segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

000221 - CONTRATEMPO EM XANGONGO ............


             Levantara-me com cuidado para não a acordar, dirigira-me como um sonâmbulo à cozinha, boca seca, tal qual numa ressaca, mas nesse dia não, nesse dia era mesmo só sede, nem acendi a luz, uma fraca luminosidade coava-se pelos buraquinhos do estore, talvez seis da matina, porque às sete, hora a que ela automaticamente acordaria, não seriam buraquinhos de luz coada, antes estrelas luminescentes que o sol, batendo em cheio na janela, imprimiria naquela espécie de cartão perfurado *

Encolhi-me ante o bafo de ar frio quando abri a porta do frigorifico, que me atingiu como uma chapada, lembro-me de nesse momento ter apertado uma perna contra a outra sustendo uma súbita e impertinente vontade de mijar para depois, num repente, todas as pressas me passarem bloqueando-me, hesitante quanto ao pacote a escolher, sumo de laranja ou sumo de maçã ? Gostava igualmente de qualquer deles, ambos me dessedentariam por igual e estariam igualmente frescos, porquê então a minha hesitação ?

Foi quando nos lembrei num pomar de laranjeiras, inebriados pelo doce aroma das suas flores e dos sonhos que partilhávamos, em que eu, um eleito no paraíso, e tu uma das setenta e duas virgens que me estariam prometidas

Vivi o auge da revolução dos cravos alheado, atravessei-a convalescente e convalescendo no hospital militar da Estrela, em cujos jardins repeti, dia após dia a marcha que me fortaleceria, ante o olhar nem sempre desinteressado das sábias alunas das várias especialidades de enfermagem fumando às escondidas nos intervalos da labuta, camufladas nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede a que se aconchegavam buscando o sol quentinho dessas manhãs primaveris

Voltei a mim com o grito imperativo e aflito do cabo boticas para o grupo de busca

- Deixem-no comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !

Retomei a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso

- Não temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas, já vem um héli a caminho

Forcei-me a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor, a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...

- Eu já vos fodo todos  filhos da puta pretos dum cabrão !

E num segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em que derramaram os cantis

- Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os outros baixem-se e dêem-nos cobertura !

Recordo o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos fixos em mim, ouvido no meu externo escutando-me, a pressão de um dedo na carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto

- A direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !

Duas mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro prateado, um sorriso, baixou, três sacudidelas antes de pousado no pano bordado da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma jarra com rosas do deserto, linho, lençóis de linho branco

Bruscamente uma mão no ombro

- Como te sentes hoje filho ? Há dois dias que não davas acordo ! Tens fome ? Tens ? É bom sinal ! Vais rir-te desta ! O pior já passou, agora são sopas e descanso, muito descanso

Tudo em meu redor soava a branco do tecto à cama, como irrepreensivelmente brancas eram a touca, a farda, as meias, o sutiã, as rendinhas

Reaprendi a andar naquele jardim em que dia a dia repetia a marcha e me fortalecia, primeiro amparado nela que cheirava a flores de laranjeira, depois abraçados e escondidos nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede onde nos aconchegávamos apanhando sol, mimando-nos nas manhãs quentinhas duma primavera em que conheci o paraíso e ela uma das setenta e duas virgens que me estariam destinadas, ou prometidas, e em cujos seios e regaço me embalou todos aqueles meses de sonho e maravilhoso encantamento

À distância de quatro décadas é-me permitido um balanço. Setenta e duas virgens são manifestamente um exagero, mas seja ou não a minha vida um conto de fadas jamais deixei de as encontrar no caminho, a primeira na paróquia da senhora da Saúde, a segunda em Angola, no Xangongo, perdida na Picada de Kangamba, a sul do Cunene, bem dentro do Kalahari, onde eu a esperava enregelado junto a uma Velvechia com mil anos, (Welwitschia mirabilis), essa flor rara do deserto, tão rara quanto a fada madrinha que me salvou, estarei também fadado pra viver mil anos ?

A terceira fada encontrá-la-ia na Estrela, e por aí adiante, por isso tremi primeiro e sorri depois ao perguntares-me o porquê da minha queda por enfermeiras, ou queda ou paixão, ou simpatia, empatia no mínimo, (deixa-me esclarecer que neste teu conceito de “enfermeira” meti tudo quanto usa uma imaculada e respeitável bata branca, técnicas, médicas, etc) porém a tua pergunta não era inocente e percebi-a logo, naturalmente não desejo a ninguém que viva algumas das situações que vivi, já quanto a outras, lamentarei sim que as não tenham vivido, vivam ou venham a viver

De qualquer modo obrigado por me fazeres desenterrar tão gratas recordações. 

Claro que escolhi o sumo de laranja. A vida é uma dádiva

Cependant, aujourd'hui, je suis Charlie ...

* Nota : às sete em ponto a minha gata acordou, como sempre. 

                   http://youtu.be/mrVjgkKNU44?list=RDmrVjgkKNU44 

                  O Pomar                      Das Laranjeiras

Madredeus

Jurarei
Eterno amor
Saudades
A vida inteira
Ao nascer do sol
No pomar das laranjeiras
E se o dia
Não vier
Voltarei
De qualquer maneira
Só para te ver
No pomar das laranjeiras
É tão grande
O meu amor
Foi assim
Logo a primeira
Só será maior
No pomar das laranjeiras

+ ver também: http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html