Passeavam-se
abraçados, naquela bruma que a escuridão da ilha de Faro torna mais densa se à
beira-mar, num daqueles amplexos de
noviços em que a incerteza deixa o aperto por cumprir, pés marcando a areia
molhada, até que ela olhando e apontando a lua, aproveitou para lhe pegar na
mão, que não mais largou.
Ele,
volvida a inicial hesitação e a confiança que aquela mão na sua lhe conferia,
parou, esqueceu a lua e a si a puxou, num arrebatamento de quem não consegue
esconder um desejo velho e amordaçado há muito tempo.
Ângela
sonhava há anos com esse mundo real e fantástico que a cadência das brisas do
Saara trazia até ela. Matemática e sincopadamente essa frustração aparecia com
o estio e a canícula de cada ano, tão rigorosamente quanto o seu relógio
biológico desde a menarca, coisa que já nem lembrava, lhe encurtava os meses
como se de Fevereiros se tratasse sempre.
Pois
em cada ano e logo pela manhã era vê-los, e ver delirar Ângela, já que um
anormal número de motociclistas davam sinal da sua presença, sobretudo da sua
impaciência e regozijo ante os menos informados, dando de forma esfusiante
conhecimento que algo de grandioso se passava, já que de muitas proveniências
ali paravam para uma bica, ou simplesmente para desentorpecer as pernas e
abastecer depósitos, na passagem ou percurso rumo à terra prometida e cada vez
mais de todos, o mítico Allgarve.
Ângela
suspirava, dava-lhe gozo e gosto vê-los, vestidos à maneira, montando potentes
máquinas, lembrando até aos mais distraídos os cavaleiros de antanho na rota
dos peregrinos, dando provas de uma fé que ela não conhecia, de um credo que
sofregamente desejava abraçar, de uma irmandade a que há muito aspirava
pertencer.
Apesar
de homem maduro Gilberto sentiu-se tremer como adolescente imberbe, domou um
medo enorme que só o desejo há tanto calado superava, sentiu-lhe o corpo
quente, o odor inebriante, acariciou-lhe o pescoço descoberto pelo cabelo
apanhado, fruiu a maciez sedosa da sua pele, segurou-a pela nuca, procurou-lhe
os lábios carnudos que sequiosos buscavam os seus, beijou-a, língua avidamente
exigida por outra língua, sentiu nela um frémito que o encorajou e, calmamente,
dobraram os joelhos e quedaram-se na areia, as mãos buscando-se na ânsia de se
conhecerem, ela arfando ao ritmo da respiração dele cujas mãos a percorriam e
encontravam desperta, numa atitude tanto de dádiva e entrega como de premente
exigência, até que, conhecidos os segredos e afastados os medos, os dedos dele
a sentiram enquanto ela os sentiu e consentiu e a despertaram de um torpor
lânguido que quis e prolongou, para finalmente serem saboreados, chupados,
sugados por ambos, num ritual ou feitiço ancestral em que o cheiro da fêmea
sempre preparou os humanos para o amor carnal voluptuoso, numa ansiedade
desmedida próxima da violência masoquista.
Casara
jovem Ângela, e a assumpção desse papel a privara sempre desse sonho que desde
menina acalentava, e a cada ano mais lhe acentuava o saudosismo de uma promessa
por cumprir. Gilberto, vizinho, e motard, desde cedo percebeu os sonhos por
cumprir naquele rosto, onde os percepcionava mais guardados que escondidos,
mais sonhados que vividos.
E
tão bem percebeu, tão carentes os encontrou nessa vizinha amiga que lhe
sussurrou numa palavra terna, cúmplice e compreensiva, o mínimo que ela
esperava ouvir de alguém, que os seus mais sagrados sonhos devaneios e anseios
poderiam ser escutados e ter eco. Tiveram.
Ângela,
a meio de um processo de divórcio, logo ali lhe fez jurar quanto bem lhe queria
por isso, e que, a fazerem-no, o fariam como dois ladrões, ás escondidas de
todos, como num pacto de sangue que nenhuma contrariedade pudesse quebrar.
Apenas
o cansaço os refreou por breves momentos, aproveitados, qual deslumbramento,
para se olharem como quem nunca se vira, e se estranharem como terá sido
possível que, vizinhos durante tantos anos, mutua e tão profundamente se tenham
ignorado.
Então,
como quem tenta recuperar tempo e oportunidades perdidas, foi dela a vez de o
perceber e sentir como quem ás apalpadelas tacteia o caminho, lhe sentir a
pulsação, ofega de ímpeto e desejo, lhe conhecer intimidades, agora dela, o
provocar e aquecer com o hálito quente, titilar c’a ponta da língua, sorver com
avidez, medindo e sustendo a compreensível agitação dele, parando e recomeçando
de modo a não parar de vez, delirando ambos, sequiosos ambos do que não tinha
fim e temiam perder, sofregamente enredados, ternamente entregues, esquecidos e
conquistados.
A
lua movia-se no céu, transladando o tempo pelo qual não deram, capazes mesmo de
jurar ter ele parado ali, para eles, para que se dessedentassem de anos de
carências, frustrações, desejos reprimidos ou insatisfeitos, de alheamentos
feitos e sofridos, fingimentos, fugas, mentiras e desculpas.
Então,
quando tudo ameaçava ruir por qualquer deles ser incapaz de se conter um minuto
mais, suavemente o travou como quem acalma uma criança a quem tiraram um
brinquedo, lhe sussurrou ao ouvido ternas palavras cujo eco ouviu repercutido
nela mesma, o conduziu como e onde quis, lhe ofereceu o peito como altar e o
deixou embriagar-se de si mesma, até ao momento em que o recolheu nos braços
como se tivera asas, soergueu e, entreabrindo as pernas, o tomou nas suas
próprias mãos como quem cuida do desaparecido Graal, a si o guiou e em si o
recebeu enquanto no céu uma estrela cadente, talvez um cometa, registou a
simultaneidade daquele momento de clímax que hão-de recordar vida fora como se
vivido à luz ou ao som de um sonho porque na ponte e na marginal, os roncares
dos motores mais não eram que um suspiro longínquo confundido com música
celestial.