terça-feira, 13 de outubro de 2015

280 - MEDOS, QUEM NUNCA OS CALOU ?..............


           Patranhas. São tudo patranhas. Fugi porque senti medo. Ninguém me preparara para aquilo. Nem ao menos me avisara, e eu era demasiado novo.

E agora ? Que faço ?

Ruborizado, o coração batendo numa cadencia frenética, a mil “rotações” por minuto, todo eu suando, cheio de suores frios, o tacto embotado, os olhos na ponta dos dedos devido à escuridão, os dedos tentando ver tudo, desvendar tudo, entender, perceber, fazer um juízo que me dissesse como proceder a seguir, mas não, a excitação cegava-me mais que a escuridão toldando-me o raciocínio. Senti-me cercado, aprisionado, e ao não vislumbrar uma saída senti medo.

E agora ? Que fazer ?

E não me ocorria resposta nenhuma. O tempo esgotava-se tanto mais depressa quanto mais a situação que se me oferecia me prendava, e assustava.

As voltas que o mundo dá, de nós quatro naquela tarde só eu resto. O Pereira morreu há uns anos, nem lembro já de quê, acho que de overdose, a Fati, sua mestra e fiel companheira faleceu há uns trinta anos, talvez mais, talvez nem tantos, quem a recorda já ? Esclerose múltipla lembro-me de ouvir dizer. Dessa tarde resto eu, com os cinquenta passados, eu e quem sabe se a Lili, que nem vejo há mais de trinta anos, trinta ? Bem mais. Será viva ainda ? Não, minto. A memória trai-me. Ela e a mãe deram-me boleia uma vez. Uma directa, numa sexta-feira, de Vale de Zebro a Évora, a mãe vendia cosméticos, era agente ou representante de uma qualquer marca, e o carro tresandava a pó de talco e a cremes variados.

Não as reconheci quando estendi o polegar ou nem o teria feito. Depois da minha fuga, assustadíssimo diga-se em aval da verdade e para não ser mal interpretado, não nos viramos mais.

Nem recordo tão pouco se bati com o portão da garagem ao sair ou se o fechei devagar, recordo simplesmente que a luz forte do sol naquela tarde me cegou, a mim, que vinha cego da escuridão, a mim, a quem a escuridão assustara e somente com a ponta dos dedos conseguira ver alguma coisa.

Eu teria o quê ? Dezasseis, dezassete anos ? Não sei bem e nem interessa, estava habituado a que as primas fizessem tudo, me conduzissem, me serenassem, me acalmassem se prestes a explodir, lembro ainda a voz sussurrada da Lurdes, acalma-te, vai devagar, pára um bocadinho, não acabes já, temos o dia todo, controla-te. Mas isso era diferente, com ela era diferente, com elas era outra coisa, com elas iria até ao fim do mundo, aquilo eram pormenores, mas o caminho ? Quem me ensinava o caminho ? As peculiaridades e as particularidades do caminhar ? Como pisar ? Como avançar ? Como reagir, e mais importante ainda, como agir ? Que esperar ? Que fazer ?

Com a Miquelina tudo fora sempre fácil, fácil demais, com ela, que depois teimou que lhe chamassem Michele, e com quem, brincava aos pais e aos filhos, que me deixava ver a dela se eu lhe mostrasse a minha, nunca passei dos rudimentos da coisa, nessa altura éramos inocentes demais, jovens demais, nem os problemas eram os pormenores, os problemas viriam a colocar-se mais tarde quanto à abrangência, quanto ao contexto. Entre as primas, os dois ou três anos de diferença que levavam de avanço de mim, no máximo quatro, naquela idade uma diferença enorme, não permitia que me atrevesse a colocar em causa a sua autoridade, limitava-me a cumprir, a cumprir e a esforçar-me, como qualquer bom aluno, mais a mais adorava as lições.

