segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

000221 - CONTRATEMPO EM XANGONGO ............


             Levantara-me com cuidado para não a acordar, dirigira-me como um sonâmbulo à cozinha, boca seca, tal qual numa ressaca, mas nesse dia não, nesse dia era mesmo só sede, nem acendi a luz, uma fraca luminosidade coava-se pelos buraquinhos do estore, talvez seis da matina, porque às sete, hora a que ela automaticamente acordaria, não seriam buraquinhos de luz coada, antes estrelas luminescentes que o sol, batendo em cheio na janela, imprimiria naquela espécie de cartão perfurado *

Encolhi-me ante o bafo de ar frio quando abri a porta do frigorifico, que me atingiu como uma chapada, lembro-me de nesse momento ter apertado uma perna contra a outra sustendo uma súbita e impertinente vontade de mijar para depois, num repente, todas as pressas me passarem bloqueando-me, hesitante quanto ao pacote a escolher, sumo de laranja ou sumo de maçã ? Gostava igualmente de qualquer deles, ambos me dessedentariam por igual e estariam igualmente frescos, porquê então a minha hesitação ?

Foi quando nos lembrei num pomar de laranjeiras, inebriados pelo doce aroma das suas flores e dos sonhos que partilhávamos, em que eu, um eleito no paraíso, e tu uma das setenta e duas virgens que me estariam prometidas

Vivi o auge da revolução dos cravos alheado, atravessei-a convalescente e convalescendo no hospital militar da Estrela, em cujos jardins repeti, dia após dia a marcha que me fortaleceria, ante o olhar nem sempre desinteressado das sábias alunas das várias especialidades de enfermagem fumando às escondidas nos intervalos da labuta, camufladas nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede a que se aconchegavam buscando o sol quentinho dessas manhãs primaveris

Voltei a mim com o grito imperativo e aflito do cabo boticas para o grupo de busca

- Deixem-no comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !

Retomei a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso

- Não temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas, já vem um héli a caminho

Forcei-me a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor, a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...

- Eu já vos fodo todos  filhos da puta pretos dum cabrão !

E num segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em que derramaram os cantis

- Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os outros baixem-se e dêem-nos cobertura !

Recordo o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos fixos em mim, ouvido no meu externo escutando-me, a pressão de um dedo na carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto

- A direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !

Duas mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro prateado, um sorriso, baixou, três sacudidelas antes de pousado no pano bordado da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma jarra com rosas do deserto, linho, lençóis de linho branco

Bruscamente uma mão no ombro

- Como te sentes hoje filho ? Há dois dias que não davas acordo ! Tens fome ? Tens ? É bom sinal ! Vais rir-te desta ! O pior já passou, agora são sopas e descanso, muito descanso

Tudo em meu redor soava a branco do tecto à cama, como irrepreensivelmente brancas eram a touca, a farda, as meias, o sutiã, as rendinhas

Reaprendi a andar naquele jardim em que dia a dia repetia a marcha e me fortalecia, primeiro amparado nela que cheirava a flores de laranjeira, depois abraçados e escondidos nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede onde nos aconchegávamos apanhando sol, mimando-nos nas manhãs quentinhas duma primavera em que conheci o paraíso e ela uma das setenta e duas virgens que me estariam destinadas, ou prometidas, e em cujos seios e regaço me embalou todos aqueles meses de sonho e maravilhoso encantamento

À distância de quatro décadas é-me permitido um balanço. Setenta e duas virgens são manifestamente um exagero, mas seja ou não a minha vida um conto de fadas jamais deixei de as encontrar no caminho, a primeira na paróquia da senhora da Saúde, a segunda em Angola, no Xangongo, perdida na Picada de Kangamba, a sul do Cunene, bem dentro do Kalahari, onde eu a esperava enregelado junto a uma Velvechia com mil anos, (Welwitschia mirabilis), essa flor rara do deserto, tão rara quanto a fada madrinha que me salvou, estarei também fadado pra viver mil anos ?

A terceira fada encontrá-la-ia na Estrela, e por aí adiante, por isso tremi primeiro e sorri depois ao perguntares-me o porquê da minha queda por enfermeiras, ou queda ou paixão, ou simpatia, empatia no mínimo, (deixa-me esclarecer que neste teu conceito de “enfermeira” meti tudo quanto usa uma imaculada e respeitável bata branca, técnicas, médicas, etc) porém a tua pergunta não era inocente e percebi-a logo, naturalmente não desejo a ninguém que viva algumas das situações que vivi, já quanto a outras, lamentarei sim que as não tenham vivido, vivam ou venham a viver

De qualquer modo obrigado por me fazeres desenterrar tão gratas recordações. 

