quinta-feira, 25 de setembro de 2014

203 - TAMPAS, TAMPINHAS, TAMPÕES E REFLEXÕES...


Repentinamente esbocei um esgar, não porque tivesse sentido sabor acre ou adocicado, ou até azedo, ou picante, nada disso, somente lembrara o que agora me distraía o pensamento e me servira noutras ocasiões para coçar o cerume dos ouvidos, daí o reflexo de nojo, ainda que as minhas orelhas sejam regularmente lavadas, ou o cerume seja meu, o que contudo não obsta a que continue sendo cerume, então ta explicado o assunto, este disparo reflexivo e repentino do nojo, interrogo-me, isto é, deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica e roo uma tampa que levo aos ouvidos maquinalmente, cuspindo da ponta da língua a impressão duma bola de cerume.

Desta vez entretive-me a mordiscá-la enquanto pensava, todavia os pensamentos de hoje nada têm que ver com os de há trinta quarenta anos em que, atrapalhado com a resposta, D. Sancho II, por cognome o, bolas que me não lembro e inda há pouco tinha isso debaixo da língua, D. Afonso I o Conquistador ou Fundador, D. Sancho I o Povoador, D. Afonso II o Gordo, e bolas bolas que só o D. Sancho II me falta !

Já é azar, ou, como quando 3x9, 3x9, ora deixa lá ver, 9x3, 9x2 dezoito, e roía a tampa enquanto a cabeça me fumegava a todo o vapor até que 9x3 vinte e sete, só o D. Sancho II é que nada e, sem que me apercebesse, roía-a e roía ainda mais como se a resposta surgisse se arrancada à dentada, ou mais tarde tentando compor de cabeça o símbolo químico do azoto e o seu lugar na Tabela Periódica enquanto lembrava como eram lindas as tranças da Lúcia, ou o sorriso rasgado na boca grande da Matilde que me envolvia em celestial doçura sempre que a mim apontava para logo eu disparar matutando no plano inclinado, no fulcro e no eixo, numa alavanca e no mundo mudado, ou na circunferência e no pi se pi igual a 3,14 mais precisamente 3,14159265359 que nestas coisas da matemática só nos fica bem ser exactos, porque pi que é uma constante e jamais uma variável ou borras a escrita toda Alberto, afiançava-me um senhor Amado soltando a fisionomia simpática que trazia sempre afivelada, dando-me uma palmada nas costas afim de incutir confiança pois decerto vira como eu reiteradamente roía e roía aquela tampa, se é que não a metia no ouvido, coçando a lembrança que me não ocorria e tanto parecia sumir-se quão mais tentava lembra-la até que finalmente o “Capelo” !

E pronto estava o D. Sancho composto.

E atrás dessa história do rei beato, pio, piedoso, que em criança já o era e tinha usado um manto, pois era marreco, não querendo o pai que as pessoas descobrissem, por isso lhe pôs um capelo (manto) nas costas longe de adivinhar que por tal viria a receber o cognome de "O Capelo", e dado que nesses tempos não havia aquela coisa do "todos diferentes todos iguais" e a consideração pelos deficientes era nenhuma, o inepto e inábil marreco acabou deposto pelo Papa Inocêncio IV em 1245, passados muitos poucos anos e sob a acusação de «rex innutilis», o que diz muito sobre o personagem que eu agora, resolvido que estava o problema, tentava esquecer mirando aproximando-se a Prof. Escária Santos, a científica, palitando os dentes com uma tampinha encarnadinha, alvitro estar a vê- la no que me parece um túnel em que instalado estaria o laboratório de Stª. Clara, numa aula em que o magnetismo para cá e para lá, e a tampa era esfregada nos cabelos ou nas novéis roupas em nylon e, por via disso, pegando-lhe eu, a medo, e tocando com ela os membros da rã morta na mesa em mármore, as pernas se lhe distendiam num disparo como se o batráquio fosse soltar-se mas o que se soltava por vezes era uma pequena faísca da tampa para a rã, ou para um quadradinho de papel que cortávamos com a minúcia de um ginecologista e que, através da magia do magnetismo fazíamos dançar provando a ligação causa efeito no fenómeno da indução pelo que convinha tratar das unhas não fosse eventualmente alguma madame lamentar -se …

