Juro-vos que me não lembro inteiramente. (s.e.o.)
salvo erro e omissão, a sala tinha quatro grandes janelas à minha direita, altas,
eu, tão sumido na carteira que nem lobrigava o largo, à frente o quadro negro, a cruz e
as fotos dos presidentes, contou-me o Alvarinho da terceira classe que um presidente
de branco, como o chefe da policia de Évora na farda de verão, o outro à civil,
com nariz de judeu, tal qual o Abel, e à esquerda, não recordo bem mas decerto o sol porque D. Cristina:
- O braço bem
assente, o punho fechado sobre o lápis, peguem na ponta do lápis só com três
dedos, a mão escorregando devagar da esquerda para direita, inclinada, a cair,
atenção à luz das janelas, levantar a cabeça, e as janelas da luz eram as da
esquerda, e por isso a minha certeza ainda que delas não me lembre
e à esquerda o sol, o recreio, uma palmeira grande,
julgo que uma palmeira porque me aconchegava na sombra dos seus ramos caídos
que eram grandes e picavam
- Vá agora devagar, com atenção e cuidado, a letra c,
que é pequenina e fácil, olhem para o quadro, olhem para mim, vejam a minha mão, quem não for capaz é burrinho, um traço a partir da
linha de base, inclinado e a subir, pára a meio do espaço, a curva em gancho em
cima, volta e desce, em curva redondinha e acaba com o pezinho no ar
e a minha mão vermelha de responsabilidade e da força
com que agarrava o lápis de xisto, os dedos brancos da pressão, os três dedos,
o suor da mão na tábua de ardósia, o traço, o gancho, a curva e a perninha,
mordi o lábio
já está
e o recreio um quintal de muros altos e do outro lado
de um deles as raparigas brincando à cabra cega e ao galo, aos elásticos, à corda
- Meninos ! todos a rezar ! pousem os talheres, mãos postas !
e quando era grão ou feijão com arroz eu gostava, só não gostei nunca foi das colheradas do óleo de fígado de bacalhau porque sabia a rançoso e me dava vómitos e ás vezes ânsias por isso fugi da cantina e nesse dia almocei em casa, o senhor Jeremias
- D. Antónia, ainda não se fabrica melhor ou mais
moderno que esta Oliva, a senhora vai agradecer-me a hora em que
e em casa o meu pai de pincel na ponta de uma cana
comprida pincelando os altos de um cor-de-rosa desmaiado que ainda hoje lembro,
e desse cor-de-rosa tive eu duas camisolas de manga curta porque a primeira o
Tita ma rasgou numa brincadeira
- Parte do meio, inclina para a direita e sobe, agora
para baixo, a direito, e termina sem pé, vá lá, todos, três linhas todas com o
número um, certinhos e em sentido
a casa era alta por ficar nos baixos de uma igreja, por cima outra escola, a dos mais crescidos. Quando o sino tocava a minha casa
tremia de fé e devoção o meu pai dizia que os toques soltavam a caliça dos
tectos que eram altos, só ele com uma cana, um pincel na ponta, era capaz de os
caiar.
Acho que o meu mano mais velho andou ainda nessa escola, depois o
seminário, e do seminário trazia desenhos plenos de devoção e de cores que eu só vira nas revistas da
loja do senhor Léca que era droguista e onde o meu mano comprava os mosquitos
e os mundos de aventuras dos quais eu lembro os bonecos
- Vá lá meninos ! os da primeira todos a desenhar os
números, três linhas cheias com uns, bem feitos, irei vê-los a todos,. Os da
segunda copiam a página do livro com o desenho do menino e das bolotas. E os da
terceira preparem tudo e atenção ao ditado, não repito, cuidado para não
perderem palavras, toca a trabalhar, não quero ver ninguém parado, tudo a mexer
! Vá lá meninos !
e ora batia palmas ora batia com o ponteiro na
carteira da frente, a do Álvaro, e ninguém piava, todos mais caladinhos que
ratos que a D. Cristina não era para brincadeiras e tinha a mão leve para
bordoadas no cachaço dos mais renitentes, Eu com ela aprendi a sério e a valer
e de um cachação de vez em quando não me livrei, lembro-me bem, porque eu
vermelho e me doíam onde mais doem as pancadas, no orgulho
o chefe do meu pai antes do senhor Massano era do
norte e comia a melancia enfiando a cabeça toda nela e debruçado sobre uma lata,
o que me dava vontade de rir, não cortava talhadas como nós, cortava metades e
enfiava o focinho nelas que mais parecia um bácoro, disse uma vez o meu pai
depois da abalada dele
D. Cristina, Maria Cristina Calhau Pinto, gostava de
mim e eu que ela gostasse de mim, e por ela gostar de mim fazia as letras e os
números todos bem feitinhos. Só me lembro ser era alta, vestindo sempre de
negro. E no pátio do recreio nem um baloiço, só covas de berlindes e os
maiores, não pises aí senão levas uma galheta
um coração de oiro pendia-lhe do peito e por aí sabia quando estava zangada porque o estava sempre abrindo e beijando. E o giz chiava no quadro
quando o arrastava, quando ela assim ninguém
piava.
E ninguém éramos nós, muito mais de cinquenta, e só a quarta classe na
outra escola por cima da igreja, mas aí as raparigas e os rapazes estão juntos
a senhora Benvinda veio outra vez queixar-se do
cotovelo que as limpezas inflamam, e D. Cristina sente-se lá ao fundo um
bocadinho, naquela carteira vaga, descanse um pouquito que bem sei como elas
mordem, tenho um joelho que com o frio nem sei se lhe diga
e o Álvaro, sempre o primeiro a acabar as cópias, e
ele com o braço no ar, e de caderno no ar, sempre orgulhoso apesar dos outros; - graxista, és um lambe botas da senhora professora,
e ninguém para jogar com ele
ao berlinde no recreio,. E como não, hoje é o director das finanças e já não lhe
chamam graxista de merda nem há quem não lhe rogue favores.
- Quando era vivo quem me massajava o joelho era o
meu marido que Deus tem que até me davam arrepios
- E nem assim filhos D. Cristina ? foi nessas
brincadeiras que o meu Timóteo me deslocou o cotovelo que estou mesmo a ver que
sem ir ao endireita isto não vai lá
e depois no ditado dos da terceira classe arrastava
na voz para saberem que era para eles
- Mal a folha tombou no chão a raposa, virgula,
virou-se de repente para a latada, virgula, repito, virou-se de repente para a
latada, virgula, escrevam,
e acabada a frase fechou entre as mãos e com
estrondo o livro da terceira classe,
- podem sair,
- os da terceira só saem quando
acabarem o ditado,
e eu, devagarinho, corri para o recreio e, repentinamente
eu aqui, recordando-te porque lembrei os cabelos da espanhola que não eras, e
eu de dedos em pente, penteando-te até fechar os olhos, feliz,
e foi assim que
ainda hoje te lembrei mãe e assim gostaria ainda que pudesse acontecer sempre…