que bem podem ser as grandes histórias do mundo.  



Diz-nos MRP que o amor não cabe num poema, em nenhum poema, nem se enquadra em nenhuma geometria, nenhuma arquitectura, um poema pode ser, deve ser como uma explosão, como cratera em erupção, um trilho abandonado, saudade, farrapos de ausência, pulsão, convulsão, esperança, uma canção, redenção, um raio de sol pela manhã. Um poema é refúgio, repetição, memória, ressurreição, sendo a poesia como as coincidências que nos unem. Amamo-la, à poesia, ou por essas coincidências ou porque nos lembra despojos que o mar deixa de madrugada espalhados numa praia.

 

Maria do Rosário Pedreira, MRP, é exímia até no auto-retrato que nos deixa, um corpo numa tela, como um mapa onde tenhamos a prerrogativa de descobrir ilhas, paraísos, édens, o corpo exposto como um compêndio onde possamos passear os dedos devagar, tocando as linhas com que se cose a costa que nos abre os horizontes, ou as curtas linhas da mão, balizando sombras, conjecturas, sonhos, projectando as ondas que lhe balançam nos olhos. Os poemas de MRP são pedacinhos de vida flutuando na poeira dos dias e que facilmente confundimos com flores que o vento despiu, ou com estrelas escapadas das trevas, pingando luz, quais lágrimas de sol, alvas e puras penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

 

Partida e desilusão vogam também neste seu peculiar e desvendado universo, pois a vida não é nada daquilo que sua mãe lhe dissera quando lhe começaram a crescer os seios. Parco amor e forte solidão depressa murcharam as rosas que lhe deram e por se ter deitado com mais homens que aqueles que amou, quando o que verdadeiramente amou nunca com ela acordou. Perdido o medo de morrer, desertas as ruas, fechadas as janelas, não quer ficar, não quer ver murchar as rosas prometidas pois ninguém virá fechar-lhe as pálpebras debaixo das quais os olhos descansarão como seixos numa praia que o mar nunca tocou...

 

Acicatar-vos o apetite é o meu fito, longe de mim sonegar-vos o prazer da leitura de MRP, só lendo poderemos extasiar-nos e deixar-nos embalar e conduzir por esta mulher que pinta versos, poemas, poesia, como quem nos desvenda e segreda o que lhe vai na alma em cada dia.

 

Boas leituras.



 Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 2 de novembro de 2021

736- LINGUAGEM E METALINGUAGEM ...



737 - "LINGUAGEM E METALINGUAGEM"

 

É pela linguagem que exprimimos o que pensamos,  que sentimos, sendo através dela que de igual modo recebemos as informações sobre nossas relações e o que ocorre no mundo em nosso redor. Podemos ora transmitir ora receber essas informações sobre a realidade de maneira objectiva, focando conceitos, aspectos científicos, teorias, dados concretos, e estados de alma específicos. Podemos também expor os nossos sentimentos, e o que quer que pensemos, através de pareceres permeados por emoções e impressões. Podemos ainda dar atenção à forma de falar, tendo como foco o impacto pretendido na comunicação que estabelecemos.

 

Para a filosofia "ikigai", a metalinguagem visa entender como nos expressamos e reforçamos o nosso comportamento através dela. Desta forma, é possível remodelar este modo de expressão, evitando o fortalecimento das crenças limitantes e promovendo uma estruturação de crenças positivas, ideias e, paradoxalmente, de preconceitos positivos. *  1980.

* Hofstadter, Douglas R.  An Eternal Golden Braid. New York, Vintage Books.

 


"E AGORA A PROPÓSITO DA LINGUAGEM"

Naturalmente sou um sujeito polido, membro civilizado da pólis, da civitas, capricho no trato urbano se calha dirigir-me a outros membros da urbe e também de modo muito natural e somente entre barreiras seguras, íntimas, me excedo ao expressar-me.

 

 Confesso mesmo que aí, seguro nesse casulo “privati” me excedo sem medo, crente que o cimento que une a argamassa, mental e muscular de que quer a linguagem quer um determinado momento são feitos, não passarão de um segredo ferozmente partilhado e nunca cantado aos quatro ventos em espaventos que de extraordinários nada tenham, antes pelo contrário.

