Não, ali na Lagril que nem para lavar automóveis precisavam de gente. Recostou-se à beira da
montra e ficou olhando o jipe nas bombas, tão igual ao que tivera que entregar
meses atrás.
O
motor ronronava enquanto a dona, numa fila para pagar aguardava vez. Viu as
chaves na ignição e repentinamente sobressaltou-se, antes mesmo de saber
porquê.
Havia
muita luz, mas fora isso tudo se mostrava sossegado e sem balbúrdia. Percebeu
porque se sobressaltara e estremeceu de novo. Olhou em volta, não viu câmaras
de vídeo e avançou devagar, fez-se até mais alto que era, engrossou o peito e
avançou a mão para a porta como se a viatura fosse sua, sentou-se ao volante,
ajustou o banco, rodou a chave, engrenou a primeira e saiu dali devagar sem
acender sequer os mínimos. Olhou o espelho pela enésima vez e não viu alarde ou
surpresa, tendo sido quando ligou as luzes e enfiado na via principal que o
suor o alagou e um tremor e excitação o tomaram.
Acelerou,
mas logo lembrou os cuidados a ter para não dar nas vistas, tornou à faixa da
direita e seguiu em frente, simplesmente em frente, sem saber onde ir.
Poucos
quilómetros adiante uma zona sem luz de movimentada área de serviço convidou a
paragem, olhou o nível do combustível, estava quase cheio, por ali não tinha
que preocupar-se, mas impunha-se cogitar depressa no agir, onde ir, para quê,
para onde, respostas que de momento não tinha.
E
repentinamente um salto !!
Na
consola uma luz acendia-se ao mesmo tempo que a campainha de um telemóvel tinia
estridente e desenfreada esmagando-o com o sobressalto acutilante que a
realidade impunha.
Nem
meia hora passara ainda sobre a sua precipitada atitude, no entanto juraria que
vivera mais nesses minutos ou nessa hora que em toda a sua vida. Respirou
profundamente e devagar, e expirou assobiando como que para se compenetrar de
si mesmo, como que para descer à terra.
-
Recapitulemos, pensou.
Puxou
o travão de mão e mirou tudo em redor, a temperatura do óleo, o nível do
combustível (outra vez) a quilometragem total, e mentalmente fez as contas à
que percorrera, premiu o botão respectivo nos manómetros e meteu reset.
-
Pudera eu fazer o mesmo à minha vida, pensou. Começar tudo do princípio.
Recordou
o momento crucial da sua existência em que deitara tudo a perder. A empresa desmembrada
e uma opção tomada havia muito mais de vinte anos que agora se reflectia na sua
carreira, no seu modo de vida e no seu comportamento. Na sua atitude.
A
vaidade perdera-o, atrevera-se mesmo a gozar com os colegas que na altura, e ao
invés dele, aceitaram a inclusão na função pública, enquanto ele preferira a liberdade
e o proveito de uma carreira privada.
Hoje
estava arrependido e bem arrependido, a crise e falências em catadupa tinham
atirado com ele para o desemprego, a ele e a muitos mais a quem a vergonha
impedia de encarar o mundo, o mundo e os antigos colegas, agora no auge de uma
carreira no funcionalismo público, sem sobressaltos, segura, livre do espectro
do desemprego que o consumia.
-
Recapitulemos, o que está feito está feito, vamos pensar com calma, vamos ver e
depois se verá o que fazer em seguida.
Ouvira
que em segunda mão um jipe daqueles podia valer quarenta mil euros ou mais. Não
reparara na matrícula mas pelo formato dos farolins não teria sequer três anos.
Sem estar recheado tinha contudo os extras essenciais, mais um ponto a favor, e
ele precisava urgentemente de dinheiro.
A
luz do telemóvel mal se apagara para logo se acender de novo, a maldita
campainha esfrangalhando-lhe os nervos. Não iria atender, seria alguém em busca
da dona, ou ela mesma tentando contactá-lo.
-
Desligo ? Não desligo ? atendo não atendo ?
-
Porra que me podem localizar pelo telemóvel !
Era
um Galaxy, valeria usado no mínimo cem a cento e cinquenta euros, mas não
hesitou. Desligou-o sem atender atirando-o para cima de uma camioneta carregada
de sacas de cimento que começara a pôr-se em movimento. Expirou
fundo e procurou acalmar-se, olhou os bancos incluindo os de trás e a
chapeleira, abriu o porta-luvas e caíram no tapete uma data de objectos.
