A
vida é um sonho lindo, se vivida. Assim me transmitia meu avô a sabedoria que
muitos anos de sofrimento e provavelmente frustrações lhe haviam inculcado no
espírito. Recordo-o com saudade, mas com o mesmo amor que então lhe tinha.
Contava-me lendas cujo começo era para mim poesia, poesia que invariavelmente
me fazia crer em sentimentos e valores em que ainda hoje acredito, como a
comoção e a verdade.
Por
isso as horas passadas com ele eram magia. Aprendi a ver a Lua rindo para mim à
noite, e no seu disco translúcido um velho carregando um feixe de lenha, o meu
avô ou outro velho forte como ele. Nas noites mais frescas desvendava-me
mistérios. Sentando-me no colo contagiava-me com uma calma impregnada da
candura que só os velhos possuem e dele irradiava. Por isso sou forte como ele,
pois assim me ensinou.
Os
passeios pelo jardim do Paraíso, o ouvi-lo quedada e muda sonhando o mundo como
mo descrevia. Ainda volto quando calha a esse jardim impregnado de aromas e
ainda creio na candura dos velhos. Aprendi a olhar as estrelas estendida numa
esteira. Leio-as, decifro-as nos seus enigmas.
Contava-me
dos velhos do Restelo, que os havia em toda a parte e punha-me de sobreaviso.
Sim, inda hoje eles são vistos e apesar de cavernosa há quem ouça a sua voz
soando, nenhuma outra voz soa como essa.
Com
ele aprendi a sentir a brisa do suão, o este e o oeste, o sul e o norte.
Quantas vezes dei com ele sentado à mesa na sala, mergulhado na escuridão e num
passado tão cheio quanto o vazio do presente. Olhos fixos no velho espelho de
parede. Que lhe prenderia tanto a atenção ? Que veria ele ? Depois, dando por
mim acendia a luz, disfarçava e murmurava-me que uma vez acabada a razão,
restaria a fé. Durante anos não o entendi, quando o entendi chorei-o.
Recordo
as suas mãos grandes, calosas, endurecidas na forja dos trabalhos do campo,
rígidas de fortes, desajeitadas para os pequenos gestos. Na pele umas manchas,
a brancura da reforma, o toque suave das suas carícias. Como esquecer ? E como
elas tremiam, pelos anos, por temer magoar-me quando me pegava.
Nesses
tempos a infância era um ritual, a vida corria a um outro ritmo. Atingida a
menarca o dia virava cerimónia. E dava-se importância às gestas dos santos, às
procissões, às festas, às celebrações de Natal, dos Reis, do Carnaval, da
Páscoa. As estações do ano sucediam-se diferenciadas, inequívocas na
indecifrável mudança dos dias. As festas marcavam a cadência da vida,
assinalavam rupturas entre gerações, sem perda da reverência que as mais novas
deviam à dignidade dos velhos. A vida não se confundia com um absurdo, e os
jovens eram estóicos adultos.
Já
não há bufarinheiros, ou carroças com toldos. Cal branca. Vendedores de
gelados. Circo. Nem a vinda dos paisanos. Burricos, limpa-chaminés, aguadeiros,
amola-tesouras, e já ninguém repara um guarda-chuva. Já não há originalidade,
ingenuidade, integridade. Então, respeito e dor eram terna e respeitosamente
ajudados ruas adiante. Funerais a pé davam tempo ao carpir. Já não há
braçadeiras negras nos braços, nem escritos nas janelas, felizmente nem morrem
já os anjinhos, como dantes.
O
meu avô era um homem. Esculpia nas tabernas conversas sem fim. Largava tudo
quando dava por mim. Já não há escultores. Nada é perpétuo, mas acreditamos que
sim. Que ilusão, que engano. Que pena não ter comigo o meu avô, ele dir-vos-ia
que somente a esperança é perpétua, e perene. Aprendi isso com ele. Não, ele
nunca se enganou. Paz à sua alma.
* Publicado por Maria Luísa
Baião em https://www.facebook.com/notes/maria-luisa-baiao/lembro-o-tanto/2128836313797150/