domingo, 17 de junho de 2018

508 - LEMBRO-O TANTO ... by Maria Luísa Baião

                
                   
 A vida é um sonho lindo, se vivida. Assim me transmitia meu avô a sabedoria que muitos anos de sofrimento e provavelmente frustrações lhe haviam inculcado no espírito. Recordo-o com saudade, mas com o mesmo amor que então lhe tinha. Contava-me lendas cujo começo era para mim poesia, poesia que invariavelmente me fazia crer em sentimentos e valores em que ainda hoje acredito, como a comoção e a verdade.

Por isso as horas passadas com ele eram magia. Aprendi a ver a Lua rindo para mim à noite, e no seu disco translúcido um velho carregando um feixe de lenha, o meu avô ou outro velho forte como ele. Nas noites mais frescas desvendava-me mistérios. Sentando-me no colo contagiava-me com uma calma impregnada da candura que só os velhos possuem e dele irradiava. Por isso sou forte como ele, pois assim me ensinou.

Os passeios pelo jardim do Paraíso, o ouvi-lo quedada e muda sonhando o mundo como mo descrevia. Ainda volto quando calha a esse jardim impregnado de aromas e ainda creio na candura dos velhos. Aprendi a olhar as estrelas estendida numa esteira. Leio-as, decifro-as nos seus enigmas.

Contava-me dos velhos do Restelo, que os havia em toda a parte e punha-me de sobreaviso. Sim, inda hoje eles são vistos e apesar de cavernosa há quem ouça a sua voz soando, nenhuma outra voz soa como essa.

Com ele aprendi a sentir a brisa do suão, o este e o oeste, o sul e o norte. Quantas vezes dei com ele sentado à mesa na sala, mergulhado na escuridão e num passado tão cheio quanto o vazio do presente. Olhos fixos no velho espelho de parede. Que lhe prenderia tanto a atenção ? Que veria ele ? Depois, dando por mim acendia a luz, disfarçava e murmurava-me que uma vez acabada a razão, restaria a fé. Durante anos não o entendi, quando o entendi chorei-o.

Recordo as suas mãos grandes, calosas, endurecidas na forja dos trabalhos do campo, rígidas de fortes, desajeitadas para os pequenos gestos. Na pele umas manchas, a brancura da reforma, o toque suave das suas carícias. Como esquecer ? E como elas tremiam, pelos anos, por temer magoar-me quando me pegava.

Nesses tempos a infância era um ritual, a vida corria a um outro ritmo. Atingida a menarca o dia virava cerimónia. E dava-se importância às gestas dos santos, às procissões, às festas, às celebrações de Natal, dos Reis, do Carnaval, da Páscoa. As estações do ano sucediam-se diferenciadas, inequívocas na indecifrável mudança dos dias. As festas marcavam a cadência da vida, assinalavam rupturas entre gerações, sem perda da reverência que as mais novas deviam à dignidade dos velhos. A vida não se confundia com um absurdo, e os jovens eram estóicos adultos.

Já não há bufarinheiros, ou carroças com toldos. Cal branca. Vendedores de gelados. Circo. Nem a vinda dos paisanos. Burricos, limpa-chaminés, aguadeiros, amola-tesouras, e já ninguém repara um guarda-chuva. Já não há originalidade, ingenuidade, integridade. Então, respeito e dor eram terna e respeitosamente ajudados ruas adiante. Funerais a pé davam tempo ao carpir. Já não há braçadeiras negras nos braços, nem escritos nas janelas, felizmente nem morrem já os anjinhos, como dantes.

