domingo, 31 de agosto de 2014

201 - FIZ UM RABISCO NO CÉU * por Luísa Baião




Fiz um rabisco no céu, com um giz que alguém me deu e para mais nada me serve. O céu que olho em noites claras, se estrelado, é um véu ápiro, aparentemente inerve, que recolheu dores, sonhos, promessas, com que se infesta e nos devolve a força p’ra desfiar cada fado aqui vivido, cada dia aqui passado.

Dizem haver horas de sorte, gritam com grande alarido, mas há fados bem sofridos, há viveres descoloridos, e a quem tal não importe.

Que é tempo de comunhão, grita, da nau o capitão, alheio ao individualismo que se afirma num cinismo, desdenhoso e simplório, que por gozo aqui gloso, por estar crente e também certa, a um só sitio nos levar, ao desvio para um abismo, como castigo exemplar, que antevejo por desperta.

No céu as estrelas sorriem, escondem como ninguém as falácias que nos vendem enquanto com desdém riem, não dos que assim nos mantêm, antes de nós que aliciadas, acreditamos, porque queremos, nalgumas almas danadas, de bem falantes blasfemos, cuja prosápia bebemos como coisa bem achada.

Pobres de nós sonhadoras, ingénuas aparvalhadas, condenadas à penhora pois não intuímos manobras em que somos embrulhadas. Fados, destinos, estrelas, só se achando capicua c’os desvios à morte certa em vidas predestinadas. Nos livrem de tal sorte, tais jogadas, ou maleitas, antes a morte.

Quem tem pedras no sapato e ideias vende ao desbarato, alguém há-de codilhar, que é o mesmo que dizer que de mesa sem vintém hão-de retirar um prato. Pobres, sempre houve e haverá. Havia muitos diziam, o que agora não apraz, ouvir dos que já comiam. O que eu gostaria mesmo, era que pr’algum achar, tivesse que andar de dia, buscando-o com candeia, ao invés de pulularem, como em praia os grãos de areia.

Marés embalam o mundo, vai p’ra cima, vai p’ra baixo, e, nós, num sono insensível, frio e profundo infortúnio, esquivamos os toques de esgrima c’o semblante cabisbaixo pensando em manter o brio.

São sonhos Senhor, são sonhos, que nem nos deixam sonhar, e, se viver há-de ser isto, da morte lenta os limiares, que sejam então esses os quistos, mas não nos chamais muares.

Malmequeres, papoilas, rosas, lírios, cravos, tudo serviu na parada em que orgulhosas marchámos de estandarte desfraldado. E agora, despeitadas, vimos passando à nossa frente, vidas mal ou nem começadas, vidas em tudo mutiladas, vidas nunca acabadas, ou vidas despedaçadas.

E é este o nosso fado, bem sofrido, bem cantado, mal vivido e mal sonhado, mas única consolação de quem viveu, sofreu e calou, este verdadeiro pesadelo em que a vida se tornou.

Não devia assim ter sido, podia assim não ter sido, não tinha que assim ter sido. Mas, como as linhas da mão, que são lidas com desvelo e nunca a verdade contam, assim fomos encantadas, em lindas falas embaladas e cá estamos para o provar. Vivemos.

Mas viveremos decerto ? Não creio que me digam agora haver vida no deserto. Surpreender-me-ia tal, e podem crer ser verdade que se em pouca cousa acerto, nenhumas já me surpreendem por vivê-las tão de perto.

E por isso vos garanto, que sem dano, surpresa ou pranto, peguei nesse mesmo giz passando um traço por cima de quem sem encanto me encanta. E podem crer, acreditem, bastou um traço decidido para acabar com aquilo que muito boa e adulta gente há muito teria já ou devia ter percebido

* Já publicado por Maria Luisa Baião no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher 12-2006.     




sábado, 2 de agosto de 2014

200 - UM CONTRA O OUTRO ..............


Não aguentaria mais. Nem mais nem mais tempo. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Isto tinha que se dar. Agora que já está acho ter demorado tempo demais. Devia ter-lhe posto fim mais cedo. Demorado e durado. Lá haverá quem pense que acabou antes de tempo, por mim durou até demasiado.