Claro que escolhi o sumo de laranja. A vida é uma dádiva

Cependant, aujourd'hui, je suis Charlie ...

* Nota : às sete em ponto a minha gata acordou, como sempre. 

                   http://youtu.be/mrVjgkKNU44?list=RDmrVjgkKNU44 

                  O Pomar                      Das Laranjeiras

Madredeus

Jurarei
Eterno amor
Saudades
A vida inteira
Ao nascer do sol
No pomar das laranjeiras
E se o dia
Não vier
Voltarei
De qualquer maneira
Só para te ver
No pomar das laranjeiras
É tão grande
O meu amor
Foi assim
Logo a primeira
Só será maior
No pomar das laranjeiras

+ ver também: http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

220 - DUELO DE SAUDADES ..............................


Olhámo-nos nos olhos, demoradamente, mirámo-nos de alto a baixo, detalhadamente, expectantes, como dois adversários num duelo, prontos a disparar ao primeiro movimento ameaçador do outro

Medi-o à lupa, o olhos fundos de alecrim foram o primeiro indício, apurei os sentidos e notei-lhe um cheiro inda que leve a flores de giesta, afrouxei os músculos como quem afasta as palmas dos coldres prometendo calma e, com mais vagar observei-lhe os ombros largos, que vestiam uma camisa branca sem colarinho, o peito era franco, como o dos cantadores do cante, os braços compridos, bons pra sementeira dos alqueives e as mãos brancas, rugosas, de dedos compridos lembrando-me alguém que vira descascando a riqueza dos sobreiros

Cada um recuou um passo, hesitante, temente, sem perder o nexo à distância que garante a confiança, foi aí que ele falou para mim

- Bem, na verdade não falou, balbuciou qualquer coisa que demorei a entender devido à pronúncia afrancesada

Mas pelo ar limpo, o cabelo de melenas desgrenhadas, os botins mal amanhados, a fralda por fora da camisa, parecia-me ser ele, há quanto tempo nos não víamos, trinta e tal ? Quarenta ? Ah ! E o nariz aquilino ! E as patilhas? As patilhas !

Voltei a mirá-lo. Magro como um cão, maçãs do rosto sumidas, pele branca, todo ele branco, na boca um sorriso e, desenhando-se-lhe cristalinamente nos olhos, duas planícies !!

Era ele ! Era impossível não ser ele !

Foi então que chegou perto do fim a fita que, no subconsciente se me desenrolava vertiginosamente, flashes, avanços, recuos, pausas, reset, dizem-me que na hora da morte vemos o mesmo filme, não sei, neste só ele, ele e eu, o passado correndo impetuoso na bobine, trazendo ao presente tudo que gravara, ele e os braços compridos de semeador, as botas caneleiras descuidadas, a calça de ganga desbotada, o cinto de fivela à cowboy, os cabelos pelos ombros, a pasta do portfólio, o autocolante nela em laranja fluorescente “MAKE LOVE NOT WAR”, e os pincéis !

Sim isso os pincéis !

De imediato lhe mirei as mãos, os dedos de artista, as unhas, roídas e aparadas mas cada uma suja de sua cor, de acrílico, aguarela, guache, óleo, em cada uma um fino traço de sujidade denunciando-o

Era ele ! O Délio !

Levantei os braços e avancei sem dúvidas nem restrições, descurei as armas, esqueci os coldres os revólveres e o cinturão das munições, ergui os braços como quem larga os cuidados, abri as mãos como quem esquece a enxada, a foice, o martelo, a bandeira, abracei-o com vontade e senti nas minhas costas as suas manápulas, ainda o abraço não tinha começado e já as línguas se desatavam na ânsia de pôr em dia quarenta anos de escrita

- Sabia que tinhas ido para França

- Sabia que não morreras na Namíbia

- Sabia da tua passagem por Argel

- Sabia que casaras com a Luísa

- Sabia que estiveras cá em 74

- Sabia-te à esquerda ainda navegas nessas águas ?

- Soube que te andavas casando todos os meses eheheheh

- E não havia net faria se houvesse… Almoçamos no Narda ?