O meu avô era um homem. Esculpia nas tabernas conversas sem fim. Largava tudo quando dava por mim. Já não há escultores. Nada é perpétuo, mas acreditamos que sim. Que ilusão, que engano. Que pena não ter comigo o meu avô, ele dir-vos-ia que somente a esperança é perpétua, e perene. Aprendi isso com ele. Não, ele nunca se enganou. Paz à sua alma.



quinta-feira, 14 de junho de 2018

000507 - LEÓNIDAS * … by Maria Luísa Baião


Em boa verdade a vida não me tem corrido bem ultimamente. Conjugações e astros não se perfilaram de molde a satisfazer-me os desejos e teimaram caprichosamente em toldar-me um horizonte que há muitos anos se me abrira deslumbrante. A sina, que plêiades de luzes celestes nos traçam, teimam ofuscar-me um caminho que visionara bem mais fácil de percorrer. Tolheram-me os desejos, é certo, mas não me frustraram nem caprichos nem ambições que nunca acolhi. Olhei os céus eivada de esperança, perscrutei o negro das noites em desespero, debalde o esforço. Quebrado o anseio tornei a casa, venceu-me o cansaço e o sono. O universo recusava desvendar-me segredos que já foram medos.
  
Formulo desde sempre um desejo a cada estrela que cai riscando a abóbada como um fulminante e, fico deveras radiante quando, entre mim e o infinito, uma aliança se esboça e da qual guardo segredo temendo que disso façam troça. Sempre que tal aconteceu em torvelinho me sustive, esperançada, aguardando a hora. Imaginem só a impaciência, alimentada agora pela ciência, que nos modera ímpetos e resguarda receios, que nos marca encontros e recreios.
  
Um traço no céu é um desejo, imaginem então quantos posso pedir a Aladino num só beijo se, em vez de uma estrela caindo, uma miríade delas vier fugindo. Riscam os céus em flashes de encantar, em data marcada para que as possamos apanhar. Saíra à rua esperançosa, cara afogueada, tez viçosa, de braço estendido e regaço bem cosido não fosse alguma perder-se. O outro braço bem erguido, não calhasse Deus esquecer-me ou não me ver por distraído, o que dizem não fazer. Mas toda a gente esqueceu, se é que nem sequer lembrou, que essa bela constelação sempre sempre nos brindou, p’los dias de Novembro, com uma chuva de estrelas, cadentes, resplandecentes, que de trinta em trinta anos nos livra a vida de enganos.


E de Leão partes vi, de fugida e em contraste com nuvens que temi em mim descarregarem fúrias. Tal não aconteceu, mas seu negro se fez breu e a constelação escondeu para meu grande pesar. E, em vez das belas Leónidas, me vieram abraçar lágrimas pródigas, frias, tentando-me ao recolher mas não a esperança esquecer. Volvi a casa quebrada, quebrada mas não vencida, e tal como um Rei de Esparta, Leónidas de seu nome, (não por acaso, talvez), defendi a minha Termópilas, não contra Xerxes da Pérsia, mas contra esta vida magana, que me torceu, não dobrou, e mais me fortaleceu.
  
É que há muitos anos atrás, tecendo ilusões e sonhos, bafejada fui num momento. Fugaz é certo, lamento, mas que nunca mais esqueci, porque foi abraçada a ti que nessa luz me embebi e sofri por ficar sóbria. Pirilampos e Leónidas nos cobriram como um manto, parecendo até que o céu, em pranto, se fechara sobre nós, eleitos, de tal modo que, ainda hoje o aroma de amores-perfeitos me lembra essa noite que eu invento em cada dia ou pensamento. O Céu tornado jardim florido, de luzes e luzinhas preenchido. O sangue nas veias me ferveu, e senti-me protegida por um véu.
  
Mas fosse agora esse dia e não mais recuaria ante tão ébria alegria. Ter vida em mim é noção de não perder ocasião, crer sempre que o amor não tarda. Não sou já a menina que se guarda, mas mulher que mesmo na bruma, busca precisamente a luz que ofusca e emana de um coração. É-me de todo indiferente, o modo a hora o lugar, não me custa sofregamente respirar e resguardar no pensamento a chama que me permita, até ao vento, consumir-te, saborear-te, devagar...  

* By Maria Luísa Baião, Novembro/Dezembro de 2002 in Diário do Sul, Kota De Mulher.


terça-feira, 5 de junho de 2018

506 - MARCA AMARELA OU NÓDOA AMARELA



Antes mesmo que se sentasse já aquela mancha me chamava a atenção como se fosse, sei lá, um pirilampo, ou a marca amarela do Tintim, há décadas que não me lembrava deste personagem e, repentinamente eis que a mancha, qual medalha ou amuleto me fixava nela. De imediato e sem motivo que a justificasse fixei nele a atenção. Real e aparentemente o motivo não existia mas, sem que eu mesmo o quisesse, os olhos lá voltavam a fixar-se na mancha, quase na lapela, indiciadora de coisa nenhuma mas captando a nossa atenção, p’lo menos a minha, tal qual alguma solenidade lhe estivesse associada.

