No intervalo dos tiroteios as negras
estenderam os batiques na praça e nas arcadas do Banco de Angola em guerra
aberta com outras quitandeiras. Luanda estava a ferro e fogo, os do galo negro
e os outros não tinham ordem de poisar em ramo verde, aquelas tréguas na luta
deixaram a cidade florir como um jardim à beira da baía onde quitandas
improvisadas desabrochavam como fungi após as chuvas.
Recém-saído com alta do hospital de
S. Paulo (de Assumpção de Loanda) o Tenente Fernandes numa tentativa de
apressar a recuperação passara a frequentar de vez em quando o Adão, onde dava um salto sempre que
podia para ouvir o Grupo 5, nessa
época considerado o melhor grupo pop
português. Na morte pensava pouco, e a vontade de meditar sobre ela não era
nenhuma, passara por ela havia ainda pouco tempo como cão sobre braseiro,
passara a correr digamos, pelo que nem ela tivera oportunidade para o agarrar,
nem ele ficara especado a vê-la passar, ou a vir.
Havia o viver e enquanto o cansaço da
convalescença não o abatia corria à Marginal olhando os dongos na pesca, ou
sentava-se na Paris de cerveja na mão e sorriso na cara. Estar vivo era o
contrário de estar morto como viria a escutar quarenta anos mais tarde na
metrópole e, uma vez que se sentia vivo assim inda queria viver mais, apanhava um ou
vários machimbombos e só parava na Gody
ou na Biblioteca Nacional. Gostava especialmente do Largo do Bocage, do Parque
Heróis de Chaves, de olhar as garinas, garinar, passear p’la Alameda D. João II
ou p’la Avenida General Norton de Matos.
De vez em quando e agradando a
companhia aliviava o peso dos dias dando um salto à Nicha, apanhando sol como Deus os trouxera ao mundo,
ou tornando à Vila Alice. Uma vez passeando em frente da Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado atirou-lhe a Faustina:
- Quando me prantas ali amor ?
Coitada ela ficou sabendo não, nosso tenente olhou em redor mirando no futuro e lamentar o triste estragado da cidade.
Parar é que não, pensar é que não, sobretudo quando
toda a cidade diferente, num cenário apocalíptico, assustador, dantesco,
sobretudo quando andar na rua dentro ou fora de horas se tornou uma aventura,
um perigo, e morrer se tornou tão banal como por dá cá aquela palha, por um
azar do destino ou porque calhava, ou porque assim a sina e o pão nosso de cada
dia estavam traçados. Luanda regurgitava cadáveres a qualquer hora do dia ou da
noite sem que alguém parecesse preocupar-se com isso. Neste cenário viver ou
morrer era coisa que não estava na mão dele, que não estava nas mãos de
ninguém, estava nas mãos de todos e de Deus todo-poderoso.
O viver ou morrer tornara-se uma
montanha russa, uma questão de sorte, que melhor para uma convalescença senão
olhar todos os dias as dezenas que não tinham tido essa oportunidade ? Estava
vivo, ainda, obrigado meu Deus, não me
esqueças, não me tires o olho de cima nem o tapete debaixo dos pés, confio em
Ti, a vida é mesmo assim, não vale nada, pretos ou brancos, é indiferente, a
morte é igual, por aqui a cotação de qualquer uma delas não vale um caralho.
Quando caíam morteiros, e ainda os de 81 não tinham começado a cair e já as
galinhas debandavam para anharas, os bairros viravam num reboliço, a vida na
capital ficava toda de pantanas. O tenente entornava infusas como nem um
cambuta faria nem que andasse aos pinotes caçambulando por todo o quarto.
Depois das explosões, das morteiradas e da tropa acalmada ouviam-se as vozes
dos monandengues procurando as galinhas no capim, trabalho de que se livram os
cipaios que, de covilhete na mão e pintando figuras de sotrancão se empenhavam
na retranca debaixo de uma qualquer mulemba, beberricando maruvo e olhando sem
interesse alguns dambas mirando miragem devido ao mormaço e chutando com indiferença
quaisquer dongos que se atrevessem a aparecer.