- O Narda já acabou

- Vamos a Reguengos !

- Vamos antes ao Redondo !

- Lembras-te daquele professor de francês meio marado e barbudo que tinha um dois cavalos ?

- O que era coxo ? O Artur, ou Raúl ou Saúl ? Se lembro ! Se aprendi bem francês a ele o devo ! Agora deve ser um tipo para a nossa idade, teria o quê ? Mais cinco ou seis anos que nós ? Estivemos vai que não vai para ir com ele num passeio a Marrocos recordas-te ? E as tuas pinturas ? Ainda continuas na onda psicadélica ?

E rimos os dois a bom rir, rimo-nos muito, pusémos em dia quarenta anos de riso atrasado, e fomo-nos ao vinho branco de Redondo, gelado, e ao tinto de Reguengos, corrente, e aos queijos e linguiça assada, à cabeça de xara, aos secretos grelhados, ao polvo de vinagrete, às sardinhas em escabeche, empanturrámo-nos de pezinhos de porco de coentrada, alambazámo-nos com a sopa de cação e a rechina com rodelas de laranja que é o tempo dela, telefonámos á família e aos amigos e pela hora do lanche já eramos quase uns vinte em roda da mesa, que nos contei como faria qualquer escrivão da puridade enquanto ele me contava da França, do Benelux, da tenda ou bancada, da banca é o mais correcto, da banca que tinha no Marché Aux Puces, o Mercado das Pulgas em Paris

- Comprei lá há muitos anos o “Quadrophenia” um duplo álbum dos Who que não tinha saído cá, andava por lá vadiando com a Luisinha, bela música ! Uma bomba !

Abandonara havia uns vinte anos a pintura, contou-me. Já ninguém comprava arte aos novos artistas, fora algumas vezes convidado a falsificar pintores famosos mas recusara, não era a cena dele embora tivesse sido fácil, pintava cenários e publicidade para teatros e cinemas, aderira forçado à moda do design comercial como me disse a rir, estava cá há umas quatro semanas e já sondara “o mercado”, tivera esperanças de ficar mas tudo o aconselhava a voltar, já não havia em Portugal lugar para a publicidade de exteriores disse-me cabisbaixo

- Nem isso nem empresas nem teatros nem cinemas respondi-lhe eu, se te safares só em Lisboa ou no Porto e bái bái…

- Estive duas semanas em Lisboa em casa da mana Olinda, não dá, rendas caras, tintas caras, pincéis, telas, tudo, nem uma promessa de trabalho consegui, acho que isto está pior do que quando daqui me fui há mais de 40 anos

- A quem o dizes Délio !

- Não vale a pena, vou voltar, ainda bem que não me desfiz de um estúdio que tenho lá há bem mais de dez anos

Entretanto e sem que tivéssemos dado por isso caíra a noite, um grupo de cantadores entrou em surdina entoando as Janeiras e inadvertidamente dei por mim cantando-as, de braço dado com a Luisinha que adora o cante alentejano e me desafiara. Metade de nós acompanhava o grupo quando me apercebi que o serrabulho era demasiado e a Gabi confundira o rosé de Borba com o Bordeaux, de que era amante, e exagerava, ou sumíamos depressa dali ou alguém teria que a levar em braços ou ao colo até casa, nem seria essa a primeira vez, nem a quinta ou sexta, aguentava pouco e como estava era uma questão de tempo

Quando acabámos a desarrumação acusava a “luta”, garrafas de Poejo, Fedrisco, Anis, Medronho e Ginginha enchiam a mesa, os pratos dos doces conventuais e os copos vazios exalavam um olor adocicado a álcool que os cafés fortes não dissiparam

Desde os cantadores que o convidado virava a cara revirava os olhos e torcia o nariz enjoado, estranhei, pensara o Délio um saudoso amigo das tradições e disse-lho

- Tradição o caralho pá, não os vi mas soube que estiveram cantando em Paris na semana em que me vim embora pra cá, só palhaçadas, só temos jeito pra palhaçadas, mais valia que aplicassem o esforço em coisas que desenvolvessem o país

Embatuquei, desci duas notas o volume do meu cante, não fosse ofendê-lo porque entendi a sua negação, na verdade o país que o rejeitava pela segunda vez continuava alegre e inconscientemente em festa…   

      https://www.youtube.com/watch?v=CPbylKVCDAk&feature=youtu.be



quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

BALANÇAS AVERY * por Maria Luísa Baião...........