O tipo aparecia aqui pelo café de vez em quando, nem era presença assídua, nem assídua nem relevante, ninguém sabia bem o que fazia, nem ele o dizia. Sabíamo-lo vagamente ligado à música, vagamente reformado do outro lado do equador, vagamente novo para pensionista, vagamente ligado a familiares algures no Alentejo profundo, tudo dum modo demasiado vago, muito vago mesmo, sem probidade alguma conhecida. Ele nada mais adiantava e todos lhe respeitavam o mistério de que se rodeava, razões teria para o manter, um homem tem direito à privacidade, ao passado, tanto quanto ao presente e ao futuro.

Um dia piquei-o, para ver se se descobria, disse-lhe que não passaria de um elemento da quinta coluna, um membro da quinta coluna, encaixou, não se desfez, nada perguntou, nada estranhou, e fiquei sem saber se aparara a golpada e a estava a disfarçar ou se seria somente desconhecimento, ignorância, nem toda a gente saberá o que é a quinta coluna, o que era, o que foi, e qual o significado da frase, do termo.



Uma vez aparecera vestido com um casaco muito colorido e, disse ele, cerzido com lã de alpaca, ao que eu prontamente reagi erguendo os braços, colocando-os na minha frente, assim como as mãos abertas, à guisa de protecção pois toda a gente sabe que a alpaca é pior que a cobra cuspideira, que a alpaca nos cospe para cima, toda a gente sabe, quer dizer, ele não sabia, ele que tinha vivido entre elas lá longe para baixo ou para cima do equador, mas o que nele me prendia a atenção era a mancha, aquela mancha que não teria mais que o tamanho de uma antiga moeda de dez escudos, aquela mancha que nos deixava pensando se derrame de chá preto, se o café que se entornara pela comissura da boca ao levá-lo à dita, e então era atraído pela boca do dito cujo tentando descortinar nela a mais pequena sequela de trombose, que como sabemos deixa torta a boca, mais ou menos torta, de qualquer modo a fechar mal, a entornar, daí a mancha, aquela surpreendente e inaudita mancha que mais parecia uma nódoa, não era, todas as nódoas mancham mas nem todas as manchas são nódoas.


Até que um dia voltou anunciando que iria, que partiria, que abalaria, e eu diria que já agora seria tão inesperada e motivo de pasmo a ida quanto o fora a chegada, já que chegara sem avisar, um dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um frequentador daquele café, não é nenhum café especial mas não é um café onde vamos e nos sentamos, é um café onde vivemos e convivemos, estaria pois de partida, quer dizer hoje estava mas amanhã já não estaria, e isso foi o que todos nós pensámos mas antes de desaparecer ainda viria a estar por três ou quatro vezes, não duas ou três mas três ou quatro e nada me admiraria se um dia voltasse a aparecer como da primeira vez aparecera embora toda a gente saiba que primeira vez há só uma, como mãe há só uma, e pátria há só uma, logo ele que chegara sem avisar e um dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um frequentador daquele café, que nem é nenhum café especial.

Curioso como sou indaguei para onde, de volta ao equador ?

Não não, desta vez seria mais para cima, um tudo nada mais para cima, para a Guiana.

