quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

220 - DUELO DE SAUDADES ..............................


Olhámo-nos nos olhos, demoradamente, mirámo-nos de alto a baixo, detalhadamente, expectantes, como dois adversários num duelo, prontos a disparar ao primeiro movimento ameaçador do outro

Medi-o à lupa, o olhos fundos de alecrim foram o primeiro indício, apurei os sentidos e notei-lhe um cheiro inda que leve a flores de giesta, afrouxei os músculos como quem afasta as palmas dos coldres prometendo calma e, com mais vagar observei-lhe os ombros largos, que vestiam uma camisa branca sem colarinho, o peito era franco, como o dos cantadores do cante, os braços compridos, bons pra sementeira dos alqueives e as mãos brancas, rugosas, de dedos compridos lembrando-me alguém que vira descascando a riqueza dos sobreiros

Cada um recuou um passo, hesitante, temente, sem perder o nexo à distância que garante a confiança, foi aí que ele falou para mim

- Bem, na verdade não falou, balbuciou qualquer coisa que demorei a entender devido à pronúncia afrancesada

Mas pelo ar limpo, o cabelo de melenas desgrenhadas, os botins mal amanhados, a fralda por fora da camisa, parecia-me ser ele, há quanto tempo nos não víamos, trinta e tal ? Quarenta ? Ah ! E o nariz aquilino ! E as patilhas? As patilhas !

Voltei a mirá-lo. Magro como um cão, maçãs do rosto sumidas, pele branca, todo ele branco, na boca um sorriso e, desenhando-se-lhe cristalinamente nos olhos, duas planícies !!

Era ele ! Era impossível não ser ele !

Foi então que chegou perto do fim a fita que, no subconsciente se me desenrolava vertiginosamente, flashes, avanços, recuos, pausas, reset, dizem-me que na hora da morte vemos o mesmo filme, não sei, neste só ele, ele e eu, o passado correndo impetuoso na bobine, trazendo ao presente tudo que gravara, ele e os braços compridos de semeador, as botas caneleiras descuidadas, a calça de ganga desbotada, o cinto de fivela à cowboy, os cabelos pelos ombros, a pasta do portfólio, o autocolante nela em laranja fluorescente “MAKE LOVE NOT WAR”, e os pincéis !

Sim isso os pincéis !

De imediato lhe mirei as mãos, os dedos de artista, as unhas, roídas e aparadas mas cada uma suja de sua cor, de acrílico, aguarela, guache, óleo, em cada uma um fino traço de sujidade denunciando-o

Era ele ! O Délio !

Levantei os braços e avancei sem dúvidas nem restrições, descurei as armas, esqueci os coldres os revólveres e o cinturão das munições, ergui os braços como quem larga os cuidados, abri as mãos como quem esquece a enxada, a foice, o martelo, a bandeira, abracei-o com vontade e senti nas minhas costas as suas manápulas, ainda o abraço não tinha começado e já as línguas se desatavam na ânsia de pôr em dia quarenta anos de escrita

- Sabia que tinhas ido para França

- Sabia que não morreras na Namíbia

- Sabia da tua passagem por Argel

- Sabia que casaras com a Luísa

- Sabia que estiveras cá em 74

- Sabia-te à esquerda ainda navegas nessas águas ?

- Soube que te andavas casando todos os meses eheheheh

- E não havia net faria se houvesse… Almoçamos no Narda ?

- O Narda já acabou

- Vamos a Reguengos !

- Vamos antes ao Redondo !

- Lembras-te daquele professor de francês meio marado e barbudo que tinha um dois cavalos ?

- O que era coxo ? O Artur, ou Raúl ou Saúl ? Se lembro ! Se aprendi bem francês a ele o devo ! Agora deve ser um tipo para a nossa idade, teria o quê ? Mais cinco ou seis anos que nós ? Estivemos vai que não vai para ir com ele num passeio a Marrocos recordas-te ? E as tuas pinturas ? Ainda continuas na onda psicadélica ?

