sábado, 23 de julho de 2011

72 - AO SOM DE UM SONHO...


Passeavam-se abraçados, naquela bruma que a escuridão da ilha de Faro torna mais densa se à beira-mar, num daqueles amplexos de noviços em que a incerteza deixa o aperto por cumprir, pés marcando a areia molhada, até que ela olhando e apontando a lua, aproveitou para lhe pegar na mão, que não mais largou.

 

Ele, volvida a inicial hesitação e a confiança que aquela mão na sua lhe conferia, parou, esqueceu a lua e a si a puxou, num arrebatamento de quem não consegue esconder um desejo velho e amordaçado há muito tempo.

 

Ângela sonhava há anos com esse mundo real e fantástico que a cadência das brisas do Saara trazia até ela. Matemática e sincopadamente essa frustração aparecia com o estio e a canícula de cada ano, tão rigorosamente quanto o seu relógio biológico desde a menarca, coisa que já nem lembrava, lhe encurtava os meses como se de Fevereiros se tratasse sempre.

 

Pois em cada ano e logo pela manhã era vê-los, e ver delirar Ângela, já que um anormal número de motociclistas davam sinal da sua presença, sobretudo da sua impaciência e regozijo ante os menos informados, dando de forma esfusiante conhecimento que algo de grandioso se passava, já que de muitas proveniências ali paravam para uma bica, ou simplesmente para desentorpecer as pernas e abastecer depósitos, na passagem ou percurso rumo à terra prometida e cada vez mais de todos, o mítico Allgarve.

 

Ângela suspirava, dava-lhe gozo e gosto vê-los, vestidos à maneira, montando potentes máquinas, lembrando até aos mais distraídos os cavaleiros de antanho na rota dos peregrinos, dando provas de uma fé que ela não conhecia, de um credo que sofregamente desejava abraçar, de uma irmandade a que há muito aspirava pertencer.

 

Apesar de homem maduro Gilberto sentiu-se tremer como adolescente imberbe, domou um medo enorme que só o desejo há tanto calado superava, sentiu-lhe o corpo quente, o odor inebriante, acariciou-lhe o pescoço descoberto pelo cabelo apanhado, fruiu a maciez sedosa da sua pele, segurou-a pela nuca, procurou-lhe os lábios carnudos que sequiosos buscavam os seus, beijou-a, língua avidamente exigida por outra língua, sentiu nela um frémito que o encorajou e, calmamente, dobraram os joelhos e quedaram-se na areia, as mãos buscando-se na ânsia de se conhecerem, ela arfando ao ritmo da respiração dele cujas mãos a percorriam e encontravam desperta, numa atitude tanto de dádiva e entrega como de premente exigência, até que, conhecidos os segredos e afastados os medos, os dedos dele a sentiram enquanto ela os sentiu e consentiu e a despertaram de um torpor lânguido que quis e prolongou, para finalmente serem saboreados, chupados, sugados por ambos, num ritual ou feitiço ancestral em que o cheiro da fêmea sempre preparou os humanos para o amor carnal voluptuoso, numa ansiedade desmedida próxima da violência masoquista.

 

Casara jovem Ângela, e a assumpção desse papel a privara sempre desse sonho que desde menina acalentava, e a cada ano mais lhe acentuava o saudosismo de uma promessa por cumprir. Gilberto, vizinho, e motard, desde cedo percebeu os sonhos por cumprir naquele rosto, onde os percepcionava mais guardados que escondidos, mais sonhados que vividos.

 

E tão bem percebeu, tão carentes os encontrou nessa vizinha amiga que lhe sussurrou numa palavra terna, cúmplice e compreensiva, o mínimo que ela esperava ouvir de alguém, que os seus mais sagrados sonhos devaneios e anseios poderiam ser escutados e ter eco. Tiveram.

 

Ângela, a meio de um processo de divórcio, logo ali lhe fez jurar quanto bem lhe queria por isso, e que, a fazerem-no, o fariam como dois ladrões, ás escondidas de todos, como num pacto de sangue que nenhuma contrariedade pudesse quebrar.

 

Apenas o cansaço os refreou por breves momentos, aproveitados, qual deslumbramento, para se olharem como quem nunca se vira, e se estranharem como terá sido possível que, vizinhos durante tantos anos, mutua e tão profundamente se tenham ignorado.

 

Então, como quem tenta recuperar tempo e oportunidades perdidas, foi dela a vez de o perceber e sentir como quem ás apalpadelas tacteia o caminho, lhe sentir a pulsação, ofega de ímpeto e desejo, lhe conhecer intimidades, agora dela, o provocar e aquecer com o hálito quente, titilar c’a ponta da língua, sorver com avidez, medindo e sustendo a compreensível agitação dele, parando e recomeçando de modo a não parar de vez, delirando ambos, sequiosos ambos do que não tinha fim e temiam perder, sofregamente enredados, ternamente entregues, esquecidos e conquistados.

 

A lua movia-se no céu, transladando o tempo pelo qual não deram, capazes mesmo de jurar ter ele parado ali, para eles, para que se dessedentassem de anos de carências, frustrações, desejos reprimidos ou insatisfeitos, de alheamentos feitos e sofridos, fingimentos, fugas, mentiras e desculpas.

 

Então, quando tudo ameaçava ruir por qualquer deles ser incapaz de se conter um minuto mais, suavemente o travou como quem acalma uma criança a quem tiraram um brinquedo, lhe sussurrou ao ouvido ternas palavras cujo eco ouviu repercutido nela mesma, o conduziu como e onde quis, lhe ofereceu o peito como altar e o deixou embriagar-se de si mesma, até ao momento em que o recolheu nos braços como se tivera asas, soergueu e, entreabrindo as pernas, o tomou nas suas próprias mãos como quem cuida do desaparecido Graal, a si o guiou e em si o recebeu enquanto no céu uma estrela cadente, talvez um cometa, registou a simultaneidade daquele momento de clímax que hão-de recordar vida fora como se vivido à luz ou ao som de um sonho porque na ponte e na marginal, os roncares dos motores mais não eram que um suspiro longínquo confundido com música celestial.