À data eu vivia perto, e durante alguns anos
acompanhei-lhe o luto, mas quando começou a usar em permanência o véu preto
sobre o rosto, que escondia debaixo de um elegante chapéu redondo de abas
largas enquanto subia a altura das saias convenci-me que se lhe finara o
desgosto. Alex, Alexandra, ou Alexandrina, voltara ao nosso convivio.
Não era crível o que todos jurariam em surdina, que D.
Natália tudo fizera desde o início para boicotar as relações com a nora e
respectiva família desde a morte, dois meses após o casamento, do seu querido
menino.
Prova disso era o facto de Alexandra, Alex para os amigos, ter permanecido em sua casa até hoje, tantos
anos depois daquele triste dia em que Julinho , agarrado desde que em jovem se
formara com louvor e distinção, fora encontrado, a metros de sua mãe e da jovem
esposa, fulminado por uma overdose. Alex entrara quase de imediato em depressão, e D. Natália
acudiu-lhe durante anos e anos apesar da nora nem um neto ter tido tempo de lhe dar.
Não era linda nem elegante, seria muito mais que
isso, e se durante meia dúzia de anos escorraçara todos os pretendentes à
partilha das suas mágoas, depois passou a provocar, consciente e
deliberadamente, todos aqueles em quem se dignava pousar a vista ou conceder atenção.
Do quintal, regando o jardim, ou da janela de sacada
onde queimava os paivantes eu observava o rol de mártires que em permanência
arrastava atrás de si e, que ao longo de meses palmilhando a rua ou nela
fazendo sentinela, adquiriam a convicção de que a inutilidade do gesto aconselhava o afastamento, para logo serem substituídos por um qualquer outro incauto
apaixonado.
Acho que depois dos primeiros meses ou anos de baixa
psiquiátrica, ou psicológica, Alex se habituou àquele modo de vida. Não
receberia muito, mas a cama e mesa garantidas por D. Natália certamente terá
aproveitado.
Enquanto contribuintes eu e os vizinhos aguentámos e
comentámos aquilo, talvez porque a crise forçasse esse tipo de conversa, talvez
por também rendidos à sua beleza e encanto, até o Dr. Paulo, nosso parceiro da
sueca e médico dela sofrera o seu Gólgota a que somente a inclemência do
inverno afastara das sentinelas que prolongava até tarde nas noites.
Por essa época eu não sonhava ainda com o
sindicalismo, nem com o estudo dos iluministas nem do filósofos medievais ou da
sabedoria escolástica, o que só aconteceria numa fase muito posterior, mas os
abusos aos direitos por parte dessa nossa vizinha incomodavam-nos. Para ela não
havia deveres, aliás nunca houve, já os direitos pareciam ser nado e exclusivo
direito seu. Esse dilema, que eu nunca superei, estivera aliás na razão pela
qual a sua pulcritude e vida inconstante cativaram a minha atenção, era um
admirador confesso da sua beleza afrodisíaca e lubricíssima presença, o que
calava em mim os protestos ante a sua conduta desregrada e que em nada a
abonava.
Haviam passado muito mais de vinte anos sem a ver, o
que não obstou que a tivesse reconhecido à primeira, mesmo se apenas a
silhueta, o porte e andar garbosos me tivessem sido por breve momento uma
saudosa aparição.
- Deve ser ela ! É ela ! Tem de ser ela !
E era. Era ela, agora certamente nos quarenta, fruindo
de uma sensualidade, maturidade e segurança insofismáveis a que ainda menos
gente ficaria indiferente. E nem tivera tempo de pestanejar ou levantar os
olhos de tão fantástica visão quando a consciência, mais que a memória,
atrever-me-ia a dizer o subconsciente, trouxe à tona e rebobinou como se
arrancadas de areias movediças lembranças, recordações, tais quais colótipos
da Picasa, perdoem-me a comparação.
Era ela e nada nela mudara, o mesmo gosto pelos
saltos altos, altíssimos, e que lhe firmava o porte projectando-lhe o peito
para a frente, o mesmo andar em frente olhando e varrendo tudo num ângulo de
180º à esquerda e à direita, as costas como quem engolira a espada Durendal,
sim, a de Rolando, a tal que pertencera a Heitor de Tróia, as nádegas opulentas
movendo-se alternadamente com o andar numa bem ensaiada provocação, o pescoço
firme e direito fazendo-o parecer mais comprido, ou alto.
Há mulheres que não querem ser vistas, ou que não
desejam dar nas vistas, mas também há as que sim, que o querem e desejam, há
até as que procuram das nas vistas, e as que sem que o saibam o conseguem, as
que por mais que o tentem ou porfiem não matam caça… Alex inscrevia-se num dos
grupos assinalados, dispenso-me de especificar qual.
Mas não há dúvida, era ela, é ela, porque terá
voltado a pisar a rua ? Ter-se-á quebrado e enguiço ? Sacudido a maldição que
sobre si mesma lançara ?
Aquela aparição majestosa não foi inocente, adivinhei
nela a vaidade que a vestia, o antigo cuidado no corte, o fru fru das sedas que
me fez lembrar as rendas sublimes e transparentes numa malha aberta, fina,
delicada, e que mais pareciam filigrana, coisa em que era viciada e, porque uma
lembrança nunca vem só, os lençóis de seda, eu numa atrapalhação vergonhosa e
delirante escorregando sem conseguir onde firmar-me e ela, de gatas, miando, olhando-me e
gozando-me provocadoramente …