Numa aldeia perdida do nosso Alentejo, um destes dias, em viagem de recreio, sábado, entrei numa antiga mercearia. O espaço era ainda como os que dantes nos bairros de Évora se viam, dividido entre mercearia e taberna.

Hoje, sabemo-lo, todas as tabernas viraram cafés, os copos de vinho foram trocados por bicas, e nem vemos já o chão coberto de serradura ou aparas de madeira escondendo beatas e cuspidelas, estas últimas coisa em que há muito e felizmente, deixámos de ser exímios.

O curioso da história nem são os ovos do campo, queijos, enchidos e outras iguarias de que me abasteço regularmente, todas sem conservantes, aromatizantes ou corantes, mas que fazem as delícias de uma mesa, em especial quando as visitas abancam em minha casa.

Ainda guardo na despensa um pote de azeite, na garagem garrafões de vinho a granel e deixo os queijos a “marinar” empapados em panos embebidos no nosso ouro fino de oliva. Abandonei há muito por falta de espaço e serventia a salgadeira, mantenho todavia o hábito de guardar a “espiga” não vá o diabo tecê-las, e a seu lado penduro cebolas, alhos, orégãos, louro em rama e o alecrim que constitui o meu segredo no coelho à caçador.

A história de hoje gira à volta do espaço central do balcão de madeira dessa velha mercearia. Alva, em esmalte branco, como o eram, apesar dos certamente muitos e muitos anos que acumula, dominando como um centro de mesa, uma velha balança Avery de dois pratos.

Desconheço se a marca é ainda fabricada, há mais de trinta anos que nenhuma via, hoje tudo vem embalado, higienizado, calibrado, catalogado, normalizado, pesado, e em vácuo na maior parte das vezes.

Balanças nem vê-las e quando tal, são impessoais, espectaculares e digitais. Um toque e dão-nos o valor, a data e hora da aquisição, o peso e o custo, vomitando etiquetas autocolantes enquanto nos piscam uns números verdes ou vermelhos iguais em todo o mundo.

Das balanças Avery guardo a doce recordação do leite em pó que, numa garagem, as senhoras da Cáritas ou da Paróquia, distribuíam pela população. Leite em pó do melhor que até hoje vi, manteiga branca, de sabor incomparável, e queijo flamengo ou uma espécie disso, tirado de latas novas de brilhante cromado, talvez de cinco quilos cada uma.

Em cerca de trinta anos passámos das parcas compras na mercearia, cujo valor era genericamente apontado em caderninhos de deve e haver saldados ao fim do mês, saltámos, dizia, para a paródia de filas e atropelos nos hipermercados, cujos carrinhos enchemos até mais não poder e pagamos a pronto com um dos muitos cartões que retiramos da carteira.

Nem tudo irá mal, pelo menos para a maioria, a minoria esconde-se, e escondemo-la. Pois minhas amigas, era assim no tempo da outra senhora, no tempo daquele que há pouco e nem sei com que saudades, ganhou discutível concurso televisivo.

Como o tempo e as coisas mudaram. Hoje acotovelamo-nos para encher mais o carrinho que o vizinho, dantes faziam-se fileiras para receber o leite em pó, a manteiga e o queijo que nos chegavam como oferta do povo americano, oferta desinteressada do grande Satã.

Quantas de nós se lembram dessas noites em garagens e sacristias um pouco por todo o país ? E no meio de uma grande mesa, nessas noites de dádiva e partilha, sempre a branca e alva balança Avery, que me ficou na memória, como ficaram os filhos ranhosos e descalços de muitas mães e que hoje, melhor ou pior, vão de carro ao supermercado.

Como tudo mudou. Mudámos nós, mudou o país, mudou o mundo e mudou o grande Satã, parecendo continuar a não querer dar a ninguém motivos de reconhecimento e nisso fazer gala. Às vezes penso se a miséria terá diminuído na directa razão do aumento da estupidez, da prepotência e da malvadez ou egoísmo.

Não sei se ainda existem, se produzem, fabricam ou vendem balanças Avery, talvez em remotos países do mundo onde a caridade é ainda a única esperança. Ignoro a existência de alguma correlação entre dignidade e balanças Avery, ignoro. Ignoro se entre as balanças Avery e a iniquidade haverá algum elo macabro.