E aqui uma pausa de honra ao Dr. Abel Ribeiro, outro cruzado da causa efeito o qual, atravessando a sala para a frente e para trás limpando as unhas cuidadas com a ponta de uma tampa surripiada a qualquer de nós doutrinava:
+ com + é mais, 
– com – dá mais,
+ com – dá menos,
 - com + dá menos,
sinais iguais dá mais,
sinais diferentes dá menos

e eu erguendo em difícil equilíbrio vertical na ponta dos dedos a esferográfica e a respectiva tampa incapaz de catequizar o aborrecimento, alheio aos mistérios da sinalética e passando horas absorto, tentando adivinhar para que lado a ciência desequilibraria a caneta atento à mão do mestre, e à sua necessidade de desobliterar as unhas gamando as tampas à mão de semear, pelo que entalei nela uma folha do caderno, dobrada, fazendo com um impulso de mão voar o conjunto como resultado da mesmíssima dedução que levara os irmãos Wright a desvendar os mistérios do inimaginável quando ainda nem esferográficas nem tampas se imaginavam, e tão absorto eu ficara que nem dei pela Gertrudes Neto, pequenina e jeitosinha, berrando-me quase aos ouvidos:

- Alberto deixe isso e vá já ao quadro resolver aquele conjunto de fracções !

Ou equações, foi há muito, nem lembro, só me restou levantar-me, apanhar do chão num voo rasante a esferográfica e a respectiva tampa, deixei as asas para o Orville pois com a Gertrudes Neto não se brincava, não desde que conhecera o Roque, mais desejosa do toque de saída que de nos aturar por menos irrequieto que qualquer de nós fosse e, roendo as unhas muitos mas não eu que me ficava pelas tampas das canetas, as mesmas que me levavam da sala em voos inolvidáveis que teriam feito inveja ao mano Wilbur quando subiu aos céu enquanto eu, calmamente, ia tirando o cerume dos ouvidos…

Vous me comprenez, monsieur ? Et vous comprenez, madame?

E por falar nos manos Orville e Wilbur Wright, excelsos mecânicos de bicicletas, rememorei agora quando, com uma tampa arrombava os cadeados das ditas à hora das aulas a que faltava para ir passear nelas, mania que me ficou e levou a que, anos mais tarde, pelo mesmo método arrombasse o fecho da Casal de duas do Torrinhas Lopes, sim esse que morava na Qt. do Sacramento à “ladeira da boa morte”, cousa possível e provavelmente não alheia à sua prematura perda de vida (ou perca, como diria a minha amiga Guida), para num empurrão a colocar a trabalhar e nela me passear (nela na Casal de duas e não na Guida) até à hora do toque de saída ou a gasolina desse sinal de reserva.

Coitado do Lopes já se foi, já há muito que não está entre nós, foi um ar que lhe deu, inda o lembro metendo a tampa da esferográfica nos buracos dos incisivos, que tinha cariados e nem o deixavam assobiar por o ar se lhe escapar literalmente por entre os dentes como a água se nos escapa entre os dedos.

Até que um dia, maravilha das maravilhas, me começaram a chegar tampas atrás de tampas, cada uma com um escritinho, uma mensagem, e do outro lado um náufrago, a Bárbara afogando-se e gritando por mim, uma tampa um grito lancinante, eu desesperado, diria aflito, temendo ser arrastado por ela aos abismos, às negras profundezas dos abismos em que as primas eram vezeiras e useiras em afundar e resgatar-me, e a Bárbara aflita, e cada tampa um SOS, eu temendo aventurar-me naquelas águas revoltas até soçobrar um dia,

