Agachado sobre os joelhos dobrados,
olhava-lhe sobretudo o esfolado, e a mão, minuciosa, tocando virando revirando
e remexendo com um pauzinho, um escaravelho esperneando de patas para o ar
Quanto mais apurado ele na averiguação
obsessiva, criteriosa, maior a minha curiosidade sobre si, todo ele focado no
bicho, olhos mais focados que concentrados, convexos, e que, como os do próprio
pai, me assustavam
Dizer que brincámos juntos seria
extrapolar uma relação que não existiu, morámos a pouca distância, ele num casebre entalado entre a Comenda e o Xarrama, eu num cubículo colado ao prédio azul e, mais correcto seria dizer que me
consentiu por perto, e isso teve que bastar-me, pois era o máximo de aproximação
por ele consentida e o modo de, cada um de nós ser um mundo sem ficar só
Não brincávamos, ele brincava,
sozinho, absorto, dava largas à sua curiosidade militante, e eu divertia-me
vendo-o, observando a sua curiosidade, que por sua vez espicaçava estimulava e
satisfazia a minha
Virava bichos, bocados de espelhos,
vidrinhos, focos, desfocos, imagens, certamente arquitectando fotogramas
experimentais que a memória me guardou, e nesses curtos anos de vida desvendámos
no terreiro ao lado da sua casa, frente ao Marcelino do ouro negro, da benzina,
do benzovaque, do etanol ou álcool azul ou etílico para o arranque dos fogões,
e já um etanol e não um derivado do pitrol, pois devo ser explícito porque
aprendi com ele a remexer tudo com um pauzinho e observar bem as coias antes de me pronunciar
Foi aí, nesse baldio que, observando-o,
me iniciei no preciosismo das coisas, na observação da fauna e da flora, até
que o pai o chamava, jornal na mão, bonecos coloridos na capa como os dos
cromos dos grandes, os tais que não me aceitavam nas suas brincas, e esse pai
que o chamava quebrando a intimidade dos momentos em que sobre si se fechava
assustava-me, era um pai de olhos convexos como lentes de grande angular, dois
olhos entre patilhas, lembrando os toureiros das noites de quinta feira que eu
à sorrelfa via na Tv, em pé, espreitando sobre os ombros dos crescidos, nos
cafés do velho Gerardo ou do senhor Raul
Eu morava no prédio azul, quer dizer,
não bem no prédio azul mas nas traseiras, onde moravam o Quito, os Tanitas, o
Ângelo morava na frente, e o irmão, o Simões, ele ao fundo do bairro, na rua
que levava ao riacho
Tão introvertido lembro este meu amigo
que nem a carroça do bufarinheiro dos petróleos lograva arrancá-lo da
introversão e clausura a que voluntariamente se remetia, bastas vezes o vi
vogando no tempo e, recordo um dia em que, na rua subindo do gaveto da casa
onde vivia, nem um molhe do fotografias a branco e preto o arrancou da perscrutadora
minúcia com que se debruçou sobre o caixote com que o senhor Zé Alves, o bolacha
amaricana, fazia bonecos à la minute encalhado na porta do jardim público, ou
numa praia quaisquer a que o chamamento do Verão o conduzisse no sentido de
prover à família, prole numerosa que as bolas de berlim, a bolacha amaricana, os
gelados vendidos à colher de uma caixa meio frigorifica meio enjorcada carregada ao ombro, de mistura com magia, espectáculos, truques com cartas, velhas e
novas antiguidades, fotografias de mulheres nuas aos molhes, molhes de fotos e
molhes de mulheres
E esses molhes de que eu não entendia a magia juntaram
em seu redor, tumultuosamente e em minutos, tantos homens em sincronia e anuência
quanto contestação ou divergência que eu não alcançava, eu não entendia ainda e, enquanto
tentava perceber, ele ausente, absorto, persistindo na sua perscrutadora
minúcia debruçado sobre o caixote com que o senhor Zé Alves, o bolacha
amaricana, fazia bonecos às portas do jardim público
Hoje sei o que nessas fotos de nus de
forma tão fulminante agregou tantos homens claro, mas não o sabia por aqueles
dias, e se o meu mudo e calado amigo se fechou em torno da maquina dos retratos
do senhor Zé Alves eu aderi ou melhor, assisti, tão calado quanto ele, à
desordenada assembleia que num repente aquele molhe de fotos a preto e branco
suscitou no grupo heterogéneo que mais depressa se formou que um escaravelho
demorava a rebolar espernear e dar a volta até ficar de novo de patas no chão
Depois, num ano que não recordo,
deixei de ver o meu retraído amigo, após as férias e os desenhos animados do Flipper,
que sentados de pernas cruzadas a garotada via no chão da sala do Junça, da
Lúcia ou do Sezídio, deixei de o ver, desapareceu, como que num passe de magia,
como negativo por revelar, como frame perdido no meu arquivo, e, só passados
anos e quando as fugas heroísmo, o soube na Holanda, ulteriormente uma paixão
in finita por uma prima minha, contou-me ela, para alguns anos posteriormente o
reconhecer na ExpoÉvora 82, e adiante recebendo aquele prémio que o fez aos
olhos de cada vez mais gente um Pessoa, e ele o mesmo, e os mesmos olhos de um
pai que eu pensava ser o Almada Negreiros, o mesmo olhar tão meu conhecido parecendo
parado mas que eu sabia resolvendo a solução de grãos de prata que o haviam de
abrir num maravilhamento como o que ante as flores brotando ou desabrochando
tantas vezes vivêramos calados
E brotaram, e comove-me que este meu
amigo ainda hoje se emocione, com regra diz, se nunca o conheci que não
emocionado, sempre terrivelmente emocionado, e calado, sempre tremendamente
intrometido consigo, sempre regrado, e hoje sei que o pai não o Almada, nem
inventámos a introspecção naqueles dias em que agachados sobre os joelhos
esfolados, virávamos escaravelhos com pauzinhos e esperávamos calados, cada um
em seu mundo, cada um a seu modo, que uma flor abrisse como fotografia que
brotasse…