Sei somente que, numa aldeia remota do nosso Alentejo, existe ainda uma balança Avery e, por indução de ideias, acredito que no interior deste país que discute opas, otas e tgv’s, talvez persistam ainda demasiadas balanças Avery e quem, sem presente nem futuro, dependa do trabalho desinteressado de muitas fadas caridosas da Cáritas e das Paróquias, e isso, provoca-me um mal-estar compreensível, um sentimento indizível de revolta e indignação, mas também a certeza do muito a fazer e uma vontade sobre-humana de participar, contribuir para que este tipo de balanças não mais seja visto entre nós.

*Texto  de Maria Luísa Baião publicado in Diário do Sul –  rubrica “Kota de Mulher“ 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

219 - NATAL, O POSTAL DA ALDA ……………


Era já crescido quando visitei a Suíça, talvez vinte, ou à volta disso. E visitei-a no verão, pelo que me escaparam os alpes gelados, os chalés cobertos de neve, as coníferas resplandecentes de ramos carregados de cristais de gelo e todo o mistério do Natal que arrasto desde a infância. Valeu-me a irreverência da Luisinha, por aquela época tão irreverente (perdão pela redundância), quanto as cabras monteses, logo ali ao estender da mão, nos prados verdes, e a minha proverbial bonomia de alentejano. O acolhimento da Brigite e do saudoso Quim da Cruz (falecido há um mês) completaram o postal que naquele longínquo verão trouxe de Emmenbruck e de Luzern.

Mas o postal da Alda despoletou em mim recordações muito mais antigas, atrevo-me a dizer que mais vívidas, pelo menos as poucas que de tanto natais ainda guardo, já que somente essas ficaram, como num Natal em que presenteei o meu filhote de 5 ou 6 anos com uma soberba bicicleta de corrida, azul metalizada, de que eu tanto gostara. Leram bem, eu, de que EU gostara. Claro que o miúdo sorriu, um sorriso amarelo, e meteu-a de lado até que mais tarde a trocámos por uma outra de que ele gostou, ele. ELE.

Não nevava na minha infância, quando muito caíam geadas de morte que deixavam no tanque da horta e nas poças uma fina pelicula de gelo, límpida, transparente, nas quais por vezes pegávamos com os dedos nus e comíamos como se fora uma bolacha americana. Não havia geada nem gelo que entrasse connosco, acho que até calções usávamos em pleno inverno.

Não havia neve mas havia lama, muita lama. O autocarro avançando deixava nela sulcos que nos davam até aos joelhos, e poças fundas, largas, de uma água barrenta e suja que contudo formava inexplicável e fina camada de gelo, fina como o vidro, que nos entretínhamos partindo saltando-lhe em cima aos pés juntos.

Num qualquer Natal ficara para mim na chaminé um carro dos bombeiros. Ainda hoje o recordo tal qual era, de um vermelho vivo em plástico, sobreposta ao comprido dele e de um branco mais branco que a neve a enorme escada extensível, puxava-se e de dentro dela saía outra duplicando-lhe o alcance, e que dizer das rodas meu Deus ! Uns pneus vigorosos, de rastros cruzados ! Havia lá lamaçal que prendesse o seu caminho !

Mas que tinha afinal o postal da Alda que tanto me impressionou e tantas memórias avivou ?

Magia.

Somente a magia do Natal.

De todos os natais, da excitação da noite que o antecede, do não adormecer cuidando de ouvir o Pai Natal descer, do acordar de manhãzinha em sobressalto e sumir-me para a chaminé, abrir todos os presentes ao mesmo tempo e encher a boca de rebuçados e chocolates à bruta, esquecer o pequeno-almoço e correr para a rua ignorando o frio, brincar com os demais, admirar o que ganharam, morrer com inveja de uns e provocá-la noutros, até acalmar e regressar a casa e às caixas em folhinha que escondiam os melhores rebuçados bombons e chocolates, as que vinham das tias, e é aí que regressamos ao postal da Alda, gravado nas latas de bombons e chocolates dos meus natais e que guardei durante anos só as abandonando ao sair de casa para me casar.