Há coisas para as quais ninguém nos prepara, nem pai nem mãe, daí ter ficado assustado com o contexto, com a abrangência e a escuridão, com a situação. Já nessa altura a Lili cheirava a cosméticos, e pintava as unhas de vermelho vivo, as dos pés também, e virava ou revirava as pestanas com um alicate próprio, especial, e mal saía do liceu pintava os lábios do mesmo vermelho vivo das unhas, talvez por isso não lhe estranhei o sabor, por lhe adivinhar a cor mesmo no escuro, ainda hoje sei de cor o sabor do vermelho, de outras cores nem tanto mas do vermelho sim, é um sabor adocicado, e se demorasse a língua nele, macio, escorregadio, deslizante. Inda alimento uma especial predilecção pelo vermelho, não sei, ficou-me apesar da escuridão uma sensação agradável a emanada do vermelho, dizem ser uma cor quente, e confirmo, quentíssima, sei-o porque lhe toquei levemente com a ponta dos dedos, na boca entreaberta, primeiro no lábio superior, depois no inferior, quentes, macios, escorregadios, e quando me tragou o dedo mudei de mão, procurei-lhe o lóbulo da orelha no sombrio negrume dessa tarde quente, a veia sobressaindo do pescoço, lembro-a como se fosse hoje, ambos arfando, numa pressa despida de urgência, um vagar comprometido apressando-nos, os meus olhos chispando na ponta dos dedos como dois vaga-lumes, os seios duros, empinados, de bicos turgidos, nunca mais esqueci, os beijos doces, a boca doce, além de vender cosméticos a mãe fazia bolos para fora, fora ela quem fizera o bolo de anos para a Tininha da Nau, outra que não vejo há quase quarenta anos, depois da morte do Zé Pica a família desapareceu daqui, trespassaram o café e desapareceram, iam casar dizia-se, um acidente estupido digo eu, e não foi o único porque passadas semanas morreria o Neves, quase no mesmo local. Estive para comprar a mota de um, depois a do outro, mas desisti, estavam amaldiçoadas. Estariam ?

Ninguém nos prepara para coisa nenhuma, ninguém, a mim ninguém me preparou e na altura fulcral embatuquei, nem pai nem mãe nem ninguém me dissera vez alguma que o meu corpo era uma máquina complexa e poderia acontecer nem eu, um dia, lograr dominá-lo. Eu sabia como proceder quando a morta se afogava, ou não pegava, ou quando enratava, não desenvolvia, ou se ia abaixo, mas com a Lili de nada me serviu toda essa sabedoria, pois que, quando até com as pontas dos dedos via, nem era já eu que o fazia por nem saber no momento o que fazer e a inusitada situação me deixar a tremer, afónico e a tremer, apesar de entender todo aquele calor abrasador e os dedos lépidos escorregando-lhe para as virilhas tal o meu tremor, todo eu possuído por uma atrapalhação atrapalhada, e o pânico sentido ao senti-la molhada explicaram uma desorientação tal que me levou a beijar-lhe solenemente as unhas encarnadas, como quem perante uma rainha se baixa e beija em devoção, como inda hoje de quando em vez faço na igreja em oração.

Nem pai nem mãe nem irmão nem amigo ou vendilhão me falara e preparara alguma vez p’ra tal turbilhão e, quando na mesma escuridão que me embotava o espirito a Fati e o Pereira pareciam planar, quebrei, incapaz de respirar, de pensar, de ajuizar, de agir, tendo sido então que, tomado de um furor viril, tomei febril decisão final e que durante anos carreguei às costas como um animal, até que a entendi, até que me entendi. Foi fatal.

Na sombra escura ergui-me atabalhoadamente e vesti-me, e sem mais dali parti. Só muitos anos depois admiti ter fugido dela e me arrependi, temi as consequências, a verdade, para além de todas das desculpas com que tantos anos me enganei, foi que fui eu que fugi, fugi de mim. A desenvoltura dela face à minha inexperiência e atrapalhação assustara-me.

E agora ? Que fazer ?

Não encontrando a resposta soçobrei, e, ferido no meu orgulho, ferido mas não abatido, fugi. 