E rimos os dois a bom rir, rimo-nos muito, pusémos em dia quarenta anos de riso atrasado, e fomo-nos ao vinho branco de Redondo, gelado, e ao tinto de Reguengos, corrente, e aos queijos e linguiça assada, à cabeça de xara, aos secretos grelhados, ao polvo de vinagrete, às sardinhas em escabeche, empanturrámo-nos de pezinhos de porco de coentrada, alambazámo-nos com a sopa de cação e a rechina com rodelas de laranja que é o tempo dela, telefonámos á família e aos amigos e pela hora do lanche já eramos quase uns vinte em roda da mesa, que nos contei como faria qualquer escrivão da puridade enquanto ele me contava da França, do Benelux, da tenda ou bancada, da banca é o mais correcto, da banca que tinha no Marché Aux Puces, o Mercado das Pulgas em Paris

- Comprei lá há muitos anos o “Quadrophenia” um duplo álbum dos Who que não tinha saído cá, andava por lá vadiando com a Luisinha, bela música ! Uma bomba !

Abandonara havia uns vinte anos a pintura, contou-me. Já ninguém comprava arte aos novos artistas, fora algumas vezes convidado a falsificar pintores famosos mas recusara, não era a cena dele embora tivesse sido fácil, pintava cenários e publicidade para teatros e cinemas, aderira forçado à moda do design comercial como me disse a rir, estava cá há umas quatro semanas e já sondara “o mercado”, tivera esperanças de ficar mas tudo o aconselhava a voltar, já não havia em Portugal lugar para a publicidade de exteriores disse-me cabisbaixo

- Nem isso nem empresas nem teatros nem cinemas respondi-lhe eu, se te safares só em Lisboa ou no Porto e bái bái…

- Estive duas semanas em Lisboa em casa da mana Olinda, não dá, rendas caras, tintas caras, pincéis, telas, tudo, nem uma promessa de trabalho consegui, acho que isto está pior do que quando daqui me fui há mais de 40 anos

- A quem o dizes Délio !

- Não vale a pena, vou voltar, ainda bem que não me desfiz de um estúdio que tenho lá há bem mais de dez anos

Entretanto e sem que tivéssemos dado por isso caíra a noite, um grupo de cantadores entrou em surdina entoando as Janeiras e inadvertidamente dei por mim cantando-as, de braço dado com a Luisinha que adora o cante alentejano e me desafiara. Metade de nós acompanhava o grupo quando me apercebi que o serrabulho era demasiado e a Gabi confundira o rosé de Borba com o Bordeaux, de que era amante, e exagerava, ou sumíamos depressa dali ou alguém teria que a levar em braços ou ao colo até casa, nem seria essa a primeira vez, nem a quinta ou sexta, aguentava pouco e como estava era uma questão de tempo

Quando acabámos a desarrumação acusava a “luta”, garrafas de Poejo, Fedrisco, Anis, Medronho e Ginginha enchiam a mesa, os pratos dos doces conventuais e os copos vazios exalavam um olor adocicado a álcool que os cafés fortes não dissiparam

Desde os cantadores que o convidado virava a cara revirava os olhos e torcia o nariz enjoado, estranhei, pensara o Délio um saudoso amigo das tradições e disse-lho

- Tradição o caralho pá, não os vi mas soube que estiveram cantando em Paris na semana em que me vim embora pra cá, só palhaçadas, só temos jeito pra palhaçadas, mais valia que aplicassem o esforço em coisas que desenvolvessem o país

Embatuquei, desci duas notas o volume do meu cante, não fosse ofendê-lo porque entendi a sua negação, na verdade o país que o rejeitava pela segunda vez continuava alegre e inconscientemente em festa…   

      https://www.youtube.com/watch?v=CPbylKVCDAk&feature=youtu.be