Isso é administração francesa não é ? Indaguei sem tirar os olhos da mancha, era impossível não dar por ela se frente aos nossos olhos, ao que ele respondeu nem saber e aí então é que eu torci o nariz e o cenho ao mesmo tempo e mesmo a sério, atão este tipo não sabia o que fosse a quinta coluna, agora não sabe o regime do país para onde diz ir, está a brincar ou a mentir, tem que estar, e se a confiança já era pouca passou a ser nenhuma, eu já andava pelos ajustes, a abalada dele acabava por ser um consolo, já que embora lhe tivesse emprestado um livro meu, fotocopiado, um poema, uma epopeia sobre a história épica do Alentejo, afim dele conhecer a terra para onde viera morar e acerca do qual se pronunciara com um curto juízo critico mas de muito mau gosto, ele que nunca aqui estivera, ele que desconhecia completamente o Alentejo, mas em frente que atrás vem gente, parvo fora eu que lho emprestara, e depois desse um romance, sim um romance, também ele sobre o Alentejo e sobre o qual se viria a pronunciar por escrito através dum e-mail enviado em cima da abalada e alertando para o facto de fazer parte, ele, de um tal MINDGROUP e que, acerca do romance e não querendo deixar de me dar a opinião final e que lhe solicitara quando do empréstimo, pois que a leitura que fizera, transversal, ora transversal o caralho, atirei-me ao ar, transversal digo eu quando quero dizer que não li, ou o que li não vale um caralho, escudando-me na leitura transversal, além disso tenho para mim que uma atitude transversal é tudo menos frontal, é uma fuga ao real, ao linear, ao longitudinal, ao horizontal, ao vertical, apaguei o e-mail com um clique do rato e ele que vá para o caralho, para a Guiana, para a cona da mana, dizer que fez uma leitura transversal é desconsiderar-me, é falta de correcção, de formação, de educação, mais uma que ele não sabe, apesar de, segundo dissera, vogar no meio do tal MINDGROUP, imagino a taça, o tanque, a piscina, cheia de merda até acima e onde todos se entreterão a pensar, a polir o pensamento, a limpar a alma e a aura, para depois largarem baboseiras daquelas, um tipo está destinado a cada uma … Nem o banho de merda até ao pescoço lhe tirou a mancha, a nódoa, o homem é uma nódoa, por acaso não tem aparecido, tem sido um sossego. 

Quem te manda sapateiro tocar rabecão ? Eu é que nunca deveria ter pedido opinião a quem não estivesse avalizado para a dar. Mea culpa…

Mas se não é nele que fixo os olhos, fixo-os em cada um que se senta à minha frente no café e se bem que olhe fixamente e conclua logicamente não haver ali mancha nenhuma, não me passa este hábito entretanto adquirido, esta pancada, esta tara, isto já é mania que apanhei porra, nem toda a gente anda por aí ostentando uma mancha na lapela, e quem diz mancha diz nódoa, ou não será ?



segunda-feira, 4 de junho de 2018

505 - MUSICALIDADES * por Maria Luísa Baião ...

Flávio Belisário assegurou uma vitória assinalável na Batalha de Dara (530) diante dos persas, e segurou ainda o Imperador Justiniano no poder, aquando da Revolta de Nika (532).

Amigo nada chegado ousou pôr em questão alguma prosa minha, mormente a concernente à música, à qual muitas vezes me refiro como imbuída de cores inverosímeis e odores indescritíveis. Suponho não ser para ele nada natural ver a música descrita através de figuras que nada têm de musicais. Atão direi que nunca me falaram com menos razão.

Felicidade a minha, que já tenho uns aninhos de vida e, ao contrário do meu inusitado amigo, vejo, para além dos sons, imagens que só mesmo a música me traz. Talvez o meu marido possa não gostar, mas como esquecer Peny Lane, dos Beatles, quando ainda moça desvairava pelo Dimas, cujo pai tinha uma loja de gravatas ali à João de Deus ? Como irei alguma vez esquecer sonhos, a carinha laroca do Dimas, ou o álacre viveiro de gravatas no expositor logo à entrada ? Não sabe o meu marido que a teimosia no exagero e extravagância que coloco nas gravatas que lhe ofereço, têm muito que ver e quanto, com as gratas recordações do Dimas, que persegui sem qualquer resultado e hoje o digo sem a menor pena ou arrependimento.

Peny Lane, é gira, tem violas e violões, contrabaixos e bemóis, acústicos e percussões, certo, e tem um coração alvoroçado cada vez que é tocada, passados tantos anos de pensada. E dizem-me que música é música e somente música?

