Encolhi-me
ante o bafo de ar frio quando abri a porta do frigorifico, que me atingiu como
uma chapada, lembro-me de nesse momento ter apertado uma perna contra a outra
sustendo uma súbita e impertinente vontade de mijar para depois, num repente,
todas as pressas me passarem bloqueando-me, hesitante quanto ao pacote a
escolher, sumo de laranja ou sumo de maçã ? Gostava igualmente de qualquer
deles, ambos me dessedentariam por igual e estariam igualmente frescos, porquê
então a minha hesitação ?
Foi quando
nos lembrei num pomar de laranjeiras, inebriados pelo doce aroma das suas
flores e dos sonhos que partilhávamos, em que eu, um eleito no paraíso, e tu uma
das setenta e duas virgens que me estariam prometidas
Vivi
o auge da revolução dos cravos alheado, atravessei-a convalescente e
convalescendo no hospital militar da Estrela, em cujos jardins repeti, dia após
dia a marcha que me fortaleceria, ante o olhar nem sempre desinteressado das sábias alunas das várias especialidades de enfermagem fumando às escondidas nos intervalos da labuta, camufladas nas ramagens de um
loendreiro subindo encostado à mesma parede a que se aconchegavam buscando o
sol quentinho dessas manhãs primaveris
Voltei
a mim com o grito imperativo e aflito do cabo boticas para o grupo de busca
- Deixem-no
comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !
Retomei
a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto
quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo
que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor
tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso
- Não
temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas,
já vem um héli a caminho
Forcei-me
a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava
em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa
atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as
nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim
alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor, a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...
- Eu
já vos fodo todos filhos da puta pretos dum cabrão !
E num
segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes
batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão
apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante
e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em
que derramaram os cantis
-
Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para
cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os
outros baixem-se e dêem-nos cobertura !
Recordo
o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o
braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos
fixos em mim, ouvido no meu externo escutando-me, a pressão de um dedo na
carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em
bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto
- A
direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !
Duas
mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo
uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e
acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo
o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se
sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro
prateado, um sorriso, baixou, três sacudidelas antes de pousado no pano bordado
da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma jarra com rosas do deserto,
linho, lençóis de linho branco
Bruscamente
uma mão no ombro
- Como
te sentes hoje filho ? Há dois dias que não davas acordo ! Tens fome ? Tens ? É
bom sinal ! Vais rir-te desta ! O pior já passou, agora são sopas e descanso,
muito descanso
Tudo
em meu redor soava a branco do tecto à cama, como irrepreensivelmente brancas
eram a touca, a farda, as meias, o sutiã, as rendinhas
Reaprendi
a andar naquele jardim em que dia a dia repetia a marcha e me fortalecia,
primeiro amparado nela que cheirava a flores de laranjeira, depois abraçados e
escondidos nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede onde
nos aconchegávamos apanhando sol, mimando-nos nas manhãs quentinhas duma primavera
em que conheci o paraíso e ela uma das setenta e duas virgens que me estariam
destinadas, ou prometidas, e em cujos seios e regaço me embalou todos aqueles
meses de sonho e maravilhoso encantamento
À distância
de quatro décadas é-me permitido um balanço. Setenta e duas virgens são
manifestamente um exagero, mas seja ou não a minha vida um conto de fadas
jamais deixei de as encontrar no caminho, a primeira na paróquia da senhora da
Saúde, a segunda em Angola, no Xangongo, perdida na Picada de Kangamba, a sul
do Cunene, bem dentro do Kalahari, onde eu a esperava enregelado junto a uma Velvechia
com mil anos, (Welwitschia mirabilis), essa flor rara do deserto, tão rara
quanto a fada madrinha que me salvou, estarei também fadado pra viver mil
anos ?
A terceira
fada encontrá-la-ia na Estrela, e por aí adiante, por isso tremi primeiro e sorri
depois ao perguntares-me o porquê da minha queda por enfermeiras, ou queda ou
paixão, ou simpatia, empatia no mínimo, (deixa-me esclarecer que neste teu conceito
de “enfermeira” meti tudo quanto usa uma imaculada e respeitável bata branca,
técnicas, médicas, etc) porém a tua pergunta não era inocente e percebi-a logo,
naturalmente não desejo a ninguém que viva algumas das situações que vivi, já
quanto a outras, lamentarei sim que as não tenham vivido, vivam ou venham a
viver
De qualquer
modo obrigado por me fazeres desenterrar tão gratas recordações.
Claro que escolhi o sumo
de laranja. A vida é uma dádiva
Cependant, aujourd'hui, je suis Charlie ...
* Nota : às sete em ponto a minha gata acordou, como sempre.
http://youtu.be/mrVjgkKNU44?list=RDmrVjgkKNU44
http://youtu.be/mrVjgkKNU44?list=RDmrVjgkKNU44
O Pomar Das Laranjeiras
Madredeus
Jurarei
Eterno amor
Saudades
A vida inteira
Ao nascer do sol
No pomar das laranjeiras
Eterno amor
Saudades
A vida inteira
Ao nascer do sol
No pomar das laranjeiras
E se o dia
Não vier
Voltarei
De qualquer maneira
Só para te ver
No pomar das laranjeiras
Não vier
Voltarei
De qualquer maneira
Só para te ver
No pomar das laranjeiras
É tão grande
O meu amor
Foi assim
Logo a primeira
Só será maior
No pomar das laranjeiras
O meu amor
Foi assim
Logo a primeira
Só será maior
No pomar das laranjeiras
+ ver também: http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html