Claro que, como com muitos de nós acontece a resposta certa veio depois, muito depois, mas não viera na hora, nem na hora certa nem cinco minutos depois, cinco minutos ter-me-iam salvado de mim, cinco minutos teriam bastado para superar o meu bloqueio, mas irremediavelmente nem cinco minutos me foram concedidos.

Durante os dias e semanas que se seguiram evitei passar na avenida dela, furtei-me a aparecer nos sítios que ela frequentava temendo encará-la, encará-la seria confrontar-me comigo mesmo, com as minhas insuficiências, que nessa época e por esses dias estavam muito longe ainda de terem sido ultrapassadas.

Que poderia eu ter-lhe dito ? Que deveria ter-lhe dito ? Como confessar-lhe a minha incapacidade para lidar com a situação ? A minha cobardia ?

Providencialmente o destino veio em meu auxílio, o destino ou a desdita.

Do outro lado do mundo, na Venezuela, um garboso oficial de marinha dos seus vinte e poucos anos atravessava a zona portuária de Maracaíbo quando, do alto de um guindaste um contentor se soltou indo por ali abaixo e esmagando-o. Teve morte imediata esse saudoso eborense. Não me recordo já dos pormenores, se o corpo voltou, se foi enterrado cá, sinceramente não me consigo recordar, o que recordo com dor e com um envergonhado alívio é da família enlutada e destroçada, e o facto da própria mãe, e da Lili, sua irmã, ambas de negro, terem deixado de vez a cidade. Até hoje. Obrigado e perdão Lili, poupaste-me a um vergonhaço.

Poupei-me a um vergonhaço, mas não a um peso na consciência. Uma vez mais aprendi demasiado tarde. Tem sido o azar da minha vida esta aprendizagem tardia de tudo. Só muito mais tarde vim a ler Stendhal e a perceber, a entender e aprender com ele que “…o momento mais desejado para um namorado, a primeira intimidade com uma nova conquista, pode tornar-se o seu momento mais angustiante… “

Até a ler comecei tarde demais…………………………

             https://pt.wikiquote.org/wiki/Stendhal





quarta-feira, 7 de outubro de 2015

279 - CONTAR COM OVO EM CU DE GALINHA

                             

Ao contrário do que, por muita gente e demasiadas vezes é falsamente propalado, a verdade sobre o que foi dito na sede, e até que alguém tivesse aconselhado todos a calarem-se não foi o apregoado:

 “ E o que farei eu agora merda ? “

pois alguém se empenhara em burilar o desabafo espontâneo que o senhor doutor largara alto e bom som, levantando-se irado com a situação, aliás, não fora esse desabafo ia eu dizendo, e confirmo e reafirmo e se preciso for juro pela saúde e alminha destes dois que a terra há-de comer e viram, e ouviram, presenciaram a coisa, tal e qual como muitos outros que agora negam, com medo de retaliações negam, ou temem cair no desagrado do senhor doutor, ele mesmo atenuando as coisas posteriormente quando, na altura do desabafo, só não atirou um valente murro ao televisor por este estar demasiado alto, aliás tão alto que o senhor Fernando que era baixinho e funcionava como controlo remoto dos patrões tinha alguma dificuldade em lhe chegar.

Portanto, ainda que passados tantos anos importa certamente repor a verdade dos factos ainda que eu nem pressuponha ficar a coisa para a história, até por ter para mim que a história não perde tempo com minudências nem com gente menor, contudo a verdade é a verdade e só nos ficará bem cultivá-la, é uma questão de carácter, ou de personalidade, quer sejam estas duas ou não uma e a mesma coisa.

Portanto, custe o que custar e doa a quem doer, o desabafo que o senhor doutor largou já lá vão tantos anos, deixando todos boquiabertos dado o pouquíssimo tempo decorrido até àquele momento e desde que fora empossado em funções, foi segura, precisa e exactamente:

- Já estou fodido ! E que merda de coisas vou eu agora conseguir fazer caralho ?!