Estampada nessas caixas de lata estava toda a magia que em criança me habitara, a neve, as montanhas, o céu azul, o amor das tias, a tia Benilde, solteira e tardia, que talvez exorcizasse em mim a maternidade que via fugir-lhe por ter ficado sempre solteira, a tia Tina, que por essa época estava noiva e cujos carinhos me foram sempre caros. Era nessas estampas, nas tampas, que se podiam ver as paisagens que eu mirava e remirava tempo sem fim, abrindo as latas com cuidado, comendo-lhes os chocolates com parcimónia mas que racionava com acrimónia e em cujas palhinhas fofinhas repousavam doces maravilha onde, prolongando o prazer, enterrava os dedos numa gulodice desmedida em busca de cada bombom. Latinhas que depois escondia como sendo o Tesouro do Barba Ruiva, como se não conhecessem os meus pais e irmãos todos os cantos à casa.

Curioso que nada mais lembre do Natal que não esta magia encantada, nem almoços, nem jantares, nem o Ano Novo ou os festejos da sua passagem recordo. Recordo sim estas caixas, estas latas de folha, prenhes de palhinhas de papel e chocolates, as sombrinhas coloridas que me pintavam a boca de castanho e comia à dentada, os coelhinhos de papel de prata arrancada com pressa, os pais natais ocos forrados de papel vermelhinho com estrelinhas, os pequenos bombons multicoloridos do tamanho de cerejas, a geada branca, o gelo transparente, a lama da rua, quilómetros de lama, a ribeira que corria cheia arrastando laranjas do pomar da quinta do Menino de Oiro e cujas águas enfrentávamos de calções arregaçados, num equilíbrio perigosíssimo para as apanharmos.

O Natal pra mim são todas estas recordações, lembro o sempre enfurecido Rim Tim Tim e a Violeta de pelo bronze, o canavial por trás da casa bordejando o quintal, a extensa vereda para o tanque, o limoeiro grande a meio caminho, a vacaria, a cancela do portão onde me balançava para cá e para lá, a vereda acompanhando a rua e por onde caminhávamos, a fim de evitar caír na lama até à paragem do autocarro, onde todos os dias como um relógio descia o Bolas para namoriscar a Ricarda, os homens sentados no murete do Granja, pavões lindos na quinta do Sacramento, o click das latinhas da campanha do gás Mobil e que andavam nas mãos de toda a gente, a mesa cheia de postais da Luzévora que todos ajudávamos a preencher para enviar as Boas Festas à clientela, a mãe trazendo um bolo-rei enorme dos da Pastelaria Violeta, toda a gente de roupas novas, uma vez ganhei umas luvas de lã, vermelhinhas como sangue e que adorei e usei até ficarem rotas, noutro Natal um blusão de cabedal herdado do Nito e que me ficava curto nas mangas, o professor Pulga antes de irmos de férias enfeitara a sala com a ajuda de todos nós, o Proença levara musgo para o presépio, sim esse, reformou-se há meses da UGT, era meu parceiro de carteira, a D. Bia montara ao lado dos Reis Magos uma mesa e repartiu um gigantesco bolo antes de irmos de férias, e pronto já estou emocionado sou um coração de atum.

Pelo que o melhor é aproveitar esta comoção e desejar-vos umas sinceras Boas Festas e em especial um Ano Novo cheio de propriedades e prosperidade, e já agora pedir ao Senhor que proteja a minha família e a Malala, e que descarregue uma maldição e fulmine todos os talibãs e se não for pedir muito, lembra-te Senhor que nada te peço há mais de trinta anos, por isso era só esturricares mais uma dúzia ou duas, nada Te custaria, com o mesmo incómodo podias arrumar o Cavaco, o Marcelo, o Berlusconi, o Coelho, o Soares, a Maria Luís, o Costa, o Marco António, o Portas, o Menezes, o Sócrates, o Schauble, o Barroso, o Juncker. A Merkel, e a Troika ! Não esqueças a Troika Senhor que se esta malta que me lê não vê aqui um pedido pra linchar a Troika apesar dela não ter culpa pela nossa estupidez mata-me, como bons cristãos que são irão crucificar-me, portanto Senhor carrega forte e feio na Troika que Te juro fidelidade até ao fim dos meus dias Senhor !

