Flávio Belisário assegurou uma vitória assinalável na Batalha de Dara (530) diante dos persas, e segurou ainda o Imperador Justiniano no poder, aquando da Revolta de Nika (532). |
Amigo
nada chegado ousou pôr em questão alguma prosa minha, mormente a concernente à
música, à qual muitas vezes me refiro como imbuída de cores inverosímeis e
odores indescritíveis. Suponho não ser para ele nada natural ver a música
descrita através de figuras que nada têm de musicais. Atão direi que nunca me
falaram com menos razão.
Felicidade
a minha, que já tenho uns aninhos de vida e, ao contrário do meu inusitado
amigo, vejo, para além dos sons, imagens que só mesmo a música me traz. Talvez
o meu marido possa não gostar, mas como esquecer Peny Lane, dos Beatles, quando
ainda moça desvairava pelo Dimas, cujo pai tinha uma loja de gravatas ali à
João de Deus ? Como irei alguma vez esquecer sonhos, a carinha laroca do Dimas,
ou o álacre viveiro de gravatas no expositor logo à entrada ? Não sabe o meu
marido que a teimosia no exagero e extravagância que coloco nas gravatas que
lhe ofereço, têm muito que ver e quanto, com as gratas recordações do Dimas,
que persegui sem qualquer resultado e hoje o digo sem a menor pena ou
arrependimento.
Peny
Lane, é gira, tem violas e violões, contrabaixos e bemóis, acústicos e
percussões, certo, e tem um coração alvoroçado cada vez que é tocada, passados
tantos anos de pensada. E dizem-me que música é música e somente música?
Je
t’aime mais non plus, que já nem me lembra quem cantava, recorda-me o cheiro
adocicado de rosas-malva, a imagem de um enforcado e o Tó Rosado pedindo-me
namoro enquanto denteava uma maçã verde. Adoro ainda hoje o odor e a cor salmão
das rosas-malva mas nem sei por que carga d’água não sou capaz de tragar uma
maçã. Esqueci a francesa, não esqueci o Tó Rosado, que só não fiz feliz por me
ter pretendido no injusto momento em que alguém entendeu não ter a vida música.
Desculpa-me Tó, mas como decerto hoje saberás, há momentos para tudo.
Pintem-me
da cor que quiserem. Adoro os Procul Harum, em especial Hotel Califórnia, um
álbum com perto de cinquenta anos. Não conhecem ? Claro que não conhecem, mas eu
conto-vos. É um álbum de uma voluptuosidade afrodisíaca, dos tempos em que me
fiz mulher, dos dias de festas em casa da amiga Irene, dos tempos em que
conheci aquele que hoje é meu marido. Mais ? Ainda precisam mais provas de que o
que a música menos tem é música ? Tem cores, odores, sonhos, devaneios e tantos
anseios quantos os anos que já conto, e nem vos digo, quantas notas são
precisas p’ra que uma pessoa se sinta perdida.
Lembrem-me
os Rolling Stones e têm aqui uma libertária pronta a pegar em armas, atirem-me
com os Pink Floyd e reparem na minha transformação quase imediata em contestatária
anti-sistema. E falam-me em sons, em música, coisas que não tenho como
redutoras e me abrem o espírito para acções e recordações sem fim. Água Brava,
fixem este nome, este perfume, esta colónia, after-shave. Nem vos conto nem vos
digo, quanta música encerra uma só nuvem vaporizada de Água Brava, pediria
apenas que hoje, mulher madura, adulta, responsável e figurinha pública, me
tirassem desse filme.
Há
quem coleccione álbuns, cassetes, discos e cd’s. Eu colecciono perfumes. Cada
um, sem que ninguém saiba, traz agregado a si um álbum de recordações, de
imagens, cheiros, devaneios e sonhos lindos de encantar. E não se paga mais por
isso. Haverá quem coleccione postais ilustrados, selos, vinhos, calendários. Eu
colecciono perfumes, bocados de vidas e amores, religiosamente, num grande
armário. E qual lâmpada de Aladino, um frasco lembra-me um apeadeiro de
comboios em Vila Franca, outro, o primeiro quarto alugado que ocupei no Rêgo,
uma colónia espanhola que se está a acabar, um dia de Primavera, eu de peúgas
brancas, botas de camurça, e alguém que me pediu em casamento. Num spray já
ferrugento, o odor a bebé do meu filho, roupas de maternidade.
Música?
Música é o que você está a dar-me Perdigão com essa treta da música ser
simplesmente música. Engana-se, é muito mais, só lamento que o não sinta.
E
Beethwoven ? Como e porque pensa você que ele escreveu tantas maravilhas
musicais depois de completamente surdo ? Eu digo-lhe, ou estava apaixonado ou
amava a vida. E a que pensa o meu amigo que deve Stradivarius a sua mestria ? O
seu delírio ? À música ? Está enganado mais uma vez amigo Perdigão, ele nada
percebia de música, mas na busca da mulher ideal acabou produzindo mais de
vinte virtuosos violinos por cada ano da sua vida sem que nunca tivesse
encontrado o amor dos seus sonhos.
Belizário,
diz a lenda, deve o seu infortúnio às imagens que viu enquanto se deliciava
ouvindo o canto da Lira. Depois de uma vida de vitórias é afastado da corte de
Roma em 562, cai em desgraça e acaba na miséria. Nada que não tivesse sabido de
antemão. Belizário acreditava que nada teria mudado o seu destino, nem uma
linha traçada na palma da mão com o fio do seu punhal.
E
Einstein Perdigão? A que pensa que se
deve a sua genialidade ? O seu êxito extraordinário ? Sabe que ele não foi
músico ? eu sei que ele não somente via como ouvia a música do Universo, a
harmónica harmonia do Universo.
Entendidos
quanto à música amigo ? Ouça-a menos e pense-se mais, não se arrependerá.
Flávio Belisário entra triunfante em Roma no âmbito da Guerra Gótica |
* Publicado por Maria Luísa Baião cerca de 21 de Setembro de 2005 in Diário do Sul