Ficara de borco sem dar acordo de si, o sangue empapando a terra numa mancha que alastrava demasiado rapidamente. Por isso lépido lhe acudi, esquecendo o folclore à nossa volta, o metralhar constante, os zumbidos sobre a cabeça, a terra pelo ar, tudo p’lo ar, o zunir da queda das granadas de morteiro, vertiginosa e fatal, a gritaria, o medo, os suores frios, a coragem, os relampejantes olhares e o flash de palavras de ordem trocadas, os sinais, os gestos, a rápida análise da situação e, quando me foi dado fogo de cobertura e protecção acerquei-me dele, virei-o e acudi-lhe.
Misturavam-se o sangue golfando, a terra vermelha, as tripas, sem que ali naquele lugar e momento algo ou alguém conseguisse garroteá-lo, vedá-lo, pará-lo. Era, seria, uma questão de minutos. Puxei-o para mim, descansei-lhe a cabeça no colo, afaguei-lhe, limpei-lhe e ajeitei-lhe os cabelos enquanto lhe dirigia palavras ternas, calmamente esperançado que ele me ouvisse e que, se acordasse, não desse pela contradição entre o caos em nosso redor e a doçura com que lhe falava.
Melhor talvez fosse já nem acordar mesmo, mas quem adivinha o minuto seguinte no meio duma confusão em que tudo muda a cada instante ? Se acordasse ter-se-ia apercebido não lhe restar qualquer hipótese, nem muito tempo. Apenas um istmo no lugar do rim direito o prendia ao hemisfério sul, o norte derretia-se a cada segundo, não tardaria e o degelo completar-se-ia, ele gelaria, eu recolheria as chapas e providenciaria um saco preto, grande, fecho éclair de cima a baixo. Um héli o levaria dali, nos levaria dali se sobrasse algum de nós.
Tínhamos pedido apoio aéreo e um hélicanhão, mas nem os Fiat’s com napalm nem o héli, e nós cada vez mais apertados, nós cada vez menos. Quem vai à guerra dá e leva e naquele dia estávamos levando uma coça, uma sova, o Gouveia não era o único em maus lençóis…
- Meu tenente não me abandone, sei estar
de abalada, chegou a minha vez, a minha hora, já sinto o frio tomando conta de
mim e não me sinto, da cintura para baixo não sinto nada, desta não escapo.
Ajeitei-o melhor no meu regaço e apertei
o braço em volta dos seus ombros.
- Diga à minha mãe que a amo muito,
toda a vida amei, e à Esmeralda que sempre foi o amor da minha vida, que a amei
tanto quanto pude, enquanto pude, e que vão para ela os meus últimos
pensamentos, é uma boa moça e corajosa, meu tenente zele por ela, faça por ela,
prometa-me que tudo fará por ela, que fará por ela o impossível.
Não tive tempo para lhe prometer nada,
nem ele me deu tempo. Nem eu podia prometer-lhe fosse o que fosse. Nem ele
sabia ter eu aprazado casamento com a Luisinha. Nem as mulheres se recomendam ou
trocam como uma peça da farda, uma fita de metralhadora, uma faca, uma pistola,
contudo o Gouveia nem foi dos que mais delirou. Era minha ordenança desde que
chegáramos ao Cunene e nunca lhe ouvira uma palavra fora dos carris. Fechei-lhe
os olhos e perdoei-o. Lamentei-o mais que o perdoei.
O apoio aéreo chegou finalmente para nos tirar de apuros, o hélicanhão chegaria alguns minutos depois mas por nada disto eu daria. A minha vez chegara também, todavia teria mais sorte que o Gouveia, o héli de evacuação chegara a tempo de me levar dali para fora e o Senhor não quisera que eu deixasse de me sentir. Voei dali para a salvação pilotado por um Top Gun e cuidado por um anjo branco que de imediato reconheci mas que, no estado em que me encontrava me neguei a conhecer.
……………… Voltei a mim com o grito
imperativo e aflito do cabo boticas para o resto do grupo :
- Deixem-no comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !
Retomei a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso,
- Não temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas, já vem um héli a caminho.
Forcei-me a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...
- Eu já vos fodo todos filhos da puta pretos dum cabrão !
E num segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em que derramaram os cantis.
- Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os outros baixem-se e dêem-nos cobertura !
Recordo o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos fixos em mim, ouvido no meu externo, escutando-me, a pressão de um dedo na carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto
- A direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !
Duas mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro prateado, um sorriso,
- baixou,
três sacudidelas antes
de pousado no pano bordado da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma
jarra com rosas do deserto, linho, lençóis de linho branco * ………………..
O doce, terno, eficiente e competente
anjo branco cujas mãos me ampararam era nada mais que uma das nossas primeiras
enfermeiras paraquedistas, a Esmeralda, sim essa mesmo, a noiva do Gouveia, por
isso me calei, por isso fingi nem a ter reconhecido, por isso me rebelei contra
mim mesmo e sofri, decerto não seria eu a dar-lhe tão triste notícia. Eu não.
Eu nunca.
Anos mais tarde e com tempo vim a contar-lhe tudo pormenorizadamente, tim tim por tim tim, e naturalmente acabámos os dois chorando, mão na mão. Eu já casado havia um ror de anos com a Luisinha, ela a Esmeralda acabadinha de sair de um casamento que os muitos traumas de guerra que havia sofrido condenaram ao fracasso.
Durante uns tempos vimo-nos um ao outro, casualmente, acidentalmente. Somente de anos-luz a anos-luz, outras vezes, calhando, pura sorte, casualmente víamo-nos pelos cafés, encontrávamo-nos aí pelos cafés… (ela estava sempre com sujeitos decentes) e quando nos fitávamos nos olhos, bem lá no fundo dos olhos, eu que sou homem nascido para fazer as coisas mais heróicas da vida virava a cabeça para o lado e dizia:
- Rapaz, traz-me um café…
Há mais amargura nisto que em toda a História das Guerras.
NOTA: Em itálico extractos do texto nº 221 - CONTRATEMPO EM XANGONGO ....
e do poema “Domingo”, de Manuel da Fonseca.
* https://mentcapto.blogspot.com/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html
https://mentcapto.blogspot.com/2019/07/610-2-esmeraldas-2-aneis-esmeralda.html