sexta-feira, 1 de junho de 2018

00504 - ANGOLA, GALO NEGRO GALO NEGRO ...

           
No intervalo dos tiroteios as negras estenderam os batiques na praça e nas arcadas do Banco de Angola em guerra aberta com outras quitandeiras. Luanda estava a ferro e fogo, os do galo negro e os outros não tinham ordem de poisar em ramo verde, aquelas tréguas na luta deixaram a cidade florir como um jardim à beira da baía onde quitandas improvisadas desabrochavam como fungi após as chuvas.

Recém-saído com alta do hospital de S. Paulo (de Assumpção de Loanda) o Tenente Fernandes numa tentativa de apressar a recuperação passara a frequentar de vez em quando o Adão, onde dava um salto sempre que podia para ouvir o Grupo 5, nessa época considerado o melhor grupo pop português. Na morte pensava pouco, e a vontade de meditar sobre ela não era nenhuma, passara por ela havia ainda pouco tempo como cão sobre braseiro, passara a correr digamos, pelo que nem ela tivera oportunidade para o agarrar, nem ele ficara especado a vê-la passar, ou a vir.


Havia o viver e enquanto o cansaço da convalescença não o abatia corria à Marginal olhando os dongos na pesca, ou sentava-se na Paris de cerveja na mão e sorriso na cara. Estar vivo era o contrário de estar morto como viria a escutar quarenta anos mais tarde na metrópole e, uma vez que se sentia vivo assim inda queria viver mais, apanhava um ou vários machimbombos e só parava na Gody ou na Biblioteca Nacional. Gostava especialmente do Largo do Bocage, do Parque Heróis de Chaves, de olhar as garinas, garinar, passear p’la Alameda D. João II ou p’la Avenida General Norton de Matos.

De vez em quando e agradando a companhia aliviava o peso dos dias dando um salto à Nicha, apanhando sol como Deus os trouxera ao mundo, ou tornando à Vila Alice. Uma vez passeando em frente da Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado atirou-lhe a Faustina: 

- Quando me prantas ali amor ? 

Coitada ela ficou sabendo não, nosso tenente olhou em redor mirando no futuro e lamentar o triste estragado da cidade. 

Parar é que não, pensar é que não, sobretudo quando toda a cidade diferente, num cenário apocalíptico, assustador, dantesco, sobretudo quando andar na rua dentro ou fora de horas se tornou uma aventura, um perigo, e morrer se tornou tão banal como por dá cá aquela palha, por um azar do destino ou porque calhava, ou porque assim a sina e o pão nosso de cada dia estavam traçados. Luanda regurgitava cadáveres a qualquer hora do dia ou da noite sem que alguém parecesse preocupar-se com isso. Neste cenário viver ou morrer era coisa que não estava na mão dele, que não estava nas mãos de ninguém, estava nas mãos de todos e de Deus todo-poderoso.


O viver ou morrer tornara-se uma montanha russa, uma questão de sorte, que melhor para uma convalescença senão olhar todos os dias as dezenas que não tinham tido essa oportunidade ? Estava vivo, ainda, obrigado meu Deus, não me esqueças, não me tires o olho de cima nem o tapete debaixo dos pés, confio em Ti, a vida é mesmo assim, não vale nada, pretos ou brancos, é indiferente, a morte é igual, por aqui a cotação de qualquer uma delas não vale um caralho. Quando caíam morteiros, e ainda os de 81 não tinham começado a cair e já as galinhas debandavam para anharas, os bairros viravam num reboliço, a vida na capital ficava toda de pantanas. O tenente entornava infusas como nem um cambuta faria nem que andasse aos pinotes caçambulando por todo o quarto. Depois das explosões, das morteiradas e da tropa acalmada ouviam-se as vozes dos monandengues procurando as galinhas no capim, trabalho de que se livram os cipaios que, de covilhete na mão e pintando figuras de sotrancão se empenhavam na retranca debaixo de uma qualquer mulemba, beberricando maruvo e olhando sem interesse alguns dambas mirando miragem devido ao mormaço e chutando com indiferença quaisquer dongos que se atrevessem a aparecer.