Há quem diga que terá esboçado o gesto de mandar involuntariamente a mão ao chão e pegar num cano imaginário para atirar-lho a cima, acima dele, dele do outro que acabara de se demitir, ou simplesmente ao televisor, como se o televisor fosse culpado da caricata situação engendrada, ou das repercussões que tal tsunami provocava. O televisor, qual mensageiro, limitava-se a ser veiculo de noticias, como o senhor doutor, alguns o diziam baixinho, seria meramente o veiculo de alguém, ou de alguns, mas todos nós sabemos como o português adora a má língua e eu juraria tratar-se de torpes insinuações provenientes de invejosos, que sempre os há, coisa que como sabemos abunda em qualquer parte e acompanha qualquer situação.

Na verdade, embora hoje todos garantam que sim, nem acho que a maioria tenha ficado boquiaberta, já que o resultado do acto eleitoral que ditara as sortes do senhor doutor fora em simultâneo o azar do senhor engenheiro e, na altura, todos, unanimemente, aceitaram que naquelas condições por muito que o homem sonhasse, e mesmo que Deus quisesse seria muito difícil que a obra, qualquer obra, nascesse e, neste capitulo lembro-me de na altura ter ficado mesmo ligeiramente confuso, estariam a referir-se a obras sem duvida, mas obras do senhor engenheiro ou obras do senhor doutor ? E a confusão instalou-se até hoje, apesar do desabafo do senhor doutor ter sido bastante explícito. Eu não tive duvidas, ainda que alguém as tivesse semeado com cuidado, o mesmo cuidado com que recomendou a todos que burilassem o desabafo espontâneo do senhor doutor, cuidado em que colocou todo o seu peso institucional e sobretudo toda a sua autoridade.

A realidade, e a memória não me falha, é que tal sugestão foi acatada como se de ordem de cariz superior se tratasse, e naquelas mentes cumpridoras e sobretudo militantes o desiderato, digo o desabafo, terá de imediato sido apagado nas suas mentes. Com certa gente não se brinca. Com certas coisas ainda vá que não vá mas…

Daí que hoje, passados que são tantos anos, resulte extremamente difícil promover uma incontestável reconstituição dos factos, ainda que os que religiosamente devotavam ao senhor doutor uma admiração excessiva, diria que a roçar a submissão, o seguidismo, sejam incomparavelmente muitos menos, aposto que bem poucos, ou quase nenhuns.

Já tentei e bem tentei, mas a minha tentativa de abordar os acontecimentos foi como esbarrar contra uma parede, melhor, abordar os factos. Reconhecer a verdade seria para a maioria daqueles que os presenciaram reconhecer quanto se enganaram, reconhecer que contribuíram para um bluf que acabou por não honrar ninguém, trazer proveito a muito poucos e desiludir-nos a todos. Permitir que a questão fosse abordada seria admitir o empenho geral de todos, na altura, empenho colocado em apostar no cavalo perdedor, ora ninguém de bom grado aceita de ânimo leve as suas fraquezas, e muito menos dará a mão à palmatória quanto aos seus erros.

Eu mesmo não estou certo que estas palavras e esta procura da verdade não venham a ser veementemente desmentidas, em especial por aqueles que, quanto à situação específica que aqui se aborda, precisamente mais mentiram.

Um consolo ao menos me restará sempre e não me abandonará nunca, e esse ninguém poderá desmenti-lo, era realmente, ou foi realmente um cavalo perdedor, e desde aquele desabafo quer queiram quer não quer gostem quer não gostem o entusiasmo dissipou-se-lhe completamente, até por ter sido atingido na sua vaidade, o terramoto sofrido em todo o país roubara-lhe o protagonismo da vitória que, fora de portas nunca foi apreciada ou sequer aplaudida por quem quer que seja, aliás, tivesse sido, o que muito lhe custou a engolir.

Pelo menos na parte que me toca nunca mais o vi que não como um cavalo cansado, sem fulgor, sem chama, sem ideias (bem, ideias para a cidade na verdade, descontando uma certa demagogia nunca teve) e se duvidas houver que se consulte o portfólio das obras que promoveu e, tirando um ou outro erro menor e uma ou outra asneira de dimensão superior nada mais lá encontrarão.