Se bem o pensamos melhor o fazemos, isto devia ser atar e pendurar como na mercearia. Depois de pensada a coisa nada se ganha em protelar. Pagar e morrer é que quanto mais tarde melhor. Na verdade agora até sinto um alívio. Os últimos dias acabaram comigo. Devia ter-me decidido mais cedo. Nem sei que imaginava eu que tanto temia a decisão. Afinal foi fácil, nem zaragatas, afinal foi uma surpresa, a bem dizer nada do que previra aconteceu.

Mas é isso que é estranho. Algo devia ter acontecido. Mas ao certo que devia ter sucedido que não sucedeu ?

Esta falta de reacção é inusitada, não a esperava de todo, estive a preparar-me para tudo menos para esta indiferença muda. Desolação, foi o que ficou depois da decisão anunciada. Mas para mim antes esta desolação consumada que a apreensão em que passava os dias.

As crianças já foram. Já foram crianças, o Antonino já tem a vida dele traçada, e a Ermelinda meteu o pé na portada e empurra agora, e, se bem a conheço não vai tirá-lo. O caminho é em frente, que atrás vem gente e nisso a Salsichinha sai à avó que quando se lhe metia uma coisa na cabeça não descansava. À avó ou à mãe. A alguém têm que sair os miúdos né ? Se não for ao pai só pode ser à mãe. Olhem esta agora.

Descobri a pólvora para aqui a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se. Podia ser pior. Afinal vivo uma acalmia que há meses não sentia. Há males que vêem por bem. As coisas vão até mais calmas do que estava à espera. Já nada há que me cause alarido. O pior vem agora mas acho que me dominei, me acalmei, e tudo isto me deu preparação foi isso que aconteceu.

Este assunto andava a matar-me o pensamento, agora já posso sair do esconderijo, não sinto raivas mas algum medo, preciso organizar-me, vou estar uns tempos sem aparecer, espero que compreendam, tempos difíceis se avizinham. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Foi isso que aconteceu.

Tenho de parar com isto, falar só p’ra mim, falar para as paredes, logo eu que até tenho perfeita consciência de me perder por falar demais, mas preciso ocupar-me, não posso pensar que agora estou só, eu e eu comigo, esta fase solitária há-de passar, é tudo estranho agora, anda tudo estranho, ou serei eu que verei tudo diferente, finalmente as coisas esclareceram-se, foram demasiado longe, muito mais do que imaginava, do que queria, terem ido longe demais desta vez até foi positivo, e não era o que eu queria ?

Foram mais longe e ficaram mais sérias, a vida é uma merda, é uma merda mas é assim mesmo, e esta vida de merda nem traz manual de instruções, tenho é que desanuviar, meter baixa, ou meter férias, ir à praia, estou a ficar branquelas e detesto.

Não, não foi um capricho do momento, andámos foi demasiado tempo engonhando, fazendo de conta que nada se passava, mas passava, agora já passou, a vida não pára, em frente que atrás vem gente, até me sinto mais leve, até sinto um alivio que há meses não sentia, ainda me custa acreditar que já estou noutra, vou mas é meter férias atirar duas ou três coisas para o carro e partir à desfilada.

Allgarve here i go !!!

Não aguentava mais, não aguentaria mais, nem muito mais nem muito mais tempo. Isto tinha que se dar. O que durou a mais foi o que se perdeu. Afinal foi fácil, afinal nem zaragatas, afinal nem surpresas, no final só uma indiferença muda. Olhem-me esta agora, por esta é que não esperava de todo. Podia ser pior, podia ter sido pior mas cá estou eu a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se, preciso ocupar-me, esta fase solitária há-de passar-me sem que me perca por falar demais, ninguém está ouvindo pois não ? Ninguém ouviu nada então não ?

Quando voltar de férias logo se verá, os miúdos, os carros, logo se verá quem fica com o quê ou quais, os discos e os livros não deixam duvidas e até lá não me doa a cabeça.