um dia inesquecível, o dia em que para segurar o sutiã nos socorremos de uma tampa atravessada na fivelinha como uma tranca, e desde esse dia me ficou um complexo de inabilidade com os sutiãs, desde que partíramos aquele no ímpeto do resgate que nenhum outro cedeu aos meus dedos nem aos meus desejos, e daí esta aversão a fivelinhas e colchetes, este trauma que volta não volta me leva a roer a mordiscar perdido de nervos desde as tampas das canetas e esferográficas ás cabeças dos lápis,

interrogo-me por que carga de água não têm os sutiãs fechos de imanes, fáceis, descomplexados, passe a segunda intenção, facilmente ajustáveis, adaptáveis, e isto deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica roendo a tampa de uma caneta, que levo aos ouvidos maquinalmente despoletando de forma inata o tal reflexo instintivo de nojo, cuspindo da ponta da língua uma imaginada bola de cerume, e, quem diria, bola que me levou a pensar que, quando rapaz, arrancando os macacos do nariz os rebolava entre os dedos até moldá-los numa esfera bem redondinha e, servindo-me do dedo médio como mola, chutava essa bolinha disparando-a pressionada contra o polegar, para cima de algo ou de alguém, rindo sátiro e mordendo raivosamente uma tampa, bendizendo a hora em que o plástico foi inventado…


P.S. –Após a conclusão do texto fui informado haver já sutiãs com fechos e ajustes de feltro, o que agradeci solenemente, ainda que não me adiante muito, cavado fundo que está o meu trauma e eu, cinquentenário, embora tenha agora o vagar e a paciência que dantes não tinha, deva ser franco e aceite faltar-me oportunidade e vontade para me debruçar criticamente sobre tão prestimoso melhoramento ou invenção. 
... 



 


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

202 - DAR A VIDA ... SE A NÃO PERDEREM ... by Maria Luísa Baião *


Se há exemplo de gente altruísta, abnegada, sempre disponível e pronta a ajudar o próximo, esse exemplo assenta de forma incontestada e singular nos Bombeiros, quaisquer Bombeiros. Desinteressados, parece não almejarem mais que a satisfação do dever cumprido e o reconhecimento social que todas sem excepção lhes devemos.

Há muitos muitos anos que, por força da minha actividade profissional lido com eles. Lidar é como quem diz, trabalho com eles e com eles privo, de tal modo que não deve haver no nosso concelho e nos concelhos limítrofes, bombeiro que não conheça e a quem não reconheça as qualidades que apontei. Somos quase uma família, tal a empatia que entre nós se gerou com o passar dos tempos e a miríade de situações criticas que partilhámos e haveremos de partilhar por certo no futuro.

Sei que em todos eles tenho um amigo, como eles sabem que podem contar comigo, pelo que muitas vezes funcionamos já sem necessidade de grandes explicações, cada um de nós cumpre o seu papel, não automaticamente mas profissionalmente, eficientemente, o doente está primeiro e os procedimentos assentam necessariamente nessa contingência.

É para eles que vai hoje o meu pensamento, tão só porque sempre dispostos a arriscar e dar tudo por qualquer de nós por nós disponibilizam, como Cristo, a dádiva maior, a vida... Se a não perderem.

Um desses homens bons nos deixou há dias, eborense, durante muitos anos radicado na vizinha freguesia de Azaruja, onde foi condutor da ambulância da Junta de Freguesia. Era para mim um homem bom, um soldado da paz, um Bombeiro. Nunca estando em paz com o mundo, mantinha-se contudo sempre pronto para acudir a qualquer mortal, espécie com a qual mantinha aliás uma relação ambígua de amor e recusa, que todavia jamais impediu o seu esforçado empenho e dedicação.

Falo-vos de Jerónimo Amaral, grande, barbudo, irónico e insolente, alma maior que o corpo, uma filosofia existencialista que foi limando ao longo da vida, vida que a todo o momento lhe apontava arestas, arestas que a sua dialéctica sui generis lá ia resolvendo, e cujo discernimento de forma muito própria se espelhava no seu espírito. Olhos vivos, o rosto sempre esboçando um sorriso afável, modos cativantes, e sempre armado duma vivacidade de criança ingénua que nos desarmava.

