Numa
aldeia perdida do nosso Alentejo, um destes dias, em viagem de recreio, sábado,
entrei numa antiga mercearia. O espaço era ainda como os que dantes nos bairros
de Évora se viam, dividido entre mercearia e taberna.
Hoje,
sabemo-lo, todas as tabernas viraram cafés, os copos de vinho foram trocados
por bicas, e nem vemos já o chão coberto de serradura ou aparas de madeira
escondendo beatas e cuspidelas, estas últimas coisa em que há muito e felizmente,
deixámos de ser exímios.
O
curioso da história nem são os ovos do campo, queijos, enchidos e outras
iguarias de que me abasteço regularmente, todas sem conservantes, aromatizantes
ou corantes, mas que fazem as delícias de uma mesa, em especial quando as
visitas abancam em minha casa.
Ainda
guardo na despensa um pote de azeite, na garagem garrafões de vinho a granel e
deixo os queijos a “marinar” empapados em panos embebidos no nosso ouro fino de
oliva. Abandonei há muito por falta de espaço e serventia a salgadeira,
mantenho todavia o hábito de guardar a “espiga” não vá o diabo tecê-las, e a
seu lado penduro cebolas, alhos, orégãos, louro em rama e o alecrim que
constitui o meu segredo no coelho à caçador.
A
história de hoje gira à volta do espaço central do balcão de madeira dessa velha
mercearia. Alva, em esmalte branco, como o eram, apesar dos certamente muitos e
muitos anos que acumula, dominando como um centro de mesa, uma velha balança
Avery de dois pratos.
Desconheço
se a marca é ainda fabricada, há mais de trinta anos que nenhuma via, hoje tudo
vem embalado, higienizado, calibrado, catalogado, normalizado, pesado, e em
vácuo na maior parte das vezes.
Balanças
nem vê-las e quando tal, são impessoais, espectaculares e digitais. Um toque e
dão-nos o valor, a data e hora da aquisição, o peso e o custo, vomitando
etiquetas autocolantes enquanto nos piscam uns números verdes ou vermelhos
iguais em todo o mundo.
Das
balanças Avery guardo a doce recordação do leite em pó que, numa garagem, as
senhoras da Cáritas ou da Paróquia, distribuíam pela população. Leite em pó do
melhor que até hoje vi, manteiga branca, de sabor incomparável, e queijo
flamengo ou uma espécie disso, tirado de latas novas de brilhante cromado,
talvez de cinco quilos cada uma.
Em
cerca de trinta anos passámos das parcas compras na mercearia, cujo valor era
genericamente apontado em caderninhos de deve e haver saldados ao fim do mês,
saltámos, dizia, para a paródia de filas e atropelos nos hipermercados, cujos
carrinhos enchemos até mais não poder e pagamos a pronto com um dos muitos
cartões que retiramos da carteira.
Nem
tudo irá mal, pelo menos para a maioria, a minoria esconde-se, e escondemo-la.
Pois minhas amigas, era assim no tempo da outra senhora, no tempo daquele que
há pouco e nem sei com que saudades, ganhou discutível concurso televisivo.
Como
o tempo e as coisas mudaram. Hoje acotovelamo-nos para encher mais o carrinho
que o vizinho, dantes faziam-se fileiras para receber o leite em pó, a manteiga
e o queijo que nos chegavam como oferta do povo americano, oferta
desinteressada do grande Satã.
Quantas
de nós se lembram dessas noites em garagens e sacristias um pouco por todo o
país ? E no meio de uma grande mesa, nessas noites de dádiva e partilha, sempre
a branca e alva balança Avery, que me ficou na memória, como ficaram os filhos
ranhosos e descalços de muitas mães e que hoje, melhor ou pior, vão de carro ao
supermercado.
Como
tudo mudou. Mudámos nós, mudou o país, mudou o mundo e mudou o grande Satã,
parecendo continuar a não querer dar a ninguém motivos de reconhecimento e
nisso fazer gala. Às
vezes penso se a miséria terá diminuído na directa razão do aumento da
estupidez, da prepotência e da malvadez ou egoísmo.
Não
sei se ainda existem, se produzem, fabricam ou vendem balanças Avery, talvez em
remotos países do mundo onde a caridade é ainda a única esperança. Ignoro a
existência de alguma correlação entre dignidade e balanças Avery, ignoro.
Ignoro se entre as balanças Avery e a iniquidade haverá algum elo macabro.
Sei
somente que, numa aldeia remota do nosso Alentejo, existe ainda uma balança
Avery e, por indução de ideias, acredito que no interior deste país que discute
opas, otas e tgv’s, talvez persistam ainda demasiadas balanças Avery e quem,
sem presente nem futuro, dependa do trabalho desinteressado de muitas fadas
caridosas da Cáritas e das Paróquias, e isso, provoca-me um mal-estar
compreensível, um sentimento indizível de revolta e indignação, mas também a
certeza do muito a fazer e uma vontade sobre-humana de participar, contribuir
para que este tipo de balanças não mais seja visto entre nós.
*Texto de Maria Luísa Baião publicado in Diário do Sul – rubrica “Kota de Mulher“