Soltou
o cinto debruçando-se para os apanhar. Uma caixa com óculos de sol que pareciam
caros. Uma escova de cabelo cheia deles, loiros, um sutiã vermelho Triumph
Beauty-Full Charm tamanho 38, levou-o ao nariz, estava usado, num estojo de
unhas frascos de verniz e acetona, uma caixa de pastilhas Mercilon quase cheia,
uma que parecia de rebuçados Yasmin vazia, e, ao puxar uma embalagem blister
fechando uma calcinha de cor púrpura, decerto tipo tanga a julgar pelo design
na embalagem, veio arrastada uma calcinha preta rendilhada e amarrotada.
-
Tê-la-á a dona abandonado e abalado sem calcinha ?
O
GPS foi tocado sem querer e ligou-se, assinalava o percurso percorrido
indicando 37 quilómetros ,
através dele conheceu todo o percurso que a loira fizera até à estação de
serviço em que a vira.
-
Ah ! Então era chique a loira !!
-
Mora num bairro chique. Já lá estive, tenho um ou dois amigos lá.
Pelo
tacto analisou a bolsa da porta do condutor, uma velha carteira escondia fotos
encarquilhadas pelo calor ou pelo tempo, mirou e remirou uma a uma com cuidado.
Confirmava-se a impressão dada pela escova, era loira a dona.
-
Olhos verdes ou castanhos ?
Não
dava para perceber.
- Teriam as loiras sempre os olhos verdes ? Certamente
que não.
Na
neve, na praia, junto ao jipe com um farol ao fundo, num jantar de amigos.
-
Algum daqueles seria o marido ? Seria casada a loira ?
Belos
pés, gosto do vermelho das unhas, agora posando num aquaparque, devia ser
alta, forte e alta, é boa, ta madura pensou. Comia-se, pensou para si mesmo
enquanto à memória lhe acudia a fábula da raposa e das uvas, bom peito, e
fechou a velha carteira guardando-a no bolso interior do blusão.
-
Mulheres agora não. Nem pensava em mulheres desde que…
-
E agora que fazer ?
O
jipe daria bom dinheiro, dinheiro de que tanto precisava, mas como ?
-
Como fazer ? Onde ir ? Dirigir-se a quem ? Onde ?
Trabalhou
mentalmente durante algum tempo todas as variáveis possíveis e imaginárias. Não
encontrou solução. Não sentiu fome, antes o espectro da desolação
aproximando-se.
Em
peças valeria menos, mas como fazer ? Desmontá-lo ? E vender as peças a quem ?
Onde ? Um beco afunilava-se-lhe na frente. Não conhecia quem quer que fosse ou
pudesse dar cumprimento ao ímpeto que o tomara. Não era assim nos filmes, e
tinha visto bastantes.
Encontrara
cigarros no porta-luvas entre os bancos, acendeu um, uma repentina tontura e
apagou-o enraivecido. Doía-lhe a cabeça, estava ali há horas, decerto a
matricula do jipe já seria procurada, por enquanto não tinha soluções mas
também não tinha problemas, ou melhor pensando tinha somente o do emprego, e já
não eram poucos os que daí lhe advinham, avançar para a cidade era arriscar,
arranjar mais.
Pela
primeira vez em muitos anos invejou os colegas da função pública, bom horário,
boas folgas dias de nojo feriados e licenças, nem aguentavam metade do que
passara para cumprir objectivos, metas, cotas de mercado, sofrendo a pressão de
chefes e patrões, enquanto eles tinham o fim do mês certo chovesse ou fizesse
sol, com crise ou sem ela ao fim do mês o pecúlio estava certo, nem precisavam
fazer nada, a maior parte deles nem faziam que bem via quando tinha que se
dirigir a qualquer serviço ou repartição, nem precisavam chatear-se, e
rememorava tudo quanto tinha sofrido e aguentado até ao dia em que o despediram.
Pensou
na esposa e voltou a invejar a vida pacata e apagada dos funcionários públicos,
até falta de ambição lhes invejou.
Desnorteado
e sem saber onde ou a quem rumar rodou a chave na ignição, engrenou a primeira
e saiu dali devagar sem esquecer ligar os mínimos, meteu-se a caminho era noite
alta já.
Devagarinho
acercou-se da estação de serviço onde a aventura começara, olhando e observando
com atenção passou frente à montra onde um funcionário o olhou desinteressado, estacionou
o jipe, apagou as luzes devagar, deixou as chaves na ignição saiu sem bater a
porta e rumou a casa…