Je t’aime mais non plus, que já nem me lembra quem cantava, recorda-me o cheiro adocicado de rosas-malva, a imagem de um enforcado e o Tó Rosado pedindo-me namoro enquanto denteava uma maçã verde. Adoro ainda hoje o odor e a cor salmão das rosas-malva mas nem sei por que carga d’água não sou capaz de tragar uma maçã. Esqueci a francesa, não esqueci o Tó Rosado, que só não fiz feliz por me ter pretendido no injusto momento em que alguém entendeu não ter a vida música. Desculpa-me Tó, mas como decerto hoje saberás, há momentos para tudo.

Pintem-me da cor que quiserem. Adoro os Procul Harum, em especial Hotel Califórnia, um álbum com perto de cinquenta anos. Não conhecem ? Claro que não conhecem, mas eu conto-vos. É um álbum de uma voluptuosidade afrodisíaca, dos tempos em que me fiz mulher, dos dias de festas em casa da amiga Irene, dos tempos em que conheci aquele que hoje é meu marido. Mais ? Ainda precisam mais provas de que o que a música menos tem é música ? Tem cores, odores, sonhos, devaneios e tantos anseios quantos os anos que já conto, e nem vos digo, quantas notas são precisas p’ra que uma pessoa se sinta perdida. 

Lembrem-me os Rolling Stones e têm aqui uma libertária pronta a pegar em armas, atirem-me com os Pink Floyd e reparem na minha transformação quase imediata em contestatária anti-sistema. E falam-me em sons, em música, coisas que não tenho como redutoras e me abrem o espírito para acções e recordações sem fim. Água Brava, fixem este nome, este perfume, esta colónia, after-shave. Nem vos conto nem vos digo, quanta música encerra uma só nuvem vaporizada de Água Brava, pediria apenas que hoje, mulher madura, adulta, responsável e figurinha pública, me tirassem desse filme.

Há quem coleccione álbuns, cassetes, discos e cd’s. Eu colecciono perfumes. Cada um, sem que ninguém saiba, traz agregado a si um álbum de recordações, de imagens, cheiros, devaneios e sonhos lindos de encantar. E não se paga mais por isso. Haverá quem coleccione postais ilustrados, selos, vinhos, calendários. Eu colecciono perfumes, bocados de vidas e amores, religiosamente, num grande armário. E qual lâmpada de Aladino, um frasco lembra-me um apeadeiro de comboios em Vila Franca, outro, o primeiro quarto alugado que ocupei no Rêgo, uma colónia espanhola que se está a acabar, um dia de Primavera, eu de peúgas brancas, botas de camurça, e alguém que me pediu em casamento. Num spray já ferrugento, o odor a bebé do meu filho, roupas de maternidade.

Música? Música é o que você está a dar-me Perdigão com essa treta da música ser simplesmente música. Engana-se, é muito mais, só lamento que o não sinta.

E Beethwoven ? Como e porque pensa você que ele escreveu tantas maravilhas musicais depois de completamente surdo ? Eu digo-lhe, ou estava apaixonado ou amava a vida. E a que pensa o meu amigo que deve Stradivarius a sua mestria ? O seu delírio ? À música ? Está enganado mais uma vez amigo Perdigão, ele nada percebia de música, mas na busca da mulher ideal acabou produzindo mais de vinte virtuosos violinos por cada ano da sua vida sem que nunca tivesse encontrado o amor dos seus sonhos.

Belizário, diz a lenda, deve o seu infortúnio às imagens que viu enquanto se deliciava ouvindo o canto da Lira. Depois de uma vida de vitórias é afastado da corte de Roma em 562, cai em desgraça e acaba na miséria. Nada que não tivesse sabido de antemão. Belizário acreditava que nada teria mudado o seu destino, nem uma linha traçada na palma da mão com o fio do seu punhal.

E Einstein Perdigão?  A que pensa que se deve a sua genialidade ? O seu êxito extraordinário ? Sabe que ele não foi músico ? eu sei que ele não somente via como ouvia a música do Universo, a harmónica harmonia do Universo.

Entendidos quanto à música amigo ? Ouça-a menos e pense-se mais, não se arrependerá.

