quarta-feira, 27 de julho de 2011

74 - DOEM-ME AS CRUZES...



Era, porém doem-me as cruzes…
como se todas as dores do mundo nelas…
e eu, aflito, como se temendo as luzes
que a infinita noite decerto pintará…

Por isso busco a paz calma que, bem lá
em cima dos degraus consigo ter…
qual Hércules que as doze tarefas acabara de fazer
descansando ao sol, olhar vago, morto já…

Foi de festa e alegria o primeiro filho
uma dúzia mais, foi sofrimento…
nem Atlas suportou igual tormento,
entende então o caminho que ora não trilho…

Por isso aqui me quedo, olhos e alma…
beata dançando de um ao outro lado da boca desdentada
calças fedendo… por ter buscado a calma
e ser somente um homem, não Joaquim Caeiro Palma .

Recordando a imagem do meu saudoso avô Joaquim,  Évora em 26 de Julho de 2011   


segunda-feira, 25 de julho de 2011

E À ESQUERDA O SOL ...............................................


Juro-vos que me não lembro inteiramente. (s.e.o.) salvo erro e omissão, a sala tinha quatro grandes janelas à minha direita, altas, eu, tão sumido na carteira que nem lobrigava o largo, à frente o quadro negro, a cruz e as fotos dos presidentes, contou-me o Alvarinho da terceira classe que um presidente de branco, como o chefe da policia de Évora na farda de verão, o outro à civil, com nariz de judeu, tal qual o Abel, e à esquerda, não recordo bem mas decerto o sol porque D. Cristina:

 - O braço bem assente, o punho fechado sobre o lápis, peguem na ponta do lápis só com três dedos, a mão escorregando devagar da esquerda para direita, inclinada, a cair, atenção à luz das janelas, levantar a cabeça, e as janelas da luz eram as da esquerda, e por isso a minha certeza ainda que delas não me lembre

e à esquerda o sol, o recreio, uma palmeira grande, julgo que uma palmeira porque me aconchegava na sombra dos seus ramos caídos que eram grandes e picavam

- Vá agora devagar, com atenção e cuidado, a letra c, que é pequenina e fácil, olhem para o quadro, olhem para mim, vejam a minha mão, quem não for capaz é burrinho, um traço a partir da linha de base, inclinado e a subir, pára a meio do espaço, a curva em gancho em cima, volta e desce, em curva redondinha e acaba com o pezinho no ar

e a minha mão vermelha de responsabilidade e da força com que agarrava o lápis de xisto, os dedos brancos da pressão, os três dedos, o suor da mão na tábua de ardósia, o traço, o gancho, a curva e a perninha, mordi o lábio

já está

e o recreio um quintal de muros altos e do outro lado de um deles as raparigas brincando à cabra cega e ao galo, aos elásticos, à corda

- Meninos ! todos a rezar ! pousem os talheres, mãos postas !
 
e quando era grão ou feijão com arroz eu gostava, só não gostei nunca foi das colheradas do óleo de fígado de bacalhau porque sabia a rançoso e me dava vómitos e ás vezes ânsias por isso fugi da cantina e nesse dia almocei em casa, o senhor Jeremias

- D. Antónia, ainda não se fabrica melhor ou mais moderno que esta Oliva, a senhora vai agradecer-me a hora em que

e em casa o meu pai de pincel na ponta de uma cana comprida pincelando os altos de um cor-de-rosa desmaiado que ainda hoje lembro, e desse cor-de-rosa tive eu duas camisolas de manga curta porque a primeira o Tita ma rasgou numa brincadeira

- Parte do meio, inclina para a direita e sobe, agora para baixo, a direito, e termina sem pé, vá lá, todos, três linhas todas com o número um, certinhos e em sentido

a casa era alta por ficar nos baixos de uma igreja, por cima outra escola, a dos mais crescidos. Quando o sino tocava a minha casa tremia de fé e devoção o meu pai dizia que os toques soltavam a caliça dos tectos que eram altos, só ele com uma cana, um pincel na ponta, era capaz de os caiar. 

