domingo, 17 de junho de 2018

508 - LEMBRO-O TANTO ... by Maria Luísa Baião

                
                   
 A vida é um sonho lindo, se vivida. Assim me transmitia meu avô a sabedoria que muitos anos de sofrimento e provavelmente frustrações lhe haviam inculcado no espírito. Recordo-o com saudade, mas com o mesmo amor que então lhe tinha. Contava-me lendas cujo começo era para mim poesia, poesia que invariavelmente me fazia crer em sentimentos e valores em que ainda hoje acredito, como a comoção e a verdade.

Por isso as horas passadas com ele eram magia. Aprendi a ver a Lua rindo para mim à noite, e no seu disco translúcido um velho carregando um feixe de lenha, o meu avô ou outro velho forte como ele. Nas noites mais frescas desvendava-me mistérios. Sentando-me no colo contagiava-me com uma calma impregnada da candura que só os velhos possuem e dele irradiava. Por isso sou forte como ele, pois assim me ensinou.

Os passeios pelo jardim do Paraíso, o ouvi-lo quedada e muda sonhando o mundo como mo descrevia. Ainda volto quando calha a esse jardim impregnado de aromas e ainda creio na candura dos velhos. Aprendi a olhar as estrelas estendida numa esteira. Leio-as, decifro-as nos seus enigmas.

Contava-me dos velhos do Restelo, que os havia em toda a parte e punha-me de sobreaviso. Sim, inda hoje eles são vistos e apesar de cavernosa há quem ouça a sua voz soando, nenhuma outra voz soa como essa.

Com ele aprendi a sentir a brisa do suão, o este e o oeste, o sul e o norte. Quantas vezes dei com ele sentado à mesa na sala, mergulhado na escuridão e num passado tão cheio quanto o vazio do presente. Olhos fixos no velho espelho de parede. Que lhe prenderia tanto a atenção ? Que veria ele ? Depois, dando por mim acendia a luz, disfarçava e murmurava-me que uma vez acabada a razão, restaria a fé. Durante anos não o entendi, quando o entendi chorei-o.

Recordo as suas mãos grandes, calosas, endurecidas na forja dos trabalhos do campo, rígidas de fortes, desajeitadas para os pequenos gestos. Na pele umas manchas, a brancura da reforma, o toque suave das suas carícias. Como esquecer ? E como elas tremiam, pelos anos, por temer magoar-me quando me pegava.

Nesses tempos a infância era um ritual, a vida corria a um outro ritmo. Atingida a menarca o dia virava cerimónia. E dava-se importância às gestas dos santos, às procissões, às festas, às celebrações de Natal, dos Reis, do Carnaval, da Páscoa. As estações do ano sucediam-se diferenciadas, inequívocas na indecifrável mudança dos dias. As festas marcavam a cadência da vida, assinalavam rupturas entre gerações, sem perda da reverência que as mais novas deviam à dignidade dos velhos. A vida não se confundia com um absurdo, e os jovens eram estóicos adultos.

Já não há bufarinheiros, ou carroças com toldos. Cal branca. Vendedores de gelados. Circo. Nem a vinda dos paisanos. Burricos, limpa-chaminés, aguadeiros, amola-tesouras, e já ninguém repara um guarda-chuva. Já não há originalidade, ingenuidade, integridade. Então, respeito e dor eram terna e respeitosamente ajudados ruas adiante. Funerais a pé davam tempo ao carpir. Já não há braçadeiras negras nos braços, nem escritos nas janelas, felizmente nem morrem já os anjinhos, como dantes.

O meu avô era um homem. Esculpia nas tabernas conversas sem fim. Largava tudo quando dava por mim. Já não há escultores. Nada é perpétuo, mas acreditamos que sim. Que ilusão, que engano. Que pena não ter comigo o meu avô, ele dir-vos-ia que somente a esperança é perpétua, e perene. Aprendi isso com ele. Não, ele nunca se enganou. Paz à sua alma.