Flávio Belisário entra triunfante em Roma  no âmbito da Guerra Gótica

* Publicado por Maria Luísa Baião cerca de  21‎ de ‎Setembro‎ de ‎2005 in Diário do Sul

sexta-feira, 1 de junho de 2018

00504 - ANGOLA, GALO NEGRO GALO NEGRO ...

           
No intervalo dos tiroteios as negras estenderam os batiques na praça e nas arcadas do Banco de Angola em guerra aberta com outras quitandeiras. Luanda estava a ferro e fogo, os do galo negro e os outros não tinham ordem de poisar em ramo verde, aquelas tréguas na luta deixaram a cidade florir como um jardim à beira da baía onde quitandas improvisadas desabrochavam como fungi após as chuvas.

Recém-saído com alta do hospital de S. Paulo (de Assumpção de Loanda) o Tenente Fernandes numa tentativa de apressar a recuperação passara a frequentar de vez em quando o Adão, onde dava um salto sempre que podia para ouvir o Grupo 5, nessa época considerado o melhor grupo pop português. Na morte pensava pouco, e a vontade de meditar sobre ela não era nenhuma, passara por ela havia ainda pouco tempo como cão sobre braseiro, passara a correr digamos, pelo que nem ela tivera oportunidade para o agarrar, nem ele ficara especado a vê-la passar, ou a vir.


Havia o viver e enquanto o cansaço da convalescença não o abatia corria à Marginal olhando os dongos na pesca, ou sentava-se na Paris de cerveja na mão e sorriso na cara. Estar vivo era o contrário de estar morto como viria a escutar quarenta anos mais tarde na metrópole e, uma vez que se sentia vivo assim inda queria viver mais, apanhava um ou vários machimbombos e só parava na Gody ou na Biblioteca Nacional. Gostava especialmente do Largo do Bocage, do Parque Heróis de Chaves, de olhar as garinas, garinar, passear p’la Alameda D. João II ou p’la Avenida General Norton de Matos.

De vez em quando e agradando a companhia aliviava o peso dos dias dando um salto à Nicha, apanhando sol como Deus os trouxera ao mundo, ou tornando à Vila Alice. Uma vez passeando em frente da Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado atirou-lhe a Faustina: 

- Quando me prantas ali amor ? 

Coitada ela ficou sabendo não, nosso tenente olhou em redor mirando no futuro e lamentar o triste estragado da cidade. 

Parar é que não, pensar é que não, sobretudo quando toda a cidade diferente, num cenário apocalíptico, assustador, dantesco, sobretudo quando andar na rua dentro ou fora de horas se tornou uma aventura, um perigo, e morrer se tornou tão banal como por dá cá aquela palha, por um azar do destino ou porque calhava, ou porque assim a sina e o pão nosso de cada dia estavam traçados. Luanda regurgitava cadáveres a qualquer hora do dia ou da noite sem que alguém parecesse preocupar-se com isso. Neste cenário viver ou morrer era coisa que não estava na mão dele, que não estava nas mãos de ninguém, estava nas mãos de todos e de Deus todo-poderoso.


O viver ou morrer tornara-se uma montanha russa, uma questão de sorte, que melhor para uma convalescença senão olhar todos os dias as dezenas que não tinham tido essa oportunidade ? Estava vivo, ainda, obrigado meu Deus, não me esqueças, não me tires o olho de cima nem o tapete debaixo dos pés, confio em Ti, a vida é mesmo assim, não vale nada, pretos ou brancos, é indiferente, a morte é igual, por aqui a cotação de qualquer uma delas não vale um caralho. Quando caíam morteiros, e ainda os de 81 não tinham começado a cair e já as galinhas debandavam para anharas, os bairros viravam num reboliço, a vida na capital ficava toda de pantanas. O tenente entornava infusas como nem um cambuta faria nem que andasse aos pinotes caçambulando por todo o quarto. Depois das explosões, das morteiradas e da tropa acalmada ouviam-se as vozes dos monandengues procurando as galinhas no capim, trabalho de que se livram os cipaios que, de covilhete na mão e pintando figuras de sotrancão se empenhavam na retranca debaixo de uma qualquer mulemba, beberricando maruvo e olhando sem interesse alguns dambas mirando miragem devido ao mormaço e chutando com indiferença quaisquer dongos que se atrevessem a aparecer.