 

Portanto, é uma linguagem mais espiritual que banal ou casual aquela que nesses momentos a inspiração me trará aos lábios, como que uma metalinguagem, propositadamente intimista porque o momento poderá não ser de recolhimento mas sê-lo-á certamente de oração, de devoção, de consagração e, havendo fé haverá que dar testemunho dela em especial se ela, a linguagem, a devoção, essa fé e consagração me são exigidos pelo instante vívido que se está vivendo ou atravessando.

 


Resulta dos factos que o seu uso, a sua fala, o recurso a essa terminologia mui própria e no momento exacto, torna a tarefa mais intimista, o ambiente mais leve e, já que estamos falando de leveza, eleva a relação através da espeficidade dessa mesmissíma linguagem e, quiçá dos seus elementos, dos falantes, engrandecendo o resultado final, qualquer que ele seja.

 

Cuidados extremos e atenção pressurosa à linguagem, poderão não nos engrandecer, mas certamente não nos deixarão cair numa frivolidade fútil, mantendo a dignidade que nunca deixámos ou deixaremos de cultivar com parcimónia.


Nessas ocasiões e quando eu despontava para a adolescência, minha avó Imelda, alheia e avessa aos aspectos práticos e semânticos da linguagem, optava por me prantar um escapulário preso à camisola, benzia-me e forçava-me a beber, de um trago e de olhos fechados, uma mistela horrenda cor de capilé e cujo mau cheiro nem a adição de licor de poejo dissipava.

 

Ainda hoje, calhando embriagar-me, acode-me às narinas essa pestilência e o vómito vem-me à goela. Felizmente não tenho esse hábito, contando-se pelos dedos as vezes que tal me sucedeu ao longo de uma vida de exemplar virtude. Vida dedicada ao estudo da linguagem, da semântica, da semiótica, da verdade, do saber, da fratrenidade, do amor e da felicidade.



domingo, 24 de outubro de 2021

ELIZABETH COTTEN, ETERNA VOZ DE MENINA


 

735 - ELIZABETH COTTEN, A ETERNA VOZ DE MENINA

 

Foi simplesmente pura casualidade ou mero acaso, ou isso ou um golpe sorte, mas como nada acontece por acaso fico devedor do Smithsonian,* devedor e grato, já que este preservou as músicas da minha surpreendente descoberta de hoje, um filão, uma velhinha com voz de menina e seu violão.

 

Gosto de música folk americana antiga, de blues, da sua história e dos seus intérpretes ou personagens, que por sua vez alimentaram a erudição ou inspiração d’outros grandes como Bob Dylan Cash, Willie Nelson, Dolly Parton, Kris Kristofferson, Brenda Lee, Patsy Cline e tantos outros e outras que me deliciaram, nos deliciaram. Foi numa dessas pesquisas casuais e aleatórias que dei com ela, com essa menina, perdão essa senhora com voz de menina mas de uma sensibilidade e inteligência raras, sobretudo naqueles tempos em que a raros era dada alguma oportunidade. 


Ouvi-a e depois de a ouvir quis conhecê-la, porque foi um fenómeno em vários aspectos, porque nunca se deixou arrastar por contrariedades, embora tenha vivido num tempo em que elas eram o pão nosso de cada dia. E quanto mais e melhor a conhecia mais a admirava e tanto a admirei que me vieram as lágrimas aos olhos por aquela menina que aprendeu a vida sozinha sem nada lhe ter pedido, nunca, mas a quem deu tudo sem que tal alguma vez lhe tivesse sido exigido.

 


Por sorte a primeira canção que ouvi foi a primeira que escreveu e musicou, aos 12 anos, Freight Train, trem de carga, comboio de carga, o tipo de comboio em que nos EUA os negros do sul fugiam da escravidão para os estados do norte, estados abolicionistas da escravatura, comboios que faziam parte rota da celebérrima Underground Railroad, rota de fuga usada pelos negros antes e depois da guerra da secessão (1850) e usada até aos princípios do século XX. Esse famoso tema, o seu tema de revelação "Freight Train", somente seria gravado em 1957, 50 anos depois de o ter composto, tinha então como dissera, 12 anos. 

 

https://www.youtube.com/watch?v=43-UUeCa6Jw


https://www.youtube.com/watch?v=X9nzFLKsNZk


Aos sete anos começou a tocar banjo e aos 11 já havia juntado algum dinheiro, com o qual comprou uma guitarra. Tornou-se muito boa a tocar esses instrumentos e escreveu 'Freight Train', depois de ver um comboio passar pertinho da sua casa na Rua Lourenço em Raleigh, Carolina do Norte. Mas o que surpreende é que uma criança tenha tido a sensibilidade de plasmar isso, esses factos e esses perigos na sua primeira e melhor canção de sempre, basta que olhemos o poema que dá corpo à canção e atentemos em especial nos versos sublinhados a negrito;

 

TREM DE CARGA

'Freight Train'


Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido

Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido


Por favor, não diga em qual trem eu estou

Eles não saberão por qual caminho eu fui

 

Quando eu morrer e na minha sepultura

E não almejar mais bons momentos aqui

Coloque as pedras na minha cabeça e nos meus pés

Diga a todos que eu fui dormir.

 

Quando eu morrer, senhor, enterre-me bem fundo

No caminho para a velha rua Chestnut

Então eu poderei ouvir a velha Number 9

Conforme ela vem rolando.

  


Elizabeth Cotten teria uns 10 anos quando Mark Twain faleceu, e não sei se chegou a ler as Aventuras de Tom Sawyer e as de Huckleberry Finn ou não. Num tempo em que poucos brancos saberiam ler e escrever é pouco provável que a menina que ela foi, negra ainda por cima, os tivesse lido. Talvez mais tarde o tivesse feito ou lhe tivessem lido essas duas obras que tão bem caracterizam a época em que viveu e as dificuldades que a mesma comportava e Twain tão bem retratou, ele que foi considerado o maior romancista americano de todos os tempos. 


Saber história por vezes só nos faz e traz infelicidade e eu vi o que a sua ligeira biografia não mostrou, uma biografia aligeirada em demasia. Não esqueçamos que os movimentos cívicos pelos direitos dos negros nos USA começaram por volta de 1950, já Elizabeth Cotten teria quase 60 anos e uma vida vivida, uma vida de submissão e sacrifício que contudo não lhe coarctou a lucidez de que já em menina dera provas.

 

Sim, estou a falar-vos de Elizabeth Cotten, nascida negra em 1893 no Estado da Carolina do Norte, grande produtor de algodão e numa zona do planeta e data histórica em que ser negro era ser menos que nada. A biografia de Elizabeth Cotten a que acedemos ou acedi na Net é omissa em muitos aspectos, e descontextualiza a cantautora da sua época, como que branqueia aqueles tempos, pelo menos esquece-os, olvida-os, ou esconde-os, com que intenção não percebi. Somente aos 60 anos começou a gravar e executar publicamente concertos, tendo sido descoberta pela família folk-singing de Charles Seeger enquanto trabalhava para eles como governanta. Quanto aos Seeger tratava-se duma linhagem de músicos então muito respeitadíssimos no círculo folk. 

      LIBBA o Filme – Após muitas e longas pausas ela voltou a pegar no violão para   gravar em filme o seu álbum de 1958. LIBBA foi baseado nas canções de Elizabeth (Libba) Cotten,  construindo com elas uma ponte abrangendo 40 anos da sua vida.


Autodidacta, Elisabette Cotten desenvolveu o seu próprio estilo original. Não sei se era canhota, mas tendo aprendido cedo e sozinha a tocar violão (tocava também banjo) por ser ainda pouco mais que uma criança só se ajeitou com ele do lado esquerdo, o que lhe deixava livre a mão direita para dedilhar mas colocava escala e cordas uma ao contrário do usual, outras de cabeça para baixo, logo obrigando-a a usar não o polegar para fazer vibrar estas mas sim os dedos mínimo, anelar e médio, estilo que ficou conhecido como a sua assinatura, e tornou-se conhecido como "Cotten picking".

 

Uma curiosidade o estilo que criou, um estilo, o seu estilo, aliás muito peculiar e que nos deixaria mais de 500 canções, das quais o Smithsonian nos preservou a memória das melhores e mais populares, tanto pela qualidade da letra quanto pela qualidade da música, torná-la-ia um fenómeno inesquecivel, imortal.

 

Foi ao observar a destreza instrumental de Cotten que o irmão mais velho de Peggy Seeger, Mike Seeger, ficou extremamente sensibilizado tendo-a levado imediatamente para um estúdio onde gravou o álbum que mudaria a sua vida: Folk Songs and Instrumentals with Guitar,1957. Elizabeth Cotten, só em 1970 largaria a vida de doméstica tornando-se atracção nos grandes festivais de folk até ao resto da sua vida e, já com quase 90 anos veio a ganhar um Grammy, tendo dito ao recebê-lo;

- Que pena não ter aqui o meu violão para vos oferecer uma musiquinha.  



Mas é preciso não esquecer e gritar que aquela menina que tudo sofreu e nada nos negou, que tudo nos deu, viveu no pior momento da história para a raça negra sem se deixar abater, tudo aprendeu à sua custa, e em boa hora o Smithsonian preservou a memória daquela que aos 94 anos e no fim da vida foi agraciada com o Grammy de "Melhor Gravação de étnicos ou tradicionais" com o seu álbum “Elizabeth Cotten Live” da etiqueta Arhoolie Records.

 

Durante muito do tempo da sua idade bem adulta continuou excursionando e lançando discos por bem mais de 20 anos. Em 1984 ganhou o Grammy e usando os lucros das suas turnês e do lançamentos de discos, assim como de numerosos prémios que lhe foram atribuídos pela contribuição para a arte popular, Elizabeth mudou-se com a filha e os netos, comprou uma casa em Syracuse, Nova York, onde anos mais tarde viria a falecer. Sem dúvida uma vida cheia, vida à qual foram beber os ensinamentos encerrados nas suas canções, que inclusivamente já foram gravadas e replicadas por Peter, Paul, e Mary, Jerry Garcia, Bob Dylan, Devendra Banhart, Matt Valentine, Laura Veirs , His Name Is Alive e Taj Mahal.

 

Resta dizer para terminar que esta mulher admirável foi escolhida em 1989, uma das 75 influente mulher Afro-americana tendo sido incluída no documentário fotográfico “ Dream a World.” Mais uma mulher admirável ... Cada vez são mais ...

 

Obrigado Elisabette, paz à sua alma.



BIOGRAFIA DE ELIZABETH COTTEN

 Background information

Birth name          Elizabeth Nevills

Born January 5, 1893

Carrboro, North Carolina, U.S.

Died June 29, 1987 (aged 94)

Syracuse, New York, U.S.

Genres      Folk, blues

Occupation(s)    Musician, singer-songwriter

Instruments        Guitar, banjo, vocals

Cortesia do Smithsonian Folkways Recordings

 

https://www.youtube.com/watch?v=7HG6JsG0OfU&list=OLAK5uy_njWqQLqN9T0U_H_f0xd1gTiDLS51ox0SI&index=25

  

* https://www.facebook.com/Smithsonian

 

 * https://www.si.edu/

 

* https://www.si.edu/museums

  

* https://naturalhistory.si.edu/visit/virtual-tour

  

* https://americanhistory.si.edu/

 

* https://americanart.si.edu/


* https://www.si.edu/museums/natural-history-museum

  

* https://folkways.si.edu/

 

 * https://music.si.edu/

  

* https://www.si.edu/unit/smithsonian-music

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

 

** https://pt.wikipedia.org/wiki/Underground_Railroad

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

  

https://open.spotify.com/artist/1eTZGzLkukATM7FoGltyFs


https://acousticguitar.com/remembering-folk-icon-elizabeth-cotten-and-her-distinctive-guitar-approach/