Acho que o meu mano mais velho andou ainda nessa escola, depois o seminário, e do seminário trazia desenhos plenos de devoção  e de cores que eu só vira nas revistas da loja do senhor Léca que era droguista e onde o meu mano comprava os mosquitos e os mundos de aventuras dos quais eu lembro os bonecos 

- Vá lá meninos ! os da primeira todos a desenhar os números, três linhas cheias com uns, bem feitos, irei vê-los a todos,. Os da segunda copiam a página do livro com o desenho do menino e das bolotas. E os da terceira preparem tudo e atenção ao ditado, não repito, cuidado para não perderem palavras, toca a trabalhar, não quero ver ninguém parado, tudo a mexer ! Vá lá meninos !

e ora batia palmas ora batia com o ponteiro na carteira da frente, a do Álvaro, e ninguém piava, todos mais caladinhos que ratos que a D. Cristina não era para brincadeiras e tinha a mão leve para bordoadas no cachaço dos mais renitentes, Eu com ela aprendi a sério e a valer e de um cachação de vez em quando não me livrei, lembro-me bem, porque eu vermelho e me doíam onde mais doem as pancadas, no orgulho

o chefe do meu pai antes do senhor Massano era do norte e comia a melancia enfiando a cabeça toda nela e debruçado sobre uma lata, o que me dava vontade de rir, não cortava talhadas como nós, cortava metades e enfiava o focinho nelas que mais parecia um bácoro, disse uma vez o meu pai depois da abalada dele

D. Cristina, Maria Cristina Calhau Pinto, gostava de mim e eu que ela gostasse de mim, e por ela gostar de mim fazia as letras e os números todos bem feitinhos. Só me lembro ser era alta, vestindo sempre de negro. E no pátio do recreio nem um baloiço, só covas de berlindes e os maiores, não pises aí senão levas uma galheta

um coração de oiro pendia-lhe do peito e por aí sabia quando estava zangada porque o estava sempre abrindo e beijando. E o giz chiava no quadro quando o arrastava, quando ela assim ninguém  piava. 

E ninguém éramos nós, muito mais de cinquenta, e só a quarta classe na outra escola por cima da igreja, mas aí as raparigas e os rapazes estão juntos

a senhora Benvinda veio outra vez queixar-se do cotovelo que as limpezas inflamam, e D. Cristina sente-se lá ao fundo um bocadinho, naquela carteira vaga, descanse um pouquito que bem sei como elas mordem, tenho um joelho que com o frio nem sei se lhe diga

e o Álvaro, sempre o primeiro a acabar as cópias, e ele com o braço no ar, e de caderno no ar, sempre orgulhoso apesar dos outros; - graxista, és um lambe botas da senhora professora, 

e ninguém para jogar com ele ao berlinde no recreio,. E como não, hoje é o director das finanças e já não lhe chamam graxista de merda nem há quem não lhe rogue favores.

- Quando era vivo quem me massajava o joelho era o meu marido que Deus tem que até me davam arrepios

- E nem assim filhos D. Cristina ? foi nessas brincadeiras que o meu Timóteo me deslocou o cotovelo que estou mesmo a ver que sem ir ao endireita isto não vai lá

e depois no ditado dos da terceira classe arrastava na voz para saberem que era para eles

- Mal a folha tombou no chão a raposa, virgula, virou-se de repente para a latada, virgula, repito, virou-se de repente para a latada, virgula, escrevam, 

e acabada a frase fechou entre as mãos e com estrondo o livro da terceira classe, 

- podem sair, 

- os da terceira só saem quando acabarem o ditado, 

e eu, devagarinho, corri para o recreio e, repentinamente eu aqui, recordando-te porque lembrei os cabelos da espanhola que não eras, e eu de dedos em pente, penteando-te até fechar os olhos, feliz,

e foi assim que ainda hoje te lembrei mãe e assim gostaria ainda que pudesse acontecer sempre…
























domingo, 24 de julho de 2011

73 - UMA ESPECIAL EFEMÉRIDE..............................


Correndo se some o ano na contemplação efemérica da pegada do homem na lua. Violado teria sido muitas mais vezes aquele astro mas, como às virgens, só a primeira vez conta, tem valor, vale a pena e se grava na memória. Hodiernamente, a pegada ecológica é que está na berra, na berlinda, a dar, contudo aquela pegada na cinza lunar deixou, em mim, imagens e impressões dificílimas de dissipar.

