Repentinamente esbocei um esgar, não porque tivesse
sentido sabor acre ou adocicado, ou até azedo, ou picante, nada disso, somente
lembrara o que agora me distraía o pensamento e me servira noutras ocasiões
para coçar o cerume dos ouvidos, daí o reflexo de nojo, ainda que as minhas
orelhas sejam regularmente lavadas, ou o cerume seja meu, o que contudo não
obsta a que continue sendo cerume, então ta explicado o assunto, este disparo
reflexivo e repentino do nojo, interrogo-me, isto é, deduzo agora sentado à
mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a
bica e roo uma tampa que levo aos ouvidos maquinalmente, cuspindo da ponta da
língua a impressão duma bola de cerume.
Desta vez entretive-me a mordiscá-la enquanto pensava,
todavia os pensamentos de hoje nada têm que ver com os de há trinta quarenta
anos em que, atrapalhado com a resposta, D. Sancho II, por cognome o, bolas que
me não lembro e inda há pouco tinha isso debaixo da língua, D. Afonso I o Conquistador
ou Fundador, D. Sancho I o Povoador, D. Afonso II o Gordo, e bolas bolas que só
o D. Sancho II me falta !
Já é azar, ou, como quando 3x9, 3x9, ora deixa lá
ver, 9x3, 9x2 dezoito, e roía a tampa enquanto a cabeça me fumegava a todo o vapor
até que 9x3 vinte e sete, só o D. Sancho II é que nada e, sem que me
apercebesse, roía-a e roía ainda mais como se a resposta surgisse se arrancada
à dentada, ou mais tarde tentando compor de cabeça o símbolo químico do azoto e
o seu lugar na Tabela Periódica enquanto lembrava como eram lindas as tranças
da Lúcia, ou o sorriso rasgado na boca grande da Matilde que me envolvia em
celestial doçura sempre que a mim apontava para logo eu disparar matutando no
plano inclinado, no fulcro e no eixo, numa alavanca e no mundo mudado, ou na circunferência
e no pi se pi igual a 3,14 mais precisamente 3,14159265359 que nestas coisas da
matemática só nos fica bem ser exactos, porque pi que é uma constante e jamais
uma variável ou borras a escrita toda Alberto, afiançava-me um senhor Amado
soltando a fisionomia simpática que trazia sempre afivelada, dando-me uma
palmada nas costas afim de incutir confiança pois decerto vira como eu
reiteradamente roía e roía aquela tampa, se é que não a metia no ouvido, coçando
a lembrança que me não ocorria e tanto parecia sumir-se quão mais tentava
lembra-la até que finalmente o “Capelo” !
E pronto estava o D. Sancho composto.
E atrás dessa história do rei beato, pio, piedoso,
que em criança já o era e tinha usado um manto, pois era marreco, não querendo
o pai que as pessoas descobrissem, por isso lhe pôs um capelo (manto) nas
costas longe de adivinhar que por tal viria a receber o cognome de "O
Capelo", e dado que nesses tempos não havia aquela coisa do "todos
diferentes todos iguais" e a consideração pelos deficientes era nenhuma, o inepto
e inábil marreco acabou deposto pelo Papa Inocêncio IV em 1245, passados muitos
poucos anos e sob a acusação de «rex innutilis», o que diz muito sobre o personagem
que eu agora, resolvido que estava o problema, tentava esquecer mirando aproximando-se
a Prof. Escária Santos, a científica, palitando os dentes com uma tampinha
encarnadinha, alvitro estar a vê- la no que me parece um túnel em que instalado
estaria o laboratório de Stª. Clara, numa aula em que o magnetismo para cá e
para lá, e a tampa era esfregada nos cabelos ou nas novéis roupas em nylon e,
por via disso, pegando-lhe eu, a medo, e tocando com ela os membros da rã morta
na mesa em mármore, as pernas se lhe distendiam num disparo como se o batráquio
fosse soltar-se mas o que se soltava por vezes era uma pequena faísca da tampa
para a rã, ou para um quadradinho de papel que cortávamos com a minúcia de um
ginecologista e que, através da magia do magnetismo fazíamos dançar provando a
ligação causa efeito no fenómeno da indução pelo que convinha tratar das unhas
não fosse eventualmente alguma madame lamentar -se …
E aqui uma pausa de honra ao Dr. Abel Ribeiro, outro cruzado
da causa efeito o qual, atravessando a sala para a frente e para trás limpando
as unhas cuidadas com a ponta de uma tampa surripiada a qualquer de nós
doutrinava:
+ com + é mais,
– com – dá mais,
+ com – dá menos,
- com + dá
menos,
sinais iguais dá mais,
sinais diferentes dá menos
e eu erguendo em difícil equilíbrio vertical na ponta
dos dedos a esferográfica e a respectiva tampa incapaz de catequizar o
aborrecimento, alheio aos mistérios da sinalética e passando horas absorto,
tentando adivinhar para que lado a ciência desequilibraria a caneta atento à
mão do mestre, e à sua necessidade de desobliterar as unhas gamando as tampas à
mão de semear, pelo que entalei nela uma folha do caderno, dobrada, fazendo com
um impulso de mão voar o conjunto como resultado da mesmíssima dedução que
levara os irmãos Wright a desvendar os mistérios do inimaginável quando ainda
nem esferográficas nem tampas se imaginavam, e tão absorto eu ficara que nem
dei pela Gertrudes Neto, pequenina e jeitosinha, berrando-me quase aos ouvidos:
- Alberto deixe isso e vá já ao quadro resolver
aquele conjunto de fracções !