Nunca soube e jamais saberei porque me adorava, amor que sempre lhe retribui sem regatear e que se manteve mesmo depois de ter abandonado as funções de “bombeiro” e rumado a Évora, onde na rua de Burgos tinha há pouco inaugurado uma Galeria de arte e artesanato, sim, porque o Jerónimo era artista, da vida e da escultura em ferro, a partir do qual nos transmitia uma visão do mundo que tive ocasião, tempos atrás, de gabar nestas páginas.

É que uma vez Bombeiro sempre Bombeiro, por isso o Jerónimo nunca perdeu o seu carisma, nem a disponibilidade e simpatia desinteressadas que continuou a cultivar, por isso a sua morte tanto me magoou e pela primeira vez em muitos anos estou deveras zangada com ele, zangada e mui magoada.

Compreendi agora e só agora, nestes momentos de dolorosa reflexão, porque me tratava o Jerónimo por “Vizinha”, não por Luísa, não por Terapeuta, ou Terapeuta Luísa como habitualmente todos me tratam, ainda que não tenha vivido sequer perto de mim.

Eram a nossa maneira de ser e de pensar que estavam próximas e foi essa proximidade agora desvendada que me tocou o coração e que faz com que não possa perdoar-lhe o que nem sequer compreendo, a sua morte.

Tu que eras tão forte deixaste o mundo vencer-te ? Deixaste de lutar, perdida a esperança ? ou foi opção premeditada e modo de resolver um velho contencioso com este mundo que nem sempre podemos levar a sério ? Respeito a escolha, mas não posso passar sem criticar a solução.

Não havia outros caminhos ? Tu que tantos rumos apontaste e trilhaste, tu que tão bem sabias que o caminho se faz caminhando.

Que dor, que raiva que sinto, que pena.

Chorar-te-ei sempre.  


* By Maria Luísa Baião, sobre o suicídio de Jerónimo Amaral. Texto publicado no jornal Diário do Sul em 25-5-2001, coluna KOTA DE MULHER.    




domingo, 31 de agosto de 2014

201 - FIZ UM RABISCO NO CÉU * por Luísa Baião




Fiz um rabisco no céu, com um giz que alguém me deu e para mais nada me serve. O céu que olho em noites claras, se estrelado, é um véu ápiro, aparentemente inerve, que recolheu dores, sonhos, promessas, com que se infesta e nos devolve a força p’ra desfiar cada fado aqui vivido, cada dia aqui passado.

Dizem haver horas de sorte, gritam com grande alarido, mas há fados bem sofridos, há viveres descoloridos, e a quem tal não importe.

Que é tempo de comunhão, grita, da nau o capitão, alheio ao individualismo que se afirma num cinismo, desdenhoso e simplório, que por gozo aqui gloso, por estar crente e também certa, a um só sitio nos levar, ao desvio para um abismo, como castigo exemplar, que antevejo por desperta.

No céu as estrelas sorriem, escondem como ninguém as falácias que nos vendem enquanto com desdém riem, não dos que assim nos mantêm, antes de nós que aliciadas, acreditamos, porque queremos, nalgumas almas danadas, de bem falantes blasfemos, cuja prosápia bebemos como coisa bem achada.

Pobres de nós sonhadoras, ingénuas aparvalhadas, condenadas à penhora pois não intuímos manobras em que somos embrulhadas. Fados, destinos, estrelas, só se achando capicua c’os desvios à morte certa em vidas predestinadas. Nos livrem de tal sorte, tais jogadas, ou maleitas, antes a morte.

Quem tem pedras no sapato e ideias vende ao desbarato, alguém há-de codilhar, que é o mesmo que dizer que de mesa sem vintém hão-de retirar um prato. Pobres, sempre houve e haverá. Havia muitos diziam, o que agora não apraz, ouvir dos que já comiam. O que eu gostaria mesmo, era que pr’algum achar, tivesse que andar de dia, buscando-o com candeia, ao invés de pulularem, como em praia os grãos de areia.