Aliás, o silencio que posteriormente se fez à sua volta, o facto de ele próprio ter desaparecido completamente de cena induzem à percepção de que não há nem honra a defender, nem princípios pelos quais lutar, enfim, nada que lembrar, e curiosamente nem é visto entre os amigos, palavra polémica já que não lhe conhecia rede de amigos (alguns maledicentes apontam-lhe rede de interesses, uma vez mais invejas), todavia nem uma mínima preocupação na manutenção dos seus apoios, militantes ou simplesmente seguidores, como se o próprio fosse o primeiro interessado em ser esquecido e deixado em paz.

Realmente aposto que ninguém gostaria de ver algumas polémicas que originou, ou alimentou, reeditadas ou tão pouco desenterradas. Fim inglório para quem tão certeira e premonitóriamente largou o mais espontâneo e genuíno desabafo que na vida conheço.

Quanto mais tempo passa mais a razão dá razão a ele mesmo, que largou o desabafo talvez num momento de profunda introspecção, mas vá lá a gente saber o que pensa alguém, em especial quem esteja contando com o ovo no cu da galinha da vizinha.

O tempo é grande juiz, conselheiro, professor, congratulo-me por o tempo que tudo esclarece ou enterra me ter dado carradas de razão. Aquilo não era um castelo de cartas nem era nada. Hoje observo as coisas com maior distanciamento e confirmo a justeza das minhas observações e das apreciações e julgamentos que então intui e fiz, e que prematuramente nos levaram de um afastamento progressivo a definitivo.

O senhor doutor e os que o rodearam só pensaram neles e exclusivamente neles. Não havia um plano, um projecto, uma ideia, não havia coesão, solidariedade, amizade. Havia decididamente um grupo de interesses e de interesseiros que monopolizava e manipulava os demais. Era tamanha a vontade de fazer prevalecer os desejos de alguns, tão fundo o fosso cavado, a desestruturação provocada que o disfuncionamento criado ganhou tal dimensão e modo que a união primitiva, inicial, um fenómeno social quando visto a esta distancia, não se repetirá nos próximos vinte ou trinta anos, que serão passados a patinar, patinar até que a geração que viveu a coisa esqueça os protagonistas e a grosseria e desconsideração para com esta cidade.

Quanto ao senhor doutor ninguém sabe dele, foi tanta a burrice feita que é suposto ter vergonha de aparecer. Para ser franco nem sei como a coisa aguentou tanto tempo. Bem, na verdade não aguentou, não aguentou mas deixou mossa, deixou mossa e cavou uma desunião muito funda e uma desilusão ainda maior.

Não, as pessoas ali não são números, senti que não eram números, eram pretexto, eram meio para que alguém alcançasse alguma coisa, mas não minha gente, não se iludam, ali as pessoas não contam, estou cada vez mais certo de nunca terem contado.

Ali as pessoas não são números, são algarismos… Verdadinha.  




segunda-feira, 5 de outubro de 2015

278 - Parabéns PAF e obrigado !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ......


Com a verdade me enganas poderia ser logica e legitimamente um mote apodado à recém-vencedora coligação PAF. Fartos de quarenta anos de conversa de meias tintas os portugueses prendaram-na, apesar dos tantos defeitos que quotidianamente lhe apontavam. Lá terão pensado e quem os não tem ? …

Brindaram quem apesar das quedas, dos tropeções, do amadorismo, da carolice, do improviso, da falta de jeito e de habilidade, da estultícia, das desculpas esfarrapadas, das justificações atabalhoadas, da falta de profissionalismo, da xico-espertice, apesar disso tudo dizia eu, os portugueses gostaram que lhes falassem verdade e se lha não falaram pelo menos assim lhes terá parecido.

Aos mais sensíveis direi, em abono do seu conforto moral, que Hitler também chegou ao poder ganhando eