domingo, 24 de outubro de 2021

ELIZABETH COTTEN, ETERNA VOZ DE MENINA


 

735 - ELIZABETH COTTEN, A ETERNA VOZ DE MENINA

 

Foi simplesmente pura casualidade ou mero acaso, ou isso ou um golpe sorte, mas como nada acontece por acaso fico devedor do Smithsonian,* devedor e grato, já que este preservou as músicas da minha surpreendente descoberta de hoje, um filão, uma velhinha com voz de menina e seu violão.

 

Gosto de música folk americana antiga, de blues, da sua história e dos seus intérpretes ou personagens, que por sua vez alimentaram a erudição ou inspiração d’outros grandes como Bob Dylan Cash, Willie Nelson, Dolly Parton, Kris Kristofferson, Brenda Lee, Patsy Cline e tantos outros e outras que me deliciaram, nos deliciaram. Foi numa dessas pesquisas casuais e aleatórias que dei com ela, com essa menina, perdão essa senhora com voz de menina mas de uma sensibilidade e inteligência raras, sobretudo naqueles tempos em que a raros era dada alguma oportunidade. 


Ouvi-a e depois de a ouvir quis conhecê-la, porque foi um fenómeno em vários aspectos, porque nunca se deixou arrastar por contrariedades, embora tenha vivido num tempo em que elas eram o pão nosso de cada dia. E quanto mais e melhor a conhecia mais a admirava e tanto a admirei que me vieram as lágrimas aos olhos por aquela menina que aprendeu a vida sozinha sem nada lhe ter pedido, nunca, mas a quem deu tudo sem que tal alguma vez lhe tivesse sido exigido.

 


Por sorte a primeira canção que ouvi foi a primeira que escreveu e musicou, aos 12 anos, Freight Train, trem de carga, comboio de carga, o tipo de comboio em que nos EUA os negros do sul fugiam da escravidão para os estados do norte, estados abolicionistas da escravatura, comboios que faziam parte rota da celebérrima Underground Railroad, rota de fuga usada pelos negros antes e depois da guerra da secessão (1850) e usada até aos princípios do século XX. Esse famoso tema, o seu tema de revelação "Freight Train", somente seria gravado em 1957, 50 anos depois de o ter composto, tinha então como dissera, 12 anos. 

 

https://www.youtube.com/watch?v=43-UUeCa6Jw


https://www.youtube.com/watch?v=X9nzFLKsNZk


Aos sete anos começou a tocar banjo e aos 11 já havia juntado algum dinheiro, com o qual comprou uma guitarra. Tornou-se muito boa a tocar esses instrumentos e escreveu 'Freight Train', depois de ver um comboio passar pertinho da sua casa na Rua Lourenço em Raleigh, Carolina do Norte. Mas o que surpreende é que uma criança tenha tido a sensibilidade de plasmar isso, esses factos e esses perigos na sua primeira e melhor canção de sempre, basta que olhemos o poema que dá corpo à canção e atentemos em especial nos versos sublinhados a negrito;

 

TREM DE CARGA

'Freight Train'


Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido

Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido


Por favor, não diga em qual trem eu estou

Eles não saberão por qual caminho eu fui

 

Quando eu morrer e na minha sepultura

E não almejar mais bons momentos aqui

Coloque as pedras na minha cabeça e nos meus pés

Diga a todos que eu fui dormir.

 

Quando eu morrer, senhor, enterre-me bem fundo

No caminho para a velha rua Chestnut

Então eu poderei ouvir a velha Number 9

Conforme ela vem rolando.

  


Elizabeth Cotten teria uns 10 anos quando Mark Twain faleceu, e não sei se chegou a ler as Aventuras de Tom Sawyer e as de Huckleberry Finn ou não. Num tempo em que poucos brancos saberiam ler e escrever é pouco provável que a menina que ela foi, negra ainda por cima, os tivesse lido. Talvez mais tarde o tivesse feito ou lhe tivessem lido essas duas obras que tão bem caracterizam a época em que viveu e as dificuldades que a mesma comportava e Twain tão bem retratou, ele que foi considerado o maior romancista americano de todos os tempos. 


Saber história por vezes só nos faz e traz infelicidade e eu vi o que a sua ligeira biografia não mostrou, uma biografia aligeirada em demasia. Não esqueçamos que os movimentos cívicos pelos direitos dos negros nos USA começaram por volta de 1950, já Elizabeth Cotten teria quase 60 anos e uma vida vivida, uma vida de submissão e sacrifício que contudo não lhe coarctou a lucidez de que já em menina dera provas.

 

Sim, estou a falar-vos de Elizabeth Cotten, nascida negra em 1893 no Estado da Carolina do Norte, grande produtor de algodão e numa zona do planeta e data histórica em que ser negro era ser menos que nada. A biografia de Elizabeth Cotten a que acedemos ou acedi na Net é omissa em muitos aspectos, e descontextualiza a cantautora da sua época, como que branqueia aqueles tempos, pelo menos esquece-os, olvida-os, ou esconde-os, com que intenção não percebi. Somente aos 60 anos começou a gravar e executar publicamente concertos, tendo sido descoberta pela família folk-singing de Charles Seeger enquanto trabalhava para eles como governanta. Quanto aos Seeger tratava-se duma linhagem de músicos então muito respeitadíssimos no círculo folk. 

      LIBBA o Filme – Após muitas e longas pausas ela voltou a pegar no violão para   gravar em filme o seu álbum de 1958. LIBBA foi baseado nas canções de Elizabeth (Libba) Cotten,  construindo com elas uma ponte abrangendo 40 anos da sua vida.


Autodidacta, Elisabette Cotten desenvolveu o seu próprio estilo original. Não sei se era canhota, mas tendo aprendido cedo e sozinha a tocar violão (tocava também banjo) por ser ainda pouco mais que uma criança só se ajeitou com ele do lado esquerdo, o que lhe deixava livre a mão direita para dedilhar mas colocava escala e cordas uma ao contrário do usual, outras de cabeça para baixo, logo obrigando-a a usar não o polegar para fazer vibrar estas mas sim os dedos mínimo, anelar e médio, estilo que ficou conhecido como a sua assinatura, e tornou-se conhecido como "Cotten picking".

 

Uma curiosidade o estilo que criou, um estilo, o seu estilo, aliás muito peculiar e que nos deixaria mais de 500 canções, das quais o Smithsonian nos preservou a memória das melhores e mais populares, tanto pela qualidade da letra quanto pela qualidade da música, torná-la-ia um fenómeno inesquecivel, imortal.

 

Foi ao observar a destreza instrumental de Cotten que o irmão mais velho de Peggy Seeger, Mike Seeger, ficou extremamente sensibilizado tendo-a levado imediatamente para um estúdio onde gravou o álbum que mudaria a sua vida: Folk Songs and Instrumentals with Guitar,1957. Elizabeth Cotten, só em 1970 largaria a vida de doméstica tornando-se atracção nos grandes festivais de folk até ao resto da sua vida e, já com quase 90 anos veio a ganhar um Grammy, tendo dito ao recebê-lo;

- Que pena não ter aqui o meu violão para vos oferecer uma musiquinha.  



Mas é preciso não esquecer e gritar que aquela menina que tudo sofreu e nada nos negou, que tudo nos deu, viveu no pior momento da história para a raça negra sem se deixar abater, tudo aprendeu à sua custa, e em boa hora o Smithsonian preservou a memória daquela que aos 94 anos e no fim da vida foi agraciada com o Grammy de "Melhor Gravação de étnicos ou tradicionais" com o seu álbum “Elizabeth Cotten Live” da etiqueta Arhoolie Records.

 

Durante muito do tempo da sua idade bem adulta continuou excursionando e lançando discos por bem mais de 20 anos. Em 1984 ganhou o Grammy e usando os lucros das suas turnês e do lançamentos de discos, assim como de numerosos prémios que lhe foram atribuídos pela contribuição para a arte popular, Elizabeth mudou-se com a filha e os netos, comprou uma casa em Syracuse, Nova York, onde anos mais tarde viria a falecer. Sem dúvida uma vida cheia, vida à qual foram beber os ensinamentos encerrados nas suas canções, que inclusivamente já foram gravadas e replicadas por Peter, Paul, e Mary, Jerry Garcia, Bob Dylan, Devendra Banhart, Matt Valentine, Laura Veirs , His Name Is Alive e Taj Mahal.

 

Resta dizer para terminar que esta mulher admirável foi escolhida em 1989, uma das 75 influente mulher Afro-americana tendo sido incluída no documentário fotográfico “ Dream a World.” Mais uma mulher admirável ... Cada vez são mais ...

 

Obrigado Elisabette, paz à sua alma.



BIOGRAFIA DE ELIZABETH COTTEN

 Background information

Birth name          Elizabeth Nevills

Born January 5, 1893

Carrboro, North Carolina, U.S.

Died June 29, 1987 (aged 94)

Syracuse, New York, U.S.

Genres      Folk, blues

Occupation(s)    Musician, singer-songwriter

Instruments        Guitar, banjo, vocals

Cortesia do Smithsonian Folkways Recordings

 

https://www.youtube.com/watch?v=7HG6JsG0OfU&list=OLAK5uy_njWqQLqN9T0U_H_f0xd1gTiDLS51ox0SI&index=25

  

* https://www.facebook.com/Smithsonian

 

 * https://www.si.edu/

 

* https://www.si.edu/museums

  

* https://naturalhistory.si.edu/visit/virtual-tour

  

* https://americanhistory.si.edu/

 

* https://americanart.si.edu/


* https://www.si.edu/museums/natural-history-museum

  

* https://folkways.si.edu/

 

 * https://music.si.edu/

  

* https://www.si.edu/unit/smithsonian-music

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

 

** https://pt.wikipedia.org/wiki/Underground_Railroad

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

  

https://open.spotify.com/artist/1eTZGzLkukATM7FoGltyFs


https://acousticguitar.com/remembering-folk-icon-elizabeth-cotten-and-her-distinctive-guitar-approach/