Pouco mais eu seria na altura que um puto tímido, ao certo apenas recordo ser amante inveterado de batatas-fritas, cujos pacotes, de papel pardo, adquiria nas tabernas junto à morgue do então hospital da Misericórdia, pacotes e qualidade até hoje sem igual. Aquelas sim, eram caseiras, saborosas que nem guloseima, fininhas, salgadinhas e um primor, tudo por uns meros cinquenta centavos, cinco tostões que gaiato algum deixaria de arranjar. Melhores que essas batatas-fritas, só mesmo as favas-fritas da taberna do Chico Fofa, ali à rua de Machede.

Nessa tarde entrara eu atraído pelas favas e por inusual multidão que àquela hora enchia o antro, quedada muda frente à televisão a preto e branco. Custosamente me esgueirei para o balcão gorduroso, mais alto que eu, todavia mestre Chico Fofa desta vez nem foi solícito a debruçar-se sobre o mesmo para inquirir das minhas razões, olho que tinha também ele pregado ao televisor. Mas para o negócio guardava ele o outro olho, e sabendo que dinheiro de criança é pouco mas mais louco quem o não aproveita, lá me lançou um olhar guloso à moeda reluzente entre os dedos da mesma mão em que, sem tirar o olho outro do televisor, depositou o habitual cone de papel pardo recheado de favas-fritas estaladiças.

Olhando ao alto no regresso à rua só vi rostos estupefactos; que era tudo mentira diziam uns, que era o maior feito do homem contra-argumentavam segundos, é tudo encenado, atirava juntamente com o queixo mestre Chico Fofa, senhor de toda a autoridade que o facto de ser dono de uma das poucas tabernas com televisão somado à real e insofismável verdade que ser dos telespectadores mais antigos lhe dava. Verdadeiramente ciente da solenidade do momento só mesmo o senhor Óscar, que me ergueu ao alto e ao colo, e num sussurro que ainda hoje desconheço a quem dirigido; fixa isto miúdo, fixa o momento da chegada à “nova fronteira” pois vai marcar doravante toda a tua vida. Não o entendi claro, nem isso nem o motivo por que quase me atirou ao chão afim de ir correndo atender uma fogosa freguesa reclamando dois quartilhos de feijão-frade. 

Para quem não saiba o senhor Óscar, um jovem de iniciativa, detinha na rua e talvez na cidade a mais bem apetrechada mercearia. Talhas para o açúcar, para as leguminosas em semente, para a farinha e o farelo, a alfarroba, cevada, aveia, uma moderna bomba manual para o azeite, um facalhão guilhotina para o bacalhau, e, surpresa das surpresas, um jogo de quartos e quartilhos em plástico multicor como na terra alguém jamais vira. Era enchê-los, passar o rolo da lei sobre os mesmos e estava justamente aviado o freguês. Voltou, voltou para pegar-me, eu babado de ranho e de nódoas das favas-fritas, ele a sussurrar-me não ter havido fronteira mais difícil de conquistar do que aquela. Gravei !

Gravei e durante anos rememorei as suas palavras. Anos mais tarde aprenderia o que era a fronteira, os caramelos de Badajoz e os passeios a essas coisas associados. Levaria anos até que a expressão “desafio de Kennedy à exploração da última fronteira” acordassem em mim as sábias palavras do senhor Óscar, comerciante empreendedor e inovador como seria hoje apelidado. Solícito era, e também um paz de alma, um colosso de beatitude ateia sem igual e forte como um touro ou assim parecendo aos meus olhos de menino. Depois… bem… depois conheci muita gente, muitas fronteiras, a de Berlim, a de ferro, outros povos, muitos povos, muitas pessoas, conheci Eça, conheci Camilo, Almeida Garrett, tantos outros, e tudo tão relativo, tão dúbio, tão movediço que olhava em meu redor e nem uma linha, uma fronteira, um objectivo, um desígnio, uma bóia…

Sinto saudades de quando criança, dos braços fortes do senhor Óscar, das certezas do senhor Óscar, das profecias do senhor Óscar, das favas-fritas do Chico Fofa, das tabernas junto à morgue, das batatas a cinco tostões, do mundo firme no seu eixo, da certeza de ao leme um homem sábio, do bibe da escola em minúsculos quadradinhos azuis e brancos, do Chafariz D’El-Rei, do professor Pulga, do Ford Cortina cujo verde limão me deslumbrava, do conta quilómetros que marcava mais de cem e me fazia idealizar as fronteiras que atingiria,. Vou pedir à minha avó Inácia dez tostões, comprar um pacote de batatas e outro de favas-fritas e espreitar o braço forte do Senhor Óscar fazendo descer a guilhotina do bacalhau que gemerá ao ser cortado, eu sei, eu vi, tantas vezes vi que já nem me lembro nem sei o que foi feito do Luther King.

