Antes mesmo que se sentasse já aquela
mancha me chamava a atenção como se fosse, sei lá, um pirilampo, ou a marca
amarela do Tintim, há décadas que não me lembrava deste personagem e,
repentinamente eis que a mancha, qual medalha ou amuleto me fixava nela. De imediato e sem motivo que a justificasse fixei nele a atenção. Real e aparentemente o motivo não
existia mas, sem que eu mesmo o quisesse, os olhos lá voltavam a fixar-se na
mancha, quase na lapela, indiciadora de coisa nenhuma mas captando a nossa
atenção, p’lo menos a minha, tal qual alguma solenidade lhe estivesse
associada.
O tipo aparecia aqui pelo café de vez
em quando, nem era presença assídua, nem assídua nem relevante, ninguém sabia
bem o que fazia, nem ele o dizia. Sabíamo-lo vagamente ligado à música,
vagamente reformado do outro lado do equador, vagamente novo para pensionista,
vagamente ligado a familiares algures no Alentejo profundo, tudo dum modo
demasiado vago, muito vago mesmo, sem probidade alguma conhecida. Ele nada mais
adiantava e todos lhe respeitavam o mistério de que se rodeava, razões teria
para o manter, um homem tem direito à privacidade, ao passado, tanto quanto ao
presente e ao futuro.
Um dia piquei-o, para ver se se
descobria, disse-lhe que não passaria de um elemento da quinta coluna, um
membro da quinta coluna, encaixou, não se desfez, nada perguntou, nada
estranhou, e fiquei sem saber se aparara a golpada e a estava a disfarçar ou se
seria somente desconhecimento, ignorância, nem toda a gente saberá o que é a
quinta coluna, o que era, o que foi, e qual o significado da frase, do termo.
Uma vez aparecera vestido com um
casaco muito colorido e, disse ele, cerzido com lã de alpaca, ao que eu
prontamente reagi erguendo os braços, colocando-os na minha frente, assim como
as mãos abertas, à guisa de protecção pois toda a gente sabe que a alpaca é
pior que a cobra cuspideira, que a alpaca nos cospe para cima, toda a gente sabe,
quer dizer, ele não sabia, ele que tinha vivido entre elas lá longe para baixo ou
para cima do equador, mas o que nele me prendia a atenção era a mancha, aquela
mancha que não teria mais que o tamanho de uma antiga moeda de dez escudos,
aquela mancha que nos deixava pensando se derrame de chá preto, se o café que
se entornara pela comissura da boca ao levá-lo à dita, e então era atraído pela
boca do dito cujo tentando descortinar nela a mais pequena sequela de trombose,
que como sabemos deixa torta a boca, mais ou menos torta, de qualquer modo a
fechar mal, a entornar, daí a mancha, aquela surpreendente e inaudita mancha
que mais parecia uma nódoa, não era, todas as nódoas mancham mas nem todas as
manchas são nódoas.
Até que um dia voltou anunciando que
iria, que partiria, que abalaria, e eu diria que já agora seria tão inesperada
e motivo de pasmo a ida quanto o fora a chegada, já que chegara sem avisar, um
dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um frequentador
daquele café, não é nenhum café especial mas não é um café onde vamos e nos
sentamos, é um café onde vivemos e convivemos, estaria pois de partida, quer
dizer hoje estava mas amanhã já não estaria, e isso foi o que todos nós
pensámos mas antes de desaparecer ainda viria a estar por três ou quatro vezes,
não duas ou três mas três ou quatro e nada me admiraria se um dia voltasse a
aparecer como da primeira vez aparecera embora toda a gente saiba que primeira
vez há só uma, como mãe há só uma, e pátria há só uma, logo ele que chegara sem
avisar e um dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um
frequentador daquele café, que nem é nenhum café especial.
Curioso como sou indaguei para onde,
de volta ao equador ?
Não não, desta vez seria mais para
cima, um tudo nada mais para cima, para a Guiana.
Isso é administração francesa não é ?
Indaguei sem tirar os olhos da mancha, era impossível não dar por ela se frente
aos nossos olhos, ao que ele respondeu nem saber e aí então é que eu torci o
nariz e o cenho ao mesmo tempo e mesmo a sério, atão este tipo não sabia o que fosse a quinta coluna, agora não
sabe o regime do país para onde diz ir, está a brincar ou a mentir, tem que
estar, e se a confiança já era pouca passou a ser nenhuma, eu já andava pelos
ajustes, a abalada dele acabava por ser um consolo, já que embora lhe tivesse
emprestado um livro meu, fotocopiado, um poema, uma epopeia sobre a história
épica do Alentejo, afim dele conhecer a terra para onde viera morar e acerca do
qual se pronunciara com um curto juízo critico mas de muito mau gosto, ele que
nunca aqui estivera, ele que desconhecia completamente o Alentejo, mas em
frente que atrás vem gente, parvo fora eu que lho emprestara, e depois desse um
romance, sim um romance, também ele sobre o Alentejo e sobre o qual se viria a
pronunciar por escrito através dum e-mail enviado em cima da abalada e
alertando para o facto de fazer parte, ele, de um tal MINDGROUP e que, acerca
do romance e não querendo deixar de me dar a opinião final e que lhe solicitara
quando do empréstimo, pois que a leitura que fizera, transversal, ora
transversal o caralho, atirei-me ao ar, transversal digo eu quando quero dizer
que não li, ou o que li não vale um caralho, escudando-me na leitura
transversal, além disso tenho para mim que uma atitude transversal é tudo menos
frontal, é uma fuga ao real, ao linear, ao longitudinal, ao horizontal, ao
vertical, apaguei o e-mail com um clique do rato e ele que vá para o caralho,
para a Guiana, para a cona da mana, dizer que fez uma leitura transversal é
desconsiderar-me, é falta de correcção, de formação, de educação, mais uma que
ele não sabe, apesar de, segundo dissera, vogar no meio do tal MINDGROUP,
imagino a taça, o tanque, a piscina, cheia de merda até acima e onde todos se
entreterão a pensar, a polir o pensamento, a limpar a alma e a aura, para
depois largarem baboseiras daquelas, um tipo está destinado a cada uma … Nem o
banho de merda até ao pescoço lhe tirou a mancha, a nódoa, o homem é uma nódoa,
por acaso não tem aparecido, tem sido um sossego.
Quem te manda sapateiro tocar rabecão
? Eu é que nunca deveria ter pedido opinião a quem não estivesse avalizado para
a dar. Mea culpa…
Mas se não é nele que fixo os olhos, fixo-os
em cada um que se senta à minha frente no café e se bem que olhe fixamente e
conclua logicamente não haver ali mancha nenhuma, não me passa este hábito entretanto
adquirido, esta pancada, esta tara, isto já é mania que apanhei porra, nem toda
a gente anda por aí ostentando uma mancha na lapela, e quem diz mancha diz
nódoa, ou não será ?