Marés embalam o mundo, vai p’ra cima, vai p’ra baixo, e, nós, num sono insensível, frio e profundo infortúnio, esquivamos os toques de esgrima c’o semblante cabisbaixo pensando em manter o brio.

São sonhos Senhor, são sonhos, que nem nos deixam sonhar, e, se viver há-de ser isto, da morte lenta os limiares, que sejam então esses os quistos, mas não nos chamais muares.

Malmequeres, papoilas, rosas, lírios, cravos, tudo serviu na parada em que orgulhosas marchámos de estandarte desfraldado. E agora, despeitadas, vimos passando à nossa frente, vidas mal ou nem começadas, vidas em tudo mutiladas, vidas nunca acabadas, ou vidas despedaçadas.

E é este o nosso fado, bem sofrido, bem cantado, mal vivido e mal sonhado, mas única consolação de quem viveu, sofreu e calou, este verdadeiro pesadelo em que a vida se tornou.

Não devia assim ter sido, podia assim não ter sido, não tinha que assim ter sido. Mas, como as linhas da mão, que são lidas com desvelo e nunca a verdade contam, assim fomos encantadas, em lindas falas embaladas e cá estamos para o provar. Vivemos.

Mas viveremos decerto ? Não creio que me digam agora haver vida no deserto. Surpreender-me-ia tal, e podem crer ser verdade que se em pouca cousa acerto, nenhumas já me surpreendem por vivê-las tão de perto.

E por isso vos garanto, que sem dano, surpresa ou pranto, peguei nesse mesmo giz passando um traço por cima de quem sem encanto me encanta. E podem crer, acreditem, bastou um traço decidido para acabar com aquilo que muito boa e adulta gente há muito teria já ou devia ter percebido

* Já publicado por Maria Luisa Baião no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher 12-2006.     




sábado, 2 de agosto de 2014

200 - UM CONTRA O OUTRO ..............


Não aguentaria mais. Nem mais nem mais tempo. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Isto tinha que se dar. Agora que já está acho ter demorado tempo demais. Devia ter-lhe posto fim mais cedo. Demorado e durado. Lá haverá quem pense que acabou antes de tempo, por mim durou até demasiado.

Se bem o pensamos melhor o fazemos, isto devia ser atar e pendurar como na mercearia. Depois de pensada a coisa nada se ganha em protelar. Pagar e morrer é que quanto mais tarde melhor. Na verdade agora até sinto um alívio. Os últimos dias acabaram comigo. Devia ter-me decidido mais cedo. Nem sei que imaginava eu que tanto temia a decisão. Afinal foi fácil, nem zaragatas, afinal foi uma surpresa, a bem dizer nada do que previra aconteceu.

Mas é isso que é estranho. Algo devia ter acontecido. Mas ao certo que devia ter sucedido que não sucedeu ?

Esta falta de reacção é inusitada, não a esperava de todo, estive a preparar-me para tudo menos para esta indiferença muda. Desolação, foi o que ficou depois da decisão anunciada. Mas para mim antes esta desolação consumada que a apreensão em que passava os dias.

As crianças já foram. Já foram crianças, o Antonino já tem a vida dele traçada, e a Ermelinda meteu o pé na portada e empurra agora, e, se bem a conheço não vai tirá-lo. O caminho é em frente, que atrás vem gente e nisso a Salsichinha sai à avó que quando se lhe metia uma coisa na cabeça não descansava. À avó ou à mãe. A alguém têm que sair os miúdos né ? Se não for ao pai só pode ser à mãe. Olhem esta agora.

Descobri a pólvora para aqui a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se. Podia ser pior. Afinal vivo uma acalmia que há meses não sentia. Há males que vêem por bem. As coisas vão até mais calmas do que estava à espera. Já nada há que me cause alarido. O pior vem agora mas acho que me dominei, me acalmei, e tudo isto me deu preparação foi isso que aconteceu.