P.S. – Perdoai-me Senhor a arrogância demonstrada, estava possuído de rancores Senhor, só mais uma cunhazita Senhor, aqui na minha rua poderias abençoar as vizinhas Cândida Cerqueira e Guiomar Batarda que estão em boa idade e é um gosto vê-las Senhor, quanto aos outros faz como entenderes, que só me estorvam e ocupam os lugares de estacionamento, sem nenhum respeito pelo facto de eu morar aqui e até frente à minha porta pararem quando moram a mais de vinte metros de distancia,, e nem os cães me desviam da porta, de tal modo que desconfio virem pô-los a cagar aqui de propósito só para me desatinarem, pelo que fico indiferente às Tuas acções Senhor, mas esperançado que saibas fazer cair sobre eles uma chuva de enxofre que lhes queime as pinturas dos carros e os cegue, e já é pedir pouco porque quando olho para o que fizeste em Sodoma e Gomorra fico meditando e hesitando quanto seria demais pedir-Te isso ou um diluvio…




domingo, 28 de dezembro de 2014

218 - D. CARMINHA UMA LATA DE QUEIJO, MUITA DEVOÇÃO E UM MUSTANG P 51...


Tremendo, D. Carminha gritava por mim apavorada e ferrada ao escadote. Larguei de imediato os brinquedos e pronto lhe acudi segurando-o firmemente, ao erguer a vista deparei-me com as suas pernas longas, brancas como o mármore do altar, de um branco leitoso, encimadas por umas cuecas mais brancas ainda de onde sobressaía o rendilhado em filigrana, igualzinho ao das irmãs Doroteias e que eu sabia o padre Tiago detestar, por uma vez o ter visto arrancar-lhas à força sem que a D. Carminha tivesse dado um pio sequer.

Empoleirada no escadote decorava a improvisada igreja do bairro onde eu vivia em criança, com folhas de palmeira, fitinhas coloridas e balões em papel. Estávamos na novena, D. Carminha capitaneava um grupo de bem-intencionadas benfeitoras, cuja beatitude as levava a dedicar muito do seu tempo às famílias pobres do bairro operário do Salvador, o único lugar da cidade que se poderia gabar de uma equipa de voluntariado assim, onde militavam num propósito comum as mais prendadas e caridosas senhoras.

Sorridentes e devotas organizavam e comandavam o exército de pobrezinhos da paróquia, especialmente em datas como esta, de festa, ou nos dias em que a caminheta da Legião Portuguesa vinha descarregar as ofertas dos United States of América, dias em que os homens eram escalados para descarregar e as mulheres se dedicavam a limpar e decorar a pequena e improvisada igreja a que o padre Tiago a D. Carminha e o seu exército de almas carinhosas davam vida.

Arrastando os meus carrinhos de lata e os modelos à escala da Corgi Toys e da Western Models pelos compridos bancos da igreja eu sentia e vivia todo este clima de festa e de emoção, atrevo-me até a dizer de competição. No dia da dádiva de bens alimentares era visível em todos nós o empenho e o orgulho em relação às outras paróquias e aos outros bairros. Hoje sorrio de ironia, na época achava que ninguém tinha tantas voluntárias da Cáritas, da Misericórdia, do Movimento Nacional Feminino, das Escravas de Maria, ou das Doroteias como nós, nem tão boas como as nossas, quero dizer tão bonitas, e perfumadas, e por essa ordem de ideias nem tantos pobres nem tão miseráveis quanto o éramos no bairro do Salvador.

Gosto de patê de sardinha, e antes de cada almoço só não me empanturro de o barrar no pão faltando na mesa. Vem desses tempos longínquos o meu gosto por ele que, pressionado contra o palato me deixa aquela impressão de granulado miudinho, um pouco como as ovas de peixe, e me recorda ao passar-lhe a língua, arrastando-o, esses tempos em que dos USA vinham como dádiva embalagens e embalagens de manteiga de cor neutra, um pouco sonsa, mas que barrada no pão me proporcionava essa sensação do patê e das ovas, como as ovas.

A modesta igreja tinha vários anexos, a sacristia, também ela improvisada, onde o padre Tiago me surpreendera ao vê-lo insurgir-se contra as rendas em filigrana da D. Carminha, que num ímpeto rasgara sem que ela largasse um pio que fosse, aflita com falta de ar, e uma sala enorme, decerto a divisão mais antiga, pois nela inda se via uma manjedoura, agora servindo de prateleira para arrumações, portanto devia ter sido em tempos a cocheira da quinta do Sacramento. Pelo chão de terra ali se passeavam as galinhas, tantas vezes abafadas pelos galos, contudo cacarejando e intentando livrar-se deles, já a D. Carminho,  de nada parecia desejosa de livrar-se, nem da apneia induzida pelo padre Tiago e se era asmática ou não nunca cheguei a sabê-lo, mas adiante, divisão enorme esta e que nos dias de distribuição alimentar custava a albergar todos quantos aflitos com a vida ali acorriam, solícitos.