Ou equações, foi há muito, nem lembro, só me restou
levantar-me, apanhar do chão num voo rasante a esferográfica e a respectiva
tampa, deixei as asas para o Orville pois com a Gertrudes Neto não se brincava,
não desde que conhecera o Roque, mais desejosa do toque de saída que de nos
aturar por menos irrequieto que qualquer de nós fosse e, roendo as unhas muitos
mas não eu que me ficava pelas tampas das canetas, as mesmas que me levavam da
sala em voos inolvidáveis que teriam feito inveja ao mano Wilbur quando subiu aos
céu enquanto eu, calmamente, ia tirando o cerume dos ouvidos…
Vous me comprenez, monsieur ? Et vous comprenez,
madame?
E por falar nos manos Orville e Wilbur Wright,
excelsos mecânicos de bicicletas, rememorei agora quando, com uma tampa
arrombava os cadeados das ditas à hora das aulas a que faltava para ir passear
nelas, mania que me ficou e levou a que, anos mais tarde, pelo mesmo método
arrombasse o fecho da Casal de duas do Torrinhas Lopes, sim esse que morava na Qt.
do Sacramento à “ladeira da boa morte”, cousa possível e provavelmente não alheia
à sua prematura perda de vida (ou perca, como diria a minha amiga Guida), para
num empurrão a colocar a trabalhar e nela me passear (nela na Casal de duas e
não na Guida) até à hora do toque de saída ou a gasolina desse sinal de
reserva.
Coitado do Lopes já se foi, já há muito que não está
entre nós, foi um ar que lhe deu, inda o lembro metendo a tampa da
esferográfica nos buracos dos incisivos, que tinha cariados e nem o deixavam
assobiar por o ar se lhe escapar literalmente por entre os dentes como a água
se nos escapa entre os dedos.
Até que um dia, maravilha das maravilhas, me
começaram a chegar tampas atrás de tampas, cada uma com um escritinho, uma
mensagem, e do outro lado um náufrago, a Bárbara afogando-se e gritando por
mim, uma tampa um grito lancinante, eu desesperado, diria aflito, temendo ser
arrastado por ela aos abismos, às negras profundezas dos abismos em que as
primas eram vezeiras e useiras em afundar e resgatar-me, e a Bárbara aflita, e
cada tampa um SOS, eu temendo aventurar-me naquelas águas revoltas até soçobrar
um dia,
um dia inesquecível, o dia em que para segurar o
sutiã nos socorremos de uma tampa atravessada na fivelinha como uma tranca, e
desde esse dia me ficou um complexo de inabilidade com os sutiãs, desde que
partíramos aquele no ímpeto do resgate que nenhum outro cedeu aos meus dedos
nem aos meus desejos, e daí esta aversão a fivelinhas e colchetes, este trauma
que volta não volta me leva a roer a mordiscar perdido de nervos desde as
tampas das canetas e esferográficas ás cabeças dos lápis,
interrogo-me por que carga de água não têm os sutiãs
fechos de imanes, fáceis, descomplexados, passe a segunda intenção, facilmente
ajustáveis, adaptáveis, e isto deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando
a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica roendo a tampa de
uma caneta, que levo aos ouvidos maquinalmente despoletando de forma inata o
tal reflexo instintivo de nojo, cuspindo da ponta da língua uma imaginada bola
de cerume, e, quem diria, bola que me levou a pensar que, quando rapaz,
arrancando os macacos do nariz os rebolava entre os dedos até moldá-los numa esfera
bem redondinha e, servindo-me do dedo médio como mola, chutava essa bolinha
disparando-a pressionada contra o polegar, para cima de algo ou de alguém,
rindo sátiro e mordendo raivosamente uma tampa, bendizendo a hora em que o
plástico foi inventado…
P.S. –Após a conclusão do texto fui informado haver
já sutiãs com fechos e ajustes de feltro, o que agradeci solenemente, ainda que
não me adiante muito, cavado fundo que está o meu trauma e eu, cinquentenário, embora
tenha agora o vagar e a paciência que dantes não tinha, deva ser franco e
aceite faltar-me oportunidade e vontade para me debruçar criticamente sobre tão
prestimoso melhoramento ou invenção.
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