Este assunto andava a matar-me o pensamento, agora já posso sair do esconderijo, não sinto raivas mas algum medo, preciso organizar-me, vou estar uns tempos sem aparecer, espero que compreendam, tempos difíceis se avizinham. Falei hoje sobre o que queria para a minha vida e não quero continuar assim. Foi isso que aconteceu.

Tenho de parar com isto, falar só p’ra mim, falar para as paredes, logo eu que até tenho perfeita consciência de me perder por falar demais, mas preciso ocupar-me, não posso pensar que agora estou só, eu e eu comigo, esta fase solitária há-de passar, é tudo estranho agora, anda tudo estranho, ou serei eu que verei tudo diferente, finalmente as coisas esclareceram-se, foram demasiado longe, muito mais do que imaginava, do que queria, terem ido longe demais desta vez até foi positivo, e não era o que eu queria ?

Foram mais longe e ficaram mais sérias, a vida é uma merda, é uma merda mas é assim mesmo, e esta vida de merda nem traz manual de instruções, tenho é que desanuviar, meter baixa, ou meter férias, ir à praia, estou a ficar branquelas e detesto.

Não, não foi um capricho do momento, andámos foi demasiado tempo engonhando, fazendo de conta que nada se passava, mas passava, agora já passou, a vida não pára, em frente que atrás vem gente, até me sinto mais leve, até sinto um alivio que há meses não sentia, ainda me custa acreditar que já estou noutra, vou mas é meter férias atirar duas ou três coisas para o carro e partir à desfilada.

Allgarve here i go !!!

Não aguentava mais, não aguentaria mais, nem muito mais nem muito mais tempo. Isto tinha que se dar. O que durou a mais foi o que se perdeu. Afinal foi fácil, afinal nem zaragatas, afinal nem surpresas, no final só uma indiferença muda. Olhem-me esta agora, por esta é que não esperava de todo. Podia ser pior, podia ter sido pior mas cá estou eu a falar para as paredes, para o boneco como soa dizer-se, preciso ocupar-me, esta fase solitária há-de passar-me sem que me perca por falar demais, ninguém está ouvindo pois não ? Ninguém ouviu nada então não ?

Quando voltar de férias logo se verá, os miúdos, os carros, logo se verá quem fica com o quê ou quais, os discos e os livros não deixam duvidas e até lá não me doa a cabeça.

Preciso aliviar, distrair-me, sentir de novo a vida, as emoções fervilhando em mim, os sentimentos palpitando como pipocas, o sangue correndo nas veias e a pele arrepiando-se de novo. Vivo a ternura dos quarenta e inda valho, ainda presto, ainda preciso, ainda sou capaz. Preciso é esquecer a sensaboria do passado, o sentimento de inutilidade, esta sensação de ser invisível, de quase nem existir, vão ter que me aturar de novo, terão que olhar-me de novo, ver-me, reparar em mim, aguentar-me que renasci e estou aqui de novo para as curvas, para a vida !!

Cuidem-se !

Allgarve here i go !!!
Lisbon here i go !!!
Porto here i go !!!
Faro here i go !!!

https://www.youtube.com/watch?v=XbwtOekK3qY

terça-feira, 29 de julho de 2014

199 - UM JIPE EM PRIMEIRA MÃO...


Não, ali na Lagril que nem para lavar automóveis precisavam de gente. Recostou-se à beira da montra e ficou olhando o jipe nas bombas, tão igual ao que tivera que entregar meses atrás.

O motor ronronava enquanto a dona, numa fila para pagar aguardava vez. Viu as chaves na ignição e repentinamente sobressaltou-se, antes mesmo de saber porquê.

Havia muita luz, mas fora isso tudo se mostrava sossegado e sem balbúrdia. Percebeu porque se sobressaltara e estremeceu de novo. Olhou em volta, não viu câmaras de vídeo e avançou devagar, fez-se até mais alto que era, engrossou o peito e avançou a mão para a porta como se a viatura fosse sua, sentou-se ao volante, ajustou o banco, rodou a chave, engrenou a primeira e saiu dali devagar sem acender sequer os mínimos. Olhou o espelho pela enésima vez e não viu alarde ou surpresa, tendo sido quando ligou as luzes e enfiado na via principal que o suor o alagou e um tremor e excitação o tomaram.