 

sábado, 23 de julho de 2011

72 - AO SOM DE UM SONHO...


Passeavam-se abraçados, naquela bruma que a escuridão da ilha de Faro torna mais densa se à beira-mar, num daqueles amplexos de noviços em que a incerteza deixa o aperto por cumprir, pés marcando a areia molhada, até que ela olhando e apontando a lua, aproveitou para lhe pegar na mão, que não mais largou.

 

Ele, volvida a inicial hesitação e a confiança que aquela mão na sua lhe conferia, parou, esqueceu a lua e a si a puxou, num arrebatamento de quem não consegue esconder um desejo velho e amordaçado há muito tempo.

 

Ângela sonhava há anos com esse mundo real e fantástico que a cadência das brisas do Saara trazia até ela. Matemática e sincopadamente essa frustração aparecia com o estio e a canícula de cada ano, tão rigorosamente quanto o seu relógio biológico desde a menarca, coisa que já nem lembrava, lhe encurtava os meses como se de Fevereiros se tratasse sempre.

 

Pois em cada ano e logo pela manhã era vê-los, e ver delirar Ângela, já que um anormal número de motociclistas davam sinal da sua presença, sobretudo da sua impaciência e regozijo ante os menos informados, dando de forma esfusiante conhecimento que algo de grandioso se passava, já que de muitas proveniências ali paravam para uma bica, ou simplesmente para desentorpecer as pernas e abastecer depósitos, na passagem ou percurso rumo à terra prometida e cada vez mais de todos, o mítico Allgarve.

 

Ângela suspirava, dava-lhe gozo e gosto vê-los, vestidos à maneira, montando potentes máquinas, lembrando até aos mais distraídos os cavaleiros de antanho na rota dos peregrinos, dando provas de uma fé que ela não conhecia, de um credo que sofregamente desejava abraçar, de uma irmandade a que há muito aspirava pertencer.

 

Apesar de homem maduro Gilberto sentiu-se tremer como adolescente imberbe, domou um medo enorme que só o desejo há tanto calado superava, sentiu-lhe o corpo quente, o odor inebriante, acariciou-lhe o pescoço descoberto pelo cabelo apanhado, fruiu a maciez sedosa da sua pele, segurou-a pela nuca, procurou-lhe os lábios carnudos que sequiosos buscavam os seus, beijou-a, língua avidamente exigida por outra língua, sentiu nela um frémito que o encorajou e, calmamente, dobraram os joelhos e quedaram-se na areia, as mãos buscando-se na ânsia de se conhecerem, ela arfando ao ritmo da respiração dele cujas mãos a percorriam e encontravam desperta, numa atitude tanto de dádiva e entrega como de premente exigência, até que, conhecidos os segredos e afastados os medos, os dedos dele a sentiram enquanto ela os sentiu e consentiu e a despertaram de um torpor lânguido que quis e prolongou, para finalmente serem saboreados, chupados, sugados por ambos, num ritual ou feitiço ancestral em que o cheiro da fêmea sempre preparou os humanos para o amor carnal voluptuoso, numa ansiedade desmedida próxima da violência masoquista.

 

Casara jovem Ângela, e a assumpção desse papel a privara sempre desse sonho que desde menina acalentava, e a cada ano mais lhe acentuava o saudosismo de uma promessa por cumprir. Gilberto, vizinho, e motard, desde cedo percebeu os sonhos por cumprir naquele rosto, onde os percepcionava mais guardados que escondidos, mais sonhados que vividos.

 

E tão bem percebeu, tão carentes os encontrou nessa vizinha amiga que lhe sussurrou numa palavra terna, cúmplice e compreensiva, o mínimo que ela esperava ouvir de alguém, que os seus mais sagrados sonhos devaneios e anseios poderiam ser escutados e ter eco. Tiveram.

