Pintura; MONSARAZ, de Ana Rita Janeiro, ou "Carlota".
Quem atravessa as ancestrais
terras d’el-rei em direcção ao grande lago, não raramente, depara-se com uma
paisagem inolvidável.
Uma dúzia de quilómetros à
nossa frente, pairando sobre um manto de nuvens ou nelas acoitada, a visão
encantadora de Monsaraz, a vila medieval onde nasci.
Humberto me chamaram, porque
nos idos de trinta, um aventureiro dos biplanos, ou triplanos, por arbítrio do
mágico nevoeiro, trágico fim encontrou ao despenhar-se de encontro à torre de
menagem do castelo, cousa que fatalmente muito consternou a populaça,
antepassados meus incluídos, tanto que no baptizado do meu padrinho lhe mudaram
o nome de Benvindo para Humberto, numa solene e compungida homenagem ao louco
da máquina voadora, acabado de perecer no exacto momento em que o tão desejado
Benvindo ao mundo vinha.
Humberto ele, Humberto eu anos
mais tarde e por sua inteira vontade, tradição que mantive ao dar, por minha
vez, o mesmo nome ao meu primeiro e único filho. Luís Humberto.
Mau grado estes recuerdos, a vila fica na raia Espanhola com o Guadiana de permeio (embora agora
naveguemos nas mesmissímas águas turvas europeias), recuerdos que tento não
olvidar apesar de tristes, pois retenho dessa vila e da minha criancice gratas
imagens e muitas vezes me revejo largado à solta num castelo a que mais
parecia somente poder aceder-se trepando um feijoeiro gigante, tal e qual como
nos contos de fadas.
Não há contudo estória sem o
seu senão… e o meu é a saudosa lembrança de minha irmã Frida, que vagamente
recordo pois cedo foi roubada ao meu convívio, mas que contudo viria a ter na
minha vida uma influência crucial, e superior à que quaisquer outros entes vivos sobre mim tivessem tido.
Não choro quando a recordo,
para ser franco até muito mal a recordo, dada a tenra idade com que foi
arrancada ao meu convívio, apesar dos emplastros de papas de linhaça com que
porfiaram acudir-lhe. Sem qualquer resultado já se terão apercebido.
Nessa época a tuberculose ceifava
às cegas, e os ditos emplastros a tudo acudiam, aplicados bem quentes e
rigorosamente substituídos mal arrefecessem.
Junto ao coração para males de
amor, na testa para febres funestas, no peito para gripadas e outros males
sezões, na cabeça se contra o mau olhado a inveja ou os esconjuros, caso em
que se devia acompanhar a mezinha de um relicário colocado sob o colchão da
paciente, ou de um escapulário pendurado em permanência do pescoço da protegida
durante toda a cura, e, no caso, contendo rabos vivos de lagartixa verde, unhas
de osgas e asas de morcegos, tarefa de que minha avó Inácia me incumbia a mim
sempre que necessária, alegando que a ela, tocar em aves e bichos lhe dava
voltas ao estômago e até galos lhe haviam já cantado nos intestinos.
Nunca chorei, como vos disse,
a morte de minha irmã Frida, todavia bastas vezes as lágrimas me acudiram aos
olhos se calha contemplar-me, eu, a mim, que sou obra dela e a ela devo tanto e
muito do que sou, quem sou e como sou.
Já na grande cidade para onde ainda
na infância me mudaram, achei, quando rebuscava não lembro o motivo as gavetas
de meu pai, um livro cuja ilustração de capa aqui vos deixo, livro que
despertou a minha curiosidade infantil pelas cores exóticas e apelativas que
encerrava e em simultâneo mostrava, mas sobretudo pelo nome nele inscrito, “
Frida “.
Foi assim, quase como um livro
proibido que uns anos mais tarde o li. Essa foi somente a primeira biografia da
minha vida, acredito ter lido quase cem antes dos vinte seis e perto de duzentas
até ao presente.
Deste modo insólito soube da
morte de Frida, a tal que dera o nome à minha saudosa e tristemente falecida
irmãzinha.
Mais tarde, juntei dois mais
dois e de meu pai entendi a admiração pela pintora que, como ele, viveu
engajada numa doutrina que então guiava o mundo mas que anos antes de meu
paizinho falecer lhe deixaria a tristeza estampada no rosto, tristeza que hoje
culpo por mais cedo me ter roubado a sua companhia.
Fiz-me homem lendo, mor das
vezes verões inteiros, debaixo de um fresco e frondoso chorão no jardim público
da minha cidade, rés do lago onde plácidos cisnes ainda navegam, biografias e
outras obras que a Biblioteca Pública para ali acarretava nas tardes de estio.
Comecei assim, guiado por
minha irmã Frida leituras que me levaram, qual príncipe, de menino a homem,
sendo hoje rei de mim mesmo e do mundo que me cerca porque acredito piamente
que a alma da minha irmãzinha me conduz e protege os passos os caminhos e os
destinos, pois no amor há muito que de mim cuidam com o mesmo desvelo por mim
aprendido e, de tão amado, sinto insuflar-se-me o coração, e por sua vez ele um
castelo, de muitas janelas e mais entradas ainda que o de um príncipe
encantado.
A ti irmãzinha do coração e
que sempre por mim velaste, o meu eterno amor e emocionado apreço, o meu
reconhecido agradecimento.
A ti confesso quanto lamento
quem, como eu, não teve alguma vez nem que por um instante só, uma irmãzinha
como tu.
Descansa em paz meu amor.