Acelerou, mas logo lembrou os cuidados a ter para não dar nas vistas, tornou à faixa da direita e seguiu em frente, simplesmente em frente, sem saber onde ir.
Poucos quilómetros adiante uma zona sem luz de movimentada área de serviço convidou a paragem, olhou o nível do combustível, estava quase cheio, por ali não tinha que preocupar-se, mas impunha-se cogitar depressa no agir, onde ir, para quê, para onde, respostas que de momento não tinha.

E repentinamente um salto !!

Na consola uma luz acendia-se ao mesmo tempo que a campainha de um telemóvel tinia estridente e desenfreada esmagando-o com o sobressalto acutilante que a realidade impunha.

Nem meia hora passara ainda sobre a sua precipitada atitude, no entanto juraria que vivera mais nesses minutos ou nessa hora que em toda a sua vida. Respirou profundamente e devagar, e expirou assobiando como que para se compenetrar de si mesmo, como que para descer à terra.

- Recapitulemos, pensou.

Puxou o travão de mão e mirou tudo em redor, a temperatura do óleo, o nível do combustível (outra vez) a quilometragem total, e mentalmente fez as contas à que percorrera, premiu o botão respectivo nos manómetros e meteu reset.

- Pudera eu fazer o mesmo à minha vida, pensou. Começar tudo do princípio.

Recordou o momento crucial da sua existência em que deitara tudo a perder. A empresa desmembrada e uma opção tomada havia muito mais de vinte anos que agora se reflectia na sua carreira, no seu modo de vida e no seu comportamento. Na sua atitude.

A vaidade perdera-o, atrevera-se mesmo a gozar com os colegas que na altura, e ao invés dele, aceitaram a inclusão na função pública, enquanto ele preferira a liberdade e o proveito de uma carreira privada.

Hoje estava arrependido e bem arrependido, a crise e falências em catadupa tinham atirado com ele para o desemprego, a ele e a muitos mais a quem a vergonha impedia de encarar o mundo, o mundo e os antigos colegas, agora no auge de uma carreira no funcionalismo público, sem sobressaltos, segura, livre do espectro do desemprego que o consumia.

- Recapitulemos, o que está feito está feito, vamos pensar com calma, vamos ver e depois se verá o que fazer em seguida.

Ouvira que em segunda mão um jipe daqueles podia valer quarenta mil euros ou mais. Não reparara na matrícula mas pelo formato dos farolins não teria sequer três anos. Sem estar recheado tinha contudo os extras essenciais, mais um ponto a favor, e ele precisava urgentemente de dinheiro.

A luz do telemóvel mal se apagara para logo se acender de novo, a maldita campainha esfrangalhando-lhe os nervos. Não iria atender, seria alguém em busca da dona, ou ela mesma tentando contactá-lo.

- Desligo ? Não desligo ? atendo não atendo ?

- Porra que me podem localizar pelo telemóvel !

Era um Galaxy, valeria usado no mínimo cem a cento e cinquenta euros, mas não hesitou. Desligou-o sem atender atirando-o para cima de uma camioneta carregada de sacas de cimento que começara a pôr-se em movimento. Expirou fundo e procurou acalmar-se, olhou os bancos incluindo os de trás e a chapeleira, abriu o porta-luvas e caíram no tapete uma data de objectos.

Soltou o cinto debruçando-se para os apanhar. Uma caixa com óculos de sol que pareciam caros. Uma escova de cabelo cheia deles, loiros, um sutiã vermelho Triumph Beauty-Full Charm tamanho 38, levou-o ao nariz, estava usado, num estojo de unhas frascos de verniz e acetona, uma caixa de pastilhas Mercilon quase cheia, uma que parecia de rebuçados Yasmin vazia, e, ao puxar uma embalagem blister fechando uma calcinha de cor púrpura, decerto tipo tanga a julgar pelo design na embalagem, veio arrastada uma calcinha preta rendilhada e amarrotada.