Para ser franco o que agora apetecia mesmo era um cozido à portuguesa, ou grão com mão de vaca pois embora a trague já deito moamba de galinha pelos olhos. Cerveja Nocal, a cerveja sem igual, maruvo e jindungo são o melhor remédio contra a guerrilha, as explosões, os saguis, dongos e companhia, quando é assim saio de casa, busco um sicómoro ao fundo do quintal e deixo que aquela tropa se entretenha a despejar fogo e a despachar umas granadas. Para minha segurança alojei-me no Hotel Trópico que todavia não deixa de abanar, de dar pulos, deixando cair caliça do tecto e onde tudo corre mal e é mal servido. Por isto a minha tropa agora é outra, entrado em excesso e em delírio vou aviando de enfiada tudo que meta cerveja, tudo que tenha jindungo, da galantina de vaca ao kiombo e até que fique opado, a regougar, deitando espuma pelos cantos da boca. Quando estou assim, cagado de medo e me enxarco, bem podem cair morteiros, até os de 81, os tais que ainda não têm caído e já as galinhas debandaram para anharas.


Ele trabalha de empreitada e nelas é um tão preto tão matumbo como qualquer outro preto matumbo. Não faz cazumbi mas faz-se de inzoneiro e bem bebido, bem atordoado, bem anestesiado, imagina-se num salão de beleza, tratando flor do congo deitado numa esteira, mordiscando caju, deixando correr a cerveja, segurando o cachimbo de bambu, doseando a liamba, mais tabaco, menos tabaco, dependendo de quanto está disposto a vingar-se ou a não se deixar xingar, batendo o pé ao ritmo do batuque tocado por um qualquer caçambuleiro que não quis ir na busca das galinhas no capim, ou capinar mortos.

Capinar também não é com ele, ta no férias, salão de beleza, cuidar de si, dos antrazes, antes de ficar sem pés, tão opados que nem lhe cabem nas botas, não é frioleira aquilo, pede mais cerveja, uma peineta de caju, muito jindungo e vem kombucha com fartura também nesse vir. Tá visto, vai no ficar por aqui, há que fazer no vida, a morte não o assusta já, já lhe assustou sim, agora está no confiar, há-de chegar ela, mas só quando tiver que chegá, diz.

Não teme não, não da p’ra isso diz para ele velho Nicolau, diz e repete, espreguiçando-se debaixo dum mamoeiro e adivinhando-lhe os pensamento. Logo esse velho cipaio que sobreviveu a dezenas de emboscadas, ataques, bazucadas, morteiradas e outras tantas aventuras que lhe custaram um pé, pouco para tanto baile diz ele por vezes, rindo de sua sina e repetindo esse rir que tanto faz ele rir, a sorte, a sina, o fado, e volta na volta lá vai buscá o Zeca e vai de Menino do Bairro Negro ou Um Homem Novo Veio Da Mata.


Conheci-o muito a sul, junto ao Cunene na aldeia dos hereros, onde vivia numa grande sanzala perto de Calueque o povo bantu, num povoado onde, sempre que passei não deixei nunca de cumprimentar um outro velho, o sábio Azekel (aquele que reza ao Senhor) um velho sábio tucokwe, bom manuseador de faca que ia enfiando bem afiada no marfim pachorrentamente, esculpindo-o com excelsa destreza.

Embora não fosse por dinheiro o velho vendia as mesmas estatuetas duas ou três vezes, ou mais, todos as queriam ter, como se fossem o amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho não olhava na cara nem nos olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição.

Ainda carrego ao peito a sua recordação, acreditei nele, no poder da sua estatueta, senti medo, caguei-me de medo algumas vezes, mas aguentei, resisti, agarrei-me à sua boneca, a Deus, à Nocal, a cerveja sem igual, ao maruvo, ao jindungo, à liamba, à galantina de vaca e ao kiombo, à fé, e aqui estou a segredar-vos os meus medos, a minha ventura, a minha sorte, a minha coragem, a minha firmeza, o meu ânimo ante o perigo, e prometo que me fico por aqui, não maçarei mais vocês, nem beberei mais hoje. Tá no prometido.