Para ser franco o que agora apetecia mesmo era um cozido à portuguesa, ou
grão com mão de vaca pois embora a trague já deito moamba de galinha pelos
olhos. Cerveja Nocal, a cerveja sem igual, maruvo e
jindungo são o melhor remédio contra a guerrilha, as explosões, os saguis,
dongos e companhia, quando é assim saio de casa, busco um sicómoro ao fundo do
quintal e deixo que aquela tropa se entretenha a despejar fogo e a despachar
umas granadas. Para minha segurança alojei-me no Hotel Trópico que todavia não
deixa de abanar, de dar pulos, deixando cair caliça do tecto e onde tudo corre
mal e é mal servido. Por isto a minha tropa agora é outra, entrado em excesso e
em delírio vou aviando de enfiada tudo que meta cerveja, tudo que tenha
jindungo, da galantina de vaca ao kiombo e até que fique opado, a regougar,
deitando espuma pelos cantos da boca. Quando estou assim, cagado de medo e me
enxarco, bem podem cair morteiros, até os de 81, os tais que ainda não têm
caído e já as galinhas debandaram para anharas.
Ele trabalha de empreitada e nelas é
um tão preto tão matumbo como qualquer outro preto matumbo. Não faz cazumbi mas
faz-se de inzoneiro e bem bebido, bem atordoado, bem anestesiado, imagina-se
num salão de beleza, tratando flor do congo deitado numa esteira, mordiscando
caju, deixando correr a cerveja, segurando o cachimbo de bambu, doseando a liamba,
mais tabaco, menos tabaco, dependendo de quanto está disposto a vingar-se ou a
não se deixar xingar, batendo o pé ao ritmo do batuque tocado por um qualquer
caçambuleiro que não quis ir na busca das galinhas no capim, ou capinar mortos.
Capinar também não é com ele, ta no
férias, salão de beleza, cuidar de si, dos antrazes, antes de ficar sem pés,
tão opados que nem lhe cabem nas botas, não é frioleira aquilo, pede mais
cerveja, uma peineta de caju, muito jindungo e vem kombucha com fartura também
nesse vir. Tá visto, vai no ficar por aqui, há que fazer no vida, a morte não o
assusta já, já lhe assustou sim, agora está no confiar, há-de chegar ela, mas
só quando tiver que chegá, diz.
Não teme não, não da p’ra isso diz
para ele velho Nicolau, diz e repete, espreguiçando-se debaixo dum mamoeiro e
adivinhando-lhe os pensamento. Logo esse velho cipaio que sobreviveu a dezenas
de emboscadas, ataques, bazucadas, morteiradas e outras tantas aventuras que
lhe custaram um pé, pouco para tanto baile diz ele por vezes, rindo de sua sina
e repetindo esse rir que tanto faz ele rir, a sorte, a sina, o fado, e volta na
volta lá vai buscá o Zeca e vai de Menino
do Bairro Negro ou Um Homem Novo Veio
Da Mata.
Conheci-o muito a sul, junto ao Cunene na aldeia dos hereros, onde vivia
numa grande sanzala perto de Calueque o povo bantu, num povoado onde, sempre
que passei não deixei nunca de cumprimentar um outro velho, o sábio Azekel
(aquele que reza ao Senhor) um velho sábio tucokwe, bom manuseador de faca que
ia enfiando bem afiada no marfim pachorrentamente, esculpindo-o com excelsa
destreza.
Embora não fosse por dinheiro o velho
vendia as mesmas estatuetas duas ou três vezes, ou mais, todos as queriam ter,
como se fossem o amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente
nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o
velho não olhava na cara nem nos olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os
ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição.
Ainda carrego ao peito a sua recordação, acreditei nele, no poder da sua
estatueta, senti medo, caguei-me de medo algumas vezes, mas aguentei, resisti,
agarrei-me à sua boneca, a Deus, à Nocal, a cerveja sem igual, ao maruvo, ao
jindungo, à liamba, à galantina de vaca e ao kiombo, à fé, e aqui estou a segredar-vos
os meus medos, a minha ventura, a minha sorte, a minha coragem, a minha
firmeza, o meu ânimo ante o perigo, e prometo que me fico por aqui, não maçarei
mais vocês, nem beberei mais hoje. Tá no prometido.