- Tê-la-á a dona abandonado e abalado sem calcinha ?

O GPS foi tocado sem querer e ligou-se, assinalava o percurso percorrido indicando 37 quilómetros, através dele conheceu todo o percurso que a loira fizera até à estação de serviço em que a vira.

- Ah ! Então era chique a loira !!

- Mora num bairro chique. Já lá estive, tenho um ou dois amigos lá.

Pelo tacto analisou a bolsa da porta do condutor, uma velha carteira escondia fotos encarquilhadas pelo calor ou pelo tempo, mirou e remirou uma a uma com cuidado. Confirmava-se a impressão dada pela escova, era loira a dona.

- Olhos verdes ou castanhos ?

Não dava para perceber.

-  Teriam as loiras sempre os olhos verdes ? Certamente que não.

Na neve, na praia, junto ao jipe com um farol ao fundo, num jantar de amigos.
- Algum daqueles seria o marido ? Seria casada a loira ?

Belos pés, gosto do vermelho das unhas, agora posando num aquaparque, devia ser alta, forte e alta, é boa, ta madura pensou. Comia-se, pensou para si mesmo enquanto à memória lhe acudia a fábula da raposa e das uvas, bom peito, e fechou a velha carteira guardando-a no bolso interior do blusão.

- Mulheres agora não. Nem pensava em mulheres desde que…

- E agora que fazer ?

O jipe daria bom dinheiro, dinheiro de que tanto precisava, mas como ?

- Como fazer ? Onde ir ? Dirigir-se a quem ? Onde ?

Trabalhou mentalmente durante algum tempo todas as variáveis possíveis e imaginárias. Não encontrou solução. Não sentiu fome, antes o espectro da desolação aproximando-se.

Em peças valeria menos, mas como fazer ? Desmontá-lo ? E vender as peças a quem ? Onde ? Um beco afunilava-se-lhe na frente. Não conhecia quem quer que fosse ou pudesse dar cumprimento ao ímpeto que o tomara. Não era assim nos filmes, e tinha visto bastantes.

Encontrara cigarros no porta-luvas entre os bancos, acendeu um, uma repentina tontura e apagou-o enraivecido. Doía-lhe a cabeça, estava ali há horas, decerto a matricula do jipe já seria procurada, por enquanto não tinha soluções mas também não tinha problemas, ou melhor pensando tinha somente o do emprego, e já não eram poucos os que daí lhe advinham, avançar para a cidade era arriscar, arranjar mais.

Pela primeira vez em muitos anos invejou os colegas da função pública, bom horário, boas folgas dias de nojo feriados e licenças, nem aguentavam metade do que passara para cumprir objectivos, metas, cotas de mercado, sofrendo a pressão de chefes e patrões, enquanto eles tinham o fim do mês certo chovesse ou fizesse sol, com crise ou sem ela ao fim do mês o pecúlio estava certo, nem precisavam fazer nada, a maior parte deles nem faziam que bem via quando tinha que se dirigir a qualquer serviço ou repartição, nem precisavam chatear-se, e rememorava tudo quanto tinha sofrido e aguentado até ao dia em que o despediram.

Pensou na esposa e voltou a invejar a vida pacata e apagada dos funcionários públicos, até falta de ambição lhes invejou.

Desnorteado e sem saber onde ou a quem rumar rodou a chave na ignição, engrenou a primeira e saiu dali devagar sem esquecer ligar os mínimos, meteu-se a caminho era noite alta já.

Devagarinho acercou-se da estação de serviço onde a aventura começara, olhando e observando com atenção passou frente à montra onde um funcionário o olhou desinteressado, estacionou o jipe, apagou as luzes devagar, deixou as chaves na ignição saiu sem bater a porta e rumou a casa…