Preciso aliviar, distrair-me, sentir de novo a vida, as emoções fervilhando em mim, os sentimentos palpitando como pipocas, o sangue correndo nas veias e a pele arrepiando-se de novo. Vivo a ternura dos quarenta e inda valho, ainda presto, ainda preciso, ainda sou capaz. Preciso é esquecer a sensaboria do passado, o sentimento de inutilidade, esta sensação de ser invisível, de quase nem existir, vão ter que me aturar de novo, terão que olhar-me de novo, ver-me, reparar em mim, aguentar-me que renasci e estou aqui de novo para as curvas, para a vida !!

Cuidem-se !

Allgarve here i go !!!
Lisbon here i go !!!
Porto here i go !!!
Faro here i go !!!

https://www.youtube.com/watch?v=XbwtOekK3qY

terça-feira, 29 de julho de 2014

199 - UM JIPE EM PRIMEIRA MÃO...


Não, ali na Lagril que nem para lavar automóveis precisavam de gente. Recostou-se à beira da montra e ficou olhando o jipe nas bombas, tão igual ao que tivera que entregar meses atrás.

O motor ronronava enquanto a dona, numa fila para pagar aguardava vez. Viu as chaves na ignição e repentinamente sobressaltou-se, antes mesmo de saber porquê.

Havia muita luz, mas fora isso tudo se mostrava sossegado e sem balbúrdia. Percebeu porque se sobressaltara e estremeceu de novo. Olhou em volta, não viu câmaras de vídeo e avançou devagar, fez-se até mais alto que era, engrossou o peito e avançou a mão para a porta como se a viatura fosse sua, sentou-se ao volante, ajustou o banco, rodou a chave, engrenou a primeira e saiu dali devagar sem acender sequer os mínimos. Olhou o espelho pela enésima vez e não viu alarde ou surpresa, tendo sido quando ligou as luzes e enfiado na via principal que o suor o alagou e um tremor e excitação o tomaram.

Acelerou, mas logo lembrou os cuidados a ter para não dar nas vistas, tornou à faixa da direita e seguiu em frente, simplesmente em frente, sem saber onde ir.
Poucos quilómetros adiante uma zona sem luz de movimentada área de serviço convidou a paragem, olhou o nível do combustível, estava quase cheio, por ali não tinha que preocupar-se, mas impunha-se cogitar depressa no agir, onde ir, para quê, para onde, respostas que de momento não tinha.

E repentinamente um salto !!

Na consola uma luz acendia-se ao mesmo tempo que a campainha de um telemóvel tinia estridente e desenfreada esmagando-o com o sobressalto acutilante que a realidade impunha.

Nem meia hora passara ainda sobre a sua precipitada atitude, no entanto juraria que vivera mais nesses minutos ou nessa hora que em toda a sua vida. Respirou profundamente e devagar, e expirou assobiando como que para se compenetrar de si mesmo, como que para descer à terra.

- Recapitulemos, pensou.

Puxou o travão de mão e mirou tudo em redor, a temperatura do óleo, o nível do combustível (outra vez) a quilometragem total, e mentalmente fez as contas à que percorrera, premiu o botão respectivo nos manómetros e meteu reset.

- Pudera eu fazer o mesmo à minha vida, pensou. Começar tudo do princípio.

Recordou o momento crucial da sua existência em que deitara tudo a perder. A empresa desmembrada e uma opção tomada havia muito mais de vinte anos que agora se reflectia na sua carreira, no seu modo de vida e no seu comportamento. Na sua atitude.

A vaidade perdera-o, atrevera-se mesmo a gozar com os colegas que na altura, e ao invés dele, aceitaram a inclusão na função pública, enquanto ele preferira a liberdade e o proveito de uma carreira privada.

Hoje estava arrependido e bem arrependido, a crise e falências em catadupa tinham atirado com ele para o desemprego, a ele e a muitos mais a quem a vergonha impedia de encarar o mundo, o mundo e os antigos colegas, agora no auge de uma carreira no funcionalismo público, sem sobressaltos, segura, livre do espectro do desemprego que o consumia.

- Recapitulemos, o que está feito está feito, vamos pensar com calma, vamos ver e depois se verá o que fazer em seguida.

Ouvira que em segunda mão um jipe daqueles podia valer quarenta mil euros ou mais. Não reparara na matrícula mas pelo formato dos farolins não teria sequer três anos. Sem estar recheado tinha contudo os extras essenciais, mais um ponto a favor, e ele precisava urgentemente de dinheiro.

