Correndo
se some o ano na contemplação efemérica da pegada do homem na lua. Violado
teria sido muitas mais vezes aquele astro mas, como às virgens, só a primeira
vez conta, tem valor, vale a pena e se grava na memória. Hodiernamente,
a pegada ecológica é que está na berra, na berlinda, a dar, contudo aquela
pegada na cinza lunar deixou, em mim, imagens e impressões dificílimas de
dissipar.
Pouco
mais eu seria na altura que um puto tímido, ao certo apenas recordo ser amante
inveterado de batatas-fritas, cujos pacotes, de papel pardo, adquiria nas
tabernas junto à morgue do então hospital da Misericórdia, pacotes e qualidade até
hoje sem igual. Aquelas
sim, eram caseiras, saborosas que nem guloseima, fininhas, salgadinhas e um primor,
tudo por uns meros cinquenta centavos, cinco tostões que gaiato algum deixaria de arranjar. Melhores
que essas batatas-fritas, só mesmo as favas-fritas da taberna do Chico
Fofa, ali à rua de Machede.
Nessa
tarde entrara eu atraído pelas favas e por inusual multidão que àquela hora
enchia o antro, quedada muda frente à televisão a preto e branco. Custosamente
me esgueirei para o balcão gorduroso, mais alto que eu, todavia mestre Chico
Fofa desta vez nem foi solícito a debruçar-se sobre o mesmo para inquirir das
minhas razões, olho que tinha também ele pregado ao televisor. Mas
para o negócio guardava ele o outro olho, e sabendo que dinheiro de criança é
pouco mas mais louco quem o não aproveita, lá me lançou um olhar guloso à moeda
reluzente entre os dedos da mesma mão em que, sem tirar o olho outro do
televisor, depositou o habitual cone de papel pardo recheado de favas-fritas
estaladiças.
Olhando
ao alto no regresso à rua só vi rostos estupefactos; que era tudo mentira
diziam uns, que era o maior feito do homem contra-argumentavam segundos, é tudo
encenado, atirava juntamente com o queixo mestre Chico Fofa, senhor de toda a
autoridade que o facto de ser dono de uma das poucas tabernas com televisão somado à real e insofismável verdade que ser dos telespectadores mais antigos lhe dava. Verdadeiramente
ciente da solenidade do momento só mesmo o senhor Óscar, que me ergueu ao alto
e ao colo, e num sussurro que ainda hoje desconheço a quem dirigido; fixa isto
miúdo, fixa o momento da chegada à “nova fronteira” pois vai marcar doravante
toda a tua vida. Não
o entendi claro, nem isso nem o motivo por que quase me atirou ao chão afim de
ir correndo atender uma fogosa freguesa reclamando dois quartilhos de
feijão-frade.
Para
quem não saiba o senhor Óscar, um jovem de iniciativa, detinha na rua e talvez
na cidade a mais bem apetrechada mercearia. Talhas
para o açúcar, para as leguminosas em semente, para a farinha e o farelo, a
alfarroba, cevada, aveia, uma moderna bomba manual para o azeite, um facalhão
guilhotina para o bacalhau, e, surpresa das surpresas, um jogo de quartos e
quartilhos em plástico multicor como na terra alguém jamais vira. Era
enchê-los, passar o rolo da lei sobre os mesmos e estava justamente aviado o
freguês. Voltou,
voltou para pegar-me, eu babado de ranho e de nódoas das favas-fritas, ele a
sussurrar-me não ter havido fronteira mais difícil de conquistar do que aquela.
Gravei !
Gravei
e durante anos rememorei as suas palavras. Anos mais tarde aprenderia o que era
a fronteira, os caramelos de Badajoz e os passeios a essas coisas associados. Levaria
anos até que a expressão “desafio de Kennedy à exploração da última fronteira”
acordassem em mim as sábias palavras do senhor Óscar, comerciante empreendedor
e inovador como seria hoje apelidado. Solícito
era, e também um paz de alma, um colosso de beatitude ateia sem igual e forte
como um touro ou assim parecendo aos meus olhos de menino. Depois…
bem… depois conheci muita gente, muitas fronteiras, a de Berlim, a de ferro,
outros povos, muitos povos, muitas pessoas, conheci Eça, conheci Camilo,
Almeida Garrett, tantos outros, e tudo tão relativo, tão dúbio, tão movediço
que olhava em meu redor e nem uma linha, uma fronteira, um objectivo, um
desígnio, uma bóia…
Sinto
saudades de quando criança, dos braços fortes do senhor Óscar, das certezas do
senhor Óscar, das profecias do senhor Óscar, das favas-fritas do Chico Fofa,
das tabernas junto à morgue, das batatas a cinco tostões, do mundo firme no seu
eixo, da certeza de ao leme um homem sábio, do bibe da escola em minúsculos
quadradinhos azuis e brancos, do Chafariz D’El-Rei, do professor Pulga, do
Ford Cortina cujo verde limão me deslumbrava, do conta quilómetros que marcava mais de cem e me fazia idealizar as fronteiras que atingiria,. Vou pedir à minha avó
Inácia dez tostões, comprar um pacote de batatas e outro de favas-fritas e
espreitar o braço forte do Senhor Óscar fazendo descer a guilhotina do bacalhau
que gemerá ao ser cortado, eu sei, eu vi, tantas vezes vi que já nem me lembro nem sei o que foi feito do Luther King.
…