 

Ângela, a meio de um processo de divórcio, logo ali lhe fez jurar quanto bem lhe queria por isso, e que, a fazerem-no, o fariam como dois ladrões, ás escondidas de todos, como num pacto de sangue que nenhuma contrariedade pudesse quebrar.

 

Apenas o cansaço os refreou por breves momentos, aproveitados, qual deslumbramento, para se olharem como quem nunca se vira, e se estranharem como terá sido possível que, vizinhos durante tantos anos, mutua e tão profundamente se tenham ignorado.

 

Então, como quem tenta recuperar tempo e oportunidades perdidas, foi dela a vez de o perceber e sentir como quem ás apalpadelas tacteia o caminho, lhe sentir a pulsação, ofega de ímpeto e desejo, lhe conhecer intimidades, agora dela, o provocar e aquecer com o hálito quente, titilar c’a ponta da língua, sorver com avidez, medindo e sustendo a compreensível agitação dele, parando e recomeçando de modo a não parar de vez, delirando ambos, sequiosos ambos do que não tinha fim e temiam perder, sofregamente enredados, ternamente entregues, esquecidos e conquistados.

 

A lua movia-se no céu, transladando o tempo pelo qual não deram, capazes mesmo de jurar ter ele parado ali, para eles, para que se dessedentassem de anos de carências, frustrações, desejos reprimidos ou insatisfeitos, de alheamentos feitos e sofridos, fingimentos, fugas, mentiras e desculpas.

 

Então, quando tudo ameaçava ruir por qualquer deles ser incapaz de se conter um minuto mais, suavemente o travou como quem acalma uma criança a quem tiraram um brinquedo, lhe sussurrou ao ouvido ternas palavras cujo eco ouviu repercutido nela mesma, o conduziu como e onde quis, lhe ofereceu o peito como altar e o deixou embriagar-se de si mesma, até ao momento em que o recolheu nos braços como se tivera asas, soergueu e, entreabrindo as pernas, o tomou nas suas próprias mãos como quem cuida do desaparecido Graal, a si o guiou e em si o recebeu enquanto no céu uma estrela cadente, talvez um cometa, registou a simultaneidade daquele momento de clímax que hão-de recordar vida fora como se vivido à luz ou ao som de um sonho porque na ponte e na marginal, os roncares dos motores mais não eram que um suspiro longínquo confundido com música celestial.





sábado, 16 de julho de 2011

71 - ORA VEJAM SÓ O QUE EU PERDI ...


Dedico as duras e contritas palavras que se seguem a uma querida amiga, esquerdista e liberal, absurda e contraditoriamente as duas coisas ou excepcionalmente uma terceira opção, parva, a fim de que ela guarde para memória futura o meu vero testemunho, já que é normal insurgir-se contra mim sempre que eu, de forma despicienda, trato os bois pelos nomes.

Como vocês todos (as) já perceberam pendi para a escrita, forma de ocupação por excelência (esta palavra traz-me à memória conotações negativíssimas...), longe porém de ter sido a minha primeira paixão ou vocação, ainda que cedíssimo o gosto pela leitura tenha sido em mim inoculado pelos motivos que no texto sessenta e três vos contei.

A minha primeira chama foi a Lúcia, de grandes tranças, olhos verdes, e com quem prazenteiramente repartia os solavancos do autocarro, àquela hora sempre abarrotado de gente do bairro à cidade.

Viajar com a Lúcia naquela carcaça apinhada e resfolgando a cada paragem era para mim o máximo, era musica celestial e, talvez por isso, em mim uma queda para a musica, a que meus pais procuraram dar corpo inscrevendo-me na Escola de Musica da FNAT, Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, nome que mais tarde me soaria demasiado pan-germânico, cousa em que penso não me ter enganado já que actualmente tem a designação de INATEL.

Assim fui aprender o solfejo e a dedilhar um instrumento, muito cedo, ou muito novo, sob a batuta do Maestro Ismael, mais musico da alma que do ouvido, que me tomou como aprendiz de eleição e, não fora o papá um dia ter-me arrancado ás suas garras, o Maestro Ismael teria em mim tocado clarinete e pífaro, oboé e flauta… sem que o meu medo o constrangesse quanto o constrangeram os socos deixados de presente pelo papá e que dessa forma brusca me arrancaram ás suas garras afiadas e monstruosas, atirando-o por terra soluçando o seu próprio sangue, dentes e lágrimas.