A luz do telemóvel mal se apagara para logo se acender de novo, a maldita campainha esfrangalhando-lhe os nervos. Não iria atender, seria alguém em busca da dona, ou ela mesma tentando contactá-lo.

- Desligo ? Não desligo ? atendo não atendo ?

- Porra que me podem localizar pelo telemóvel !

Era um Galaxy, valeria usado no mínimo cem a cento e cinquenta euros, mas não hesitou. Desligou-o sem atender atirando-o para cima de uma camioneta carregada de sacas de cimento que começara a pôr-se em movimento. Expirou fundo e procurou acalmar-se, olhou os bancos incluindo os de trás e a chapeleira, abriu o porta-luvas e caíram no tapete uma data de objectos.

Soltou o cinto debruçando-se para os apanhar. Uma caixa com óculos de sol que pareciam caros. Uma escova de cabelo cheia deles, loiros, um sutiã vermelho Triumph Beauty-Full Charm tamanho 38, levou-o ao nariz, estava usado, num estojo de unhas frascos de verniz e acetona, uma caixa de pastilhas Mercilon quase cheia, uma que parecia de rebuçados Yasmin vazia, e, ao puxar uma embalagem blister fechando uma calcinha de cor púrpura, decerto tipo tanga a julgar pelo design na embalagem, veio arrastada uma calcinha preta rendilhada e amarrotada.

- Tê-la-á a dona abandonado e abalado sem calcinha ?

O GPS foi tocado sem querer e ligou-se, assinalava o percurso percorrido indicando 37 quilómetros, através dele conheceu todo o percurso que a loira fizera até à estação de serviço em que a vira.

- Ah ! Então era chique a loira !!

- Mora num bairro chique. Já lá estive, tenho um ou dois amigos lá.

Pelo tacto analisou a bolsa da porta do condutor, uma velha carteira escondia fotos encarquilhadas pelo calor ou pelo tempo, mirou e remirou uma a uma com cuidado. Confirmava-se a impressão dada pela escova, era loira a dona.

- Olhos verdes ou castanhos ?

Não dava para perceber.

-  Teriam as loiras sempre os olhos verdes ? Certamente que não.

Na neve, na praia, junto ao jipe com um farol ao fundo, num jantar de amigos.
- Algum daqueles seria o marido ? Seria casada a loira ?

Belos pés, gosto do vermelho das unhas, agora posando num aquaparque, devia ser alta, forte e alta, é boa, ta madura pensou. Comia-se, pensou para si mesmo enquanto à memória lhe acudia a fábula da raposa e das uvas, bom peito, e fechou a velha carteira guardando-a no bolso interior do blusão.

- Mulheres agora não. Nem pensava em mulheres desde que…

- E agora que fazer ?

O jipe daria bom dinheiro, dinheiro de que tanto precisava, mas como ?

- Como fazer ? Onde ir ? Dirigir-se a quem ? Onde ?

Trabalhou mentalmente durante algum tempo todas as variáveis possíveis e imaginárias. Não encontrou solução. Não sentiu fome, antes o espectro da desolação aproximando-se.

Em peças valeria menos, mas como fazer ? Desmontá-lo ? E vender as peças a quem ? Onde ? Um beco afunilava-se-lhe na frente. Não conhecia quem quer que fosse ou pudesse dar cumprimento ao ímpeto que o tomara. Não era assim nos filmes, e tinha visto bastantes.

Encontrara cigarros no porta-luvas entre os bancos, acendeu um, uma repentina tontura e apagou-o enraivecido. Doía-lhe a cabeça, estava ali há horas, decerto a matricula do jipe já seria procurada, por enquanto não tinha soluções mas também não tinha problemas, ou melhor pensando tinha somente o do emprego, e já não eram poucos os que daí lhe advinham, avançar para a cidade era arriscar, arranjar mais.

Pela primeira vez em muitos anos invejou os colegas da função pública, bom horário, boas folgas dias de nojo feriados e licenças, nem aguentavam metade do que passara para cumprir objectivos, metas, cotas de mercado, sofrendo a pressão de chefes e patrões, enquanto eles tinham o fim do mês certo chovesse ou fizesse sol, com crise ou sem ela ao fim do mês o pecúlio estava certo, nem precisavam fazer nada, a maior parte deles nem faziam que bem via quando tinha que se dirigir a qualquer serviço ou repartição, nem precisavam chatear-se, e rememorava tudo quanto tinha sofrido e aguentado até ao dia em que o despediram.