Também eu, no meio dos outros estendia as mãos ao alto na ânsia de um pacote de manteiga de cacau ou de amendoim, não lembro já, o barulho era ensurdecedor e somente recordo as mãos, muitas mãos ao alto, e a D. Carminho, e cada uma das senhoras da equipa, cuidando dos seus pobres, atentas, pressurosas, enxotando os que lhes não pertencessem, altivas no seu desprendimento, sisudas na sua beatitude, felizes na sua entrega à causa, mirando pelo canto do olho o padre Tiago e diligentes da sua aprovação.

Repentinamente um clamor ! Os homens carregavam e traziam as latas de 5 quilos de queijo flamengo vindas dos EUA, uma bênção, quilos de queijo alaranjado oferecido pela Cáritas aos pobrezinhos das senhoras do bairro, saboroso, gracioso, nunca eu comera queijo assim, ainda recordo o seu sabor, o sabor e as letras azuis, uma estrela grande, a águia em vermelho, estrelinhas brancas, como mais tarde veria na bandeira, muitas estrelas, as latas de queijo brilhantes como prata, como os aviões nos filmes da guerra do pacifico no cinema, reluzentes, apetecia-me tocar-lhes, toquei-lhes, e quando os meus dedos escorregavam pelas latas resplandecentes numa caricia e o padre Tiago se preparava para lhes furar o fundo com um punção alguém gritou :

- Não as furem se faz favor ! Preciso delas, precisamos delas ! São boas para tirar água do poço !  Não as furem !

Demorei anos a perceber aquele homem, decerto até aos meus doze, ou treze, e a Dra. Escária Santos nos explicar a pressão atmosférica, o peso e a densidade do ar, a sua omnipresença, as pressões a as altitudes, a coluna de mercúrio e a experiencia de Torricelli, os barómetros, a adivinhação do tempo, as altas pressões e os anticiclones.

Só então percebi a irritação do padre Tiago e o porquê do queijo não querer sair das latas mesmo que abertas, mesmo que viradas ao contrário, não saindo apesar das pancadas e o milagre do furo que afinal ninguém lhes fez.

Até que um dia, sem aviso, tudo se acabou. Os homens falavam excitados ao balcão da taberna do senhor Saúl, tanques, cravos, mfa, espingardas, liberdade, eleições, o meu pai não saiu pra trabalhar nesse dia, solidariedade, soldados unidos jamais serão vencidos, pão paz habitação, pessoas aos magotes na rua, o senhor Saúl bebendo e brindando com os outros homens, nesse dia nem uma única vez puxou do chicote para enxotar os cães, nem para nos enxotar a nós.

Havia uma nova epifania na cidade. Sem aviso tudo acabou, as senhoras, a equipa, a manteiga, o queijo flamengo, o padre Tiago, o leite em pó que eu tanto adorava comer à guloseima e de boca cheia, às colheradas, até as novenas se acabaram, e o terço e as missas.

Passados poucos meses cruzei-me com a D. Carminho, carregava olheiras, os cabelos desalinhados, imagino que ainda tivesse a pele branquinha que tanto me impressionara e as rendinhas em filigrana como a minha mana feminista então se gabava de também usar, ainda que tirasse o sutiã, pra se libertar dizia ela.

Cresci, mudei o vocabulário, patronato, luta, greve, opressão, saneamento, ocupação, liberdade, povo, num ápice os heróis judeus passaram a vilões na guerra do médio oriente, e os americanos de combatentes da liberdade a fascistas capitalistas que tiveram que abandonar com o rabo entre as pernas o glorioso Vietname, fugindo das forças progressistas e libertadoras do vitorioso povo indochino que desferiu a machadada final no explorador ocupante e no opressor exército fascista capitalista dos EUA.

Acabei de ver há momentos pela 4ª ou 5ª vez o Império do Sol, de Steven Spielberg, deliro quando já perto do final do filme vejo passar frente aos olhos do jovem protagonista o Mustang P 51 com as cores dos States, as mesmas cores que vi há tantos anos nas latas reluzentes de queijo flamengo. O piloto acenando, sorrindo por trás da carlinga aberta, o motor rugindo, a fuselagem brilhando ao sol nascente daquela manhã libertadora.

Aqui, na terra aonde vivo, até das janelas e portas das casas em alumínio, apesar de proibidas na cidade eu gosto, e vocês ?