Cena violenta para uma criança dirão, mas na realidade bem depressa esquecida pois dali, do antigo Palácio do Barrocal, nos dirigimos directamente a casa do “estafeta” Semião, bem pertinho por acaso, buscar a viola ou violão que o papá e eu ternamente escolhêramos num catálogo de venda por encomenda.

Tamanha emoção depressa me faria esquecer tanta violência, e à escolha do violão, com uma bela imagem de uma ainda mais bela morena bem moreninha, não terá sido inocente ao meu pendor pelos bronzeados, moreninha mais parecendo bamboleando-se à sombra de verdejante palmeira em praia paradisíaca sob um sol que dava vida a todo aquele envernizado panorama.

Maior que eu, o violão, não a morena, com um braço que meus tenros dedos eram ainda incapazes de abarcar, ficou para sempre, tal qual o solfejo, remetido a uma aprendizagem futura que nem as Novas Oportunidades abriram.

Passaram-se anos, esqueci, cresci, e mais tarde, pelos meus dezasseis ou dezassete anos, numa providencial boleia para Lisboa, outro Ismael havia de me prometer mundos e fundos, apalpar-me as pernas e, de olhos esbugalhados o deixei, órbitas ameaçando saltar fora, mais parecendo um peixe morto, mal me viu sair antes do fim da viagem e na primeira ocasião que se me deparou.

Ocasião perdida, penso eu rindo-me ao observar a solidariedade e coesão que entre olhares de peixe morto se estabeleceu nos dias de hoje, que o mais certo era eu ter não só o apartamento prometido, como o Porche, e um lugar de administrador na Casa Pia, apresentador de Tv ou ministro…

Vejam só o que eu perdi…

Enjoei Lisboa, os anos de tropa que fiz na “briosa” como voluntário (fui fuzileiro naval), mostraram-me o lado bom e o mau da espécie humana. De tal modo que ainda hoje para mim um paneleiro é um paneleiro e nada a acrescentar, mau grado as criticas abertas dessa tal amiga tontinha, cujas tonturas na realidade só começarão no dia em que algum dos seus filhos ou filhas sejam molestados por um destes monstros, que tanto clamam por direitos iguais e me deixam sem saber se todos com os mesmos direitos ou se todos nós igualmente direitos e tesos para gáudio dessa matilha.

Já nos twenties, ou twentyager, aluno universitário, e ainda um desses cabrões se faria a mim, numa noite em que fora solicitar livros e subsídios de estudo ao balcão do meu sindicato, onde ele mourejava, ali à praça maior por cima do Banco Português do Atlântico.

Como ia dizendo, ali mourejava o Moio, ou Alqueire, já nem recordo o nome, mas recordo, e bem, a joelhada que lhe dei quando da genuflexão que fez  ao implorar-me e beijar-me as mãos, os pés, e o mais que eu tivesse deixado, tudo à vista de um cofre que abrira para me dar o mísero subsidio, mas sob a promessa de virem parar ás minhas mãos todos aqueles maços de notas que nem me arregalaram os olhos.

Arregalei-os sim quando momento e circunstâncias me recordaram o papá e, com a coragem induzida e uma joelhada bem assestada, joguei longe e aos trambolhões o ultimo Ismael que me arregalou os seus olhos de peixe morto.


Hoje sei dos casos pelos jornais, o João Pedro e a Mãe, o embaixador, o Rei Ghob, o padre Frederico, outros padres, o Castro, outros Castros, são meros exemplos de indivíduos desviados, tarados, possessos, desnaturados, bichas, debochados, gays, panascas, paneleiros, devassos, promíscuos …  perigosos… desta vez a polémica envolve um inquérito a vários professores de uma escola de música do Funchal que, "alegadamente"  dariam notas de acordo com favores sexuais obtidos de menores.... e eu fico matutando, quanto valerá um carinho nas coxas lisinhas de uma garotinha ou no peito de um adónis ainda imberbe? treze? e uma carícia no pi-pi ou na pilinha? quinze? e uma festinha por mãozinha inocente..... dezoito ? e o clímax na boquinha ? vinte ??? meu Deus... quantas vocações perdidas... e eu é que sou uma besta...