Para ser franco o que agora apetecia mesmo era um cozido à portuguesa, ou grão com mão de vaca pois embora a trague já deito moamba de galinha pelos olhos. Cerveja Nocal, a cerveja sem igual, maruvo e jindungo são o melhor remédio contra a guerrilha, as explosões, os saguis, dongos e companhia, quando é assim saio de casa, busco um sicómoro ao fundo do quintal e deixo que aquela tropa se entretenha a despejar fogo e a despachar umas granadas. Para minha segurança alojei-me no Hotel Trópico que todavia não deixa de abanar, de dar pulos, deixando cair caliça do tecto e onde tudo corre mal e é mal servido. Por isto a minha tropa agora é outra, entrado em excesso e em delírio vou aviando de enfiada tudo que meta cerveja, tudo que tenha jindungo, da galantina de vaca ao kiombo e até que fique opado, a regougar, deitando espuma pelos cantos da boca. Quando estou assim, cagado de medo e me enxarco, bem podem cair morteiros, até os de 81, os tais que ainda não têm caído e já as galinhas debandaram para anharas.


Ele trabalha de empreitada e nelas é um tão preto tão matumbo como qualquer outro preto matumbo. Não faz cazumbi mas faz-se de inzoneiro e bem bebido, bem atordoado, bem anestesiado, imagina-se num salão de beleza, tratando flor do congo deitado numa esteira, mordiscando caju, deixando correr a cerveja, segurando o cachimbo de bambu, doseando a liamba, mais tabaco, menos tabaco, dependendo de quanto está disposto a vingar-se ou a não se deixar xingar, batendo o pé ao ritmo do batuque tocado por um qualquer caçambuleiro que não quis ir na busca das galinhas no capim, ou capinar mortos.

Capinar também não é com ele, ta no férias, salão de beleza, cuidar de si, dos antrazes, antes de ficar sem pés, tão opados que nem lhe cabem nas botas, não é frioleira aquilo, pede mais cerveja, uma peineta de caju, muito jindungo e vem kombucha com fartura também nesse vir. Tá visto, vai no ficar por aqui, há que fazer no vida, a morte não o assusta já, já lhe assustou sim, agora está no confiar, há-de chegar ela, mas só quando tiver que chegá, diz.

Não teme não, não da p’ra isso diz para ele velho Nicolau, diz e repete, espreguiçando-se debaixo dum mamoeiro e adivinhando-lhe os pensamento. Logo esse velho cipaio que sobreviveu a dezenas de emboscadas, ataques, bazucadas, morteiradas e outras tantas aventuras que lhe custaram um pé, pouco para tanto baile diz ele por vezes, rindo de sua sina e repetindo esse rir que tanto faz ele rir, a sorte, a sina, o fado, e volta na volta lá vai buscá o Zeca e vai de Menino do Bairro Negro ou Um Homem Novo Veio Da Mata.


Conheci-o muito a sul, junto ao Cunene na aldeia dos hereros, onde vivia numa grande sanzala perto de Calueque o povo bantu, num povoado onde, sempre que passei não deixei nunca de cumprimentar um outro velho, o sábio Azekel (aquele que reza ao Senhor) um velho sábio tucokwe, bom manuseador de faca que ia enfiando bem afiada no marfim pachorrentamente, esculpindo-o com excelsa destreza.

Embora não fosse por dinheiro o velho vendia as mesmas estatuetas duas ou três vezes, ou mais, todos as queriam ter, como se fossem o amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho não olhava na cara nem nos olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição.

Ainda carrego ao peito a sua recordação, acreditei nele, no poder da sua estatueta, senti medo, caguei-me de medo algumas vezes, mas aguentei, resisti, agarrei-me à sua boneca, a Deus, à Nocal, a cerveja sem igual, ao maruvo, ao jindungo, à liamba, à galantina de vaca e ao kiombo, à fé, e aqui estou a segredar-vos os meus medos, a minha ventura, a minha sorte, a minha coragem, a minha firmeza, o meu ânimo ante o perigo, e prometo que me fico por aqui, não maçarei mais vocês, nem beberei mais hoje. Tá no prometido.