Pensou na esposa e voltou a invejar a vida pacata e apagada dos funcionários públicos, até falta de ambição lhes invejou.

Desnorteado e sem saber onde ou a quem rumar rodou a chave na ignição, engrenou a primeira e saiu dali devagar sem esquecer ligar os mínimos, meteu-se a caminho era noite alta já.

Devagarinho acercou-se da estação de serviço onde a aventura começara, olhando e observando com atenção passou frente à montra onde um funcionário o olhou desinteressado, estacionou o jipe, apagou as luzes devagar, deixou as chaves na ignição saiu sem bater a porta e rumou a casa…




segunda-feira, 21 de julho de 2014

198 - ALEX, PARA OS AMIGOS…….................….....

  

À data eu vivia perto, e durante alguns anos acompanhei-lhe o luto, mas quando começou a usar em permanência o véu preto sobre o rosto, que escondia debaixo de um elegante chapéu redondo de abas largas enquanto subia a altura das saias convenci-me que se lhe finara o desgosto. Alex, Alexandra, ou Alexandrina, voltara ao nosso convivio. 

Não era crível o que todos jurariam em surdina, que D. Natália tudo fizera desde o início para boicotar as relações com a nora e respectiva família desde a morte, dois meses após o casamento, do seu querido menino.

Prova disso era o facto de Alexandra, Alex para os amigos, ter permanecido em sua casa até hoje, tantos anos depois daquele triste dia em que Julinho, agarrado desde que em jovem se formara com louvor e distinção, fora encontrado, a metros de sua mãe e da jovem esposa, fulminado por uma overdose. Alex entrara quase de imediato em depressão, e D. Natália acudiu-lhe durante anos e anos apesar da nora nem um neto ter tido tempo de lhe dar.

Não era linda nem elegante, seria muito mais que isso, e se durante meia dúzia de anos escorraçara todos os pretendentes à partilha das suas mágoas, depois passou a provocar, consciente e deliberadamente, todos aqueles em quem se dignava pousar a vista ou conceder atenção.

Do quintal, regando o jardim, ou da janela de sacada onde queimava os paivantes eu observava o rol de mártires que em permanência arrastava atrás de si e, que ao longo de meses palmilhando a rua ou nela fazendo sentinela, adquiriam a convicção de que a inutilidade do gesto aconselhava o afastamento, para logo serem substituídos por um qualquer outro incauto apaixonado.

Acho que depois dos primeiros meses ou anos de baixa psiquiátrica, ou psicológica, Alex se habituou àquele modo de vida. Não receberia muito, mas a cama e mesa garantidas por D. Natália certamente terá aproveitado.

Enquanto contribuintes eu e os vizinhos aguentámos e comentámos aquilo, talvez porque a crise forçasse esse tipo de conversa, talvez por também rendidos à sua beleza e encanto, até o Dr. Paulo, nosso parceiro da sueca e médico dela sofrera o seu Gólgota a que somente a inclemência do inverno afastara das sentinelas que prolongava até tarde nas noites.

Por essa época eu não sonhava ainda com o sindicalismo, nem com o estudo dos iluministas nem do filósofos medievais ou da sabedoria escolástica, o que só aconteceria numa fase muito posterior, mas os abusos aos direitos por parte dessa nossa vizinha incomodavam-nos. Para ela não havia deveres, aliás nunca houve, já os direitos pareciam ser nado e exclusivo direito seu. Esse dilema, que eu nunca superei, estivera aliás na razão pela qual a sua pulcritude e vida inconstante cativaram a minha atenção, era um admirador confesso da sua beleza afrodisíaca e lubricíssima presença, o que calava em mim os protestos ante a sua conduta desregrada e que em nada a abonava.

Haviam passado muito mais de vinte anos sem a ver, o que não obstou que a tivesse reconhecido à primeira, mesmo se apenas a silhueta, o porte e andar garbosos me tivessem sido por breve momento uma saudosa aparição.

- Deve ser ela ! É ela ! Tem de ser ela !

E era. Era ela, agora certamente nos quarenta, fruindo de uma sensualidade, maturidade e segurança insofismáveis a que ainda menos gente ficaria indiferente. E nem tivera tempo de pestanejar ou levantar os olhos de tão fantástica visão quando a consciência, mais que a memória, atrever-me-ia a dizer o subconsciente, trouxe à tona e rebobinou como se arrancadas de areias movediças lembranças, recordações, tais quais colótipos da Picasa, perdoem-me a comparação.

Era ela e nada nela mudara, o mesmo gosto pelos saltos altos, altíssimos, e que lhe firmava o porte projectando-lhe o peito para a frente, o mesmo andar em frente olhando e varrendo tudo num ângulo de 180º à esquerda e à direita, as costas como quem engolira a espada Durendal, sim, a de Rolando, a tal que pertencera a Heitor de Tróia, as nádegas opulentas movendo-se alternadamente com o andar numa bem ensaiada provocação, o pescoço firme e direito fazendo-o parecer mais comprido, ou alto.

Há mulheres que não querem ser vistas, ou que não desejam dar nas vistas, mas também há as que sim, que o querem e desejam, há até as que procuram das nas vistas, e as que sem que o saibam o conseguem, as que por mais que o tentem ou porfiem não matam caça… Alex inscrevia-se num dos grupos assinalados, dispenso-me de especificar qual.

Mas não há dúvida, era ela, é ela, porque terá voltado a pisar a rua ? Ter-se-á quebrado e enguiço ? Sacudido a maldição que sobre si mesma lançara ?

Aquela aparição majestosa não foi inocente, adivinhei nela a vaidade que a vestia, o antigo cuidado no corte, o fru fru das sedas que me fez lembrar as rendas sublimes e transparentes numa malha aberta, fina, delicada, e que mais pareciam filigrana, coisa em que era viciada e, porque uma lembrança nunca vem só, os lençóis de seda, eu numa atrapalhação vergonhosa e delirante escorregando sem conseguir onde firmar-me e ela, de gatas, miando, olhando-me e gozando-me provocadoramente …

Jamais esquecerei, jamais lhe perdoarei.




                                     

sexta-feira, 18 de julho de 2014

197 - MEU AMIGO RETRATISTA...............................

  

Agachado sobre os joelhos dobrados, olhava-lhe sobretudo o esfolado, e a mão, minuciosa, tocando virando revirando e remexendo com um pauzinho, um escaravelho esperneando de patas para o ar

Quanto mais apurado ele na averiguação obsessiva, criteriosa, maior a minha curiosidade sobre si, todo ele focado no bicho, olhos mais focados que concentrados, convexos, e que, como os do próprio pai, me assustavam

Dizer que brincámos juntos seria extrapolar uma relação que não existiu, morámos a pouca distância, ele num casebre entalado entre a Comenda e o Xarrama, eu num cubículo colado ao prédio azul e, mais correcto seria dizer que me consentiu por perto, e isso teve que bastar-me, pois era o máximo de aproximação por ele consentida e o modo de, cada um de nós ser um mundo sem ficar só

Não brincávamos, ele brincava, sozinho, absorto, dava largas à sua curiosidade militante, e eu divertia-me vendo-o, observando a sua curiosidade, que por sua vez espicaçava estimulava e satisfazia a minha

Virava bichos, bocados de espelhos, vidrinhos, focos, desfocos, imagens, certamente arquitectando fotogramas experimentais que a memória me guardou, e nesses curtos anos de vida desvendámos no terreiro ao lado da sua casa, frente ao Marcelino do ouro negro, da benzina, do benzovaque, do etanol ou álcool azul ou etílico para o arranque dos fogões, e já um etanol e não um derivado do pitrol, pois devo ser explícito porque aprendi com ele a remexer tudo com um pauzinho e observar bem as coias antes de me pronunciar

Foi aí, nesse baldio que, observando-o, me iniciei no preciosismo das coisas, na observação da fauna e da flora, até que o pai o chamava, jornal na mão, bonecos coloridos na capa como os dos cromos dos grandes, os tais que não me aceitavam nas suas brincas, e esse pai que o chamava quebrando a intimidade dos momentos em que sobre si se fechava assustava-me, era um pai de olhos convexos como lentes de grande angular, dois olhos entre patilhas, lembrando os toureiros das noites de quinta feira que eu à sorrelfa via na Tv, em pé, espreitando sobre os ombros dos crescidos, nos cafés do velho Gerardo ou do senhor Raul

Eu morava no prédio azul, quer dizer, não bem no prédio azul mas nas traseiras, onde moravam o Quito, os Tanitas, o Ângelo morava na frente, e o irmão, o Simões, ele ao fundo do bairro, na rua que levava ao riacho

Tão introvertido lembro este meu amigo que nem a carroça do bufarinheiro dos petróleos lograva arrancá-lo da introversão e clausura a que voluntariamente se remetia, bastas vezes o vi vogando no tempo e, recordo um dia em que, na rua subindo do gaveto da casa onde vivia, nem um molhe do fotografias a branco e preto o arrancou da perscrutadora minúcia com que se debruçou sobre o caixote com que o senhor Zé Alves, o bolacha amaricana, fazia bonecos à la minute encalhado na porta do jardim público, ou numa praia quaisquer a que o chamamento do Verão o conduzisse no sentido de prover à família, prole numerosa que as bolas de berlim, a bolacha amaricana, os gelados vendidos à colher de uma caixa meio frigorifica meio enjorcada carregada ao ombro, de mistura com magia, espectáculos, truques com cartas, velhas e novas antiguidades, fotografias de mulheres nuas aos molhes, molhes de fotos e molhes de mulheres

 E esses molhes de que eu não entendia a magia juntaram em seu redor, tumultuosamente e em minutos, tantos homens em sincronia e anuência quanto contestação ou divergência que eu não alcançava, eu não entendia ainda e, enquanto tentava perceber, ele ausente, absorto, persistindo na sua perscrutadora minúcia debruçado sobre o caixote com que o senhor Zé Alves, o bolacha amaricana, fazia bonecos às portas do jardim público

Hoje sei o que nessas fotos de nus de forma tão fulminante agregou tantos homens claro, mas não o sabia por aqueles dias, e se o meu mudo e calado amigo se fechou em torno da maquina dos retratos do senhor Zé Alves eu aderi ou melhor, assisti, tão calado quanto ele, à desordenada assembleia que num repente aquele molhe de fotos a preto e branco suscitou no grupo heterogéneo que mais depressa se formou que um escaravelho demorava a rebolar espernear e dar a volta até ficar de novo de patas no chão

Depois, num ano que não recordo, deixei de ver o meu retraído amigo, após as férias e os desenhos animados do Flipper, que sentados de pernas cruzadas a garotada via no chão da sala do Junça, da Lúcia ou do Sezídio, deixei de o ver, desapareceu, como que num passe de magia, como negativo por revelar, como frame perdido no meu arquivo, e, só passados anos e quando as fugas heroísmo, o soube na Holanda, ulteriormente uma paixão in finita por uma prima minha, contou-me ela, para alguns anos posteriormente o reconhecer na ExpoÉvora 82, e adiante recebendo aquele prémio que o fez aos olhos de cada vez mais gente um Pessoa, e ele o mesmo, e os mesmos olhos de um pai que eu pensava ser o Almada Negreiros, o mesmo olhar tão meu conhecido parecendo parado mas que eu sabia resolvendo a solução de grãos de prata que o haviam de abrir num maravilhamento como o que ante as flores brotando ou desabrochando tantas vezes vivêramos calados

E brotaram, e comove-me que este meu amigo ainda hoje se emocione, com regra diz, se nunca o conheci que não emocionado, sempre terrivelmente emocionado, e calado, sempre tremendamente intrometido consigo, sempre regrado, e hoje sei que o pai não o Almada, nem inventámos a introspecção naqueles dias em que agachados sobre os joelhos esfolados, virávamos escaravelhos com pauzinhos e esperávamos calados, cada um em seu mundo, cada um a seu modo, que uma flor abrisse como fotografia que brotasse…

Não usa óculos e vê mal este meu amigo, não vê, quase não vê, uma pena ...