Fiz um rabisco no céu, com um giz que
alguém me deu e para mais nada me serve. O céu que olho em noites claras, se
estrelado, é um véu ápiro, aparentemente inerve, que recolheu dores, sonhos,
promessas, com que se infesta e nos devolve a força p’ra desfiar cada fado aqui
vivido, cada dia aqui passado.
Dizem haver horas de sorte, gritam com
grande alarido, mas há fados bem sofridos, há viveres descoloridos, e a quem
tal não importe.
Que é tempo de comunhão, grita, da nau
o capitão, alheio ao individualismo que se afirma num cinismo, desdenhoso e
simplório, que por gozo aqui gloso, por estar crente e também certa, a um só
sitio nos levar, ao desvio para um abismo, como castigo exemplar, que antevejo
por desperta.
No céu as estrelas sorriem, escondem
como ninguém as falácias que nos vendem enquanto com desdém riem, não dos que
assim nos mantêm, antes de nós que aliciadas, acreditamos, porque queremos,
nalgumas almas danadas, de bem falantes blasfemos, cuja prosápia bebemos como
coisa bem achada.
Pobres de nós sonhadoras, ingénuas
aparvalhadas, condenadas à penhora pois não intuímos manobras em que somos
embrulhadas. Fados, destinos, estrelas, só se achando capicua c’os desvios à
morte certa em vidas predestinadas. Nos livrem de tal sorte, tais jogadas, ou
maleitas, antes a morte.
Quem tem pedras no sapato e ideias
vende ao desbarato, alguém há-de codilhar, que é o mesmo que dizer que de mesa
sem vintém hão-de retirar um prato. Pobres, sempre houve e haverá. Havia muitos
diziam, o que agora não apraz, ouvir dos que já comiam. O que eu gostaria
mesmo, era que pr’algum achar, tivesse que andar de dia, buscando-o com
candeia, ao invés de pulularem, como em praia os grãos de areia.
Marés embalam o mundo, vai p’ra cima,
vai p’ra baixo, e, nós, num sono insensível, frio e profundo infortúnio,
esquivamos os toques de esgrima c’o semblante cabisbaixo pensando em manter o
brio.
São sonhos Senhor, são sonhos, que nem
nos deixam sonhar, e, se viver há-de ser isto, da morte lenta os limiares, que
sejam então esses os quistos, mas não nos chamais muares.
Malmequeres, papoilas, rosas, lírios,
cravos, tudo serviu na parada em que orgulhosas marchámos de estandarte desfraldado.
E agora, despeitadas, vimos passando à nossa frente, vidas mal ou nem
começadas, vidas em tudo mutiladas, vidas nunca acabadas, ou vidas
despedaçadas.
E é este o nosso fado, bem sofrido, bem
cantado, mal vivido e mal sonhado, mas única consolação de quem viveu, sofreu e
calou, este verdadeiro pesadelo em que a vida se tornou.
Não devia assim ter sido, podia assim
não ter sido, não tinha que assim ter sido. Mas, como as linhas da mão, que são
lidas com desvelo e nunca a verdade contam, assim fomos encantadas, em lindas
falas embaladas e cá estamos para o provar. Vivemos.
Mas viveremos decerto ? Não creio que
me digam agora haver vida no deserto. Surpreender-me-ia tal, e podem crer ser
verdade que se em pouca cousa acerto, nenhumas já me surpreendem por vivê-las
tão de perto.
E por isso vos garanto, que sem dano,
surpresa ou pranto, peguei nesse mesmo giz passando um traço por cima de quem
sem encanto me encanta. E podem crer, acreditem, bastou um traço decidido para
acabar com aquilo que muito boa e adulta gente há muito teria já ou devia ter
percebido
* Já publicado por Maria Luisa Baião no Diário do Sul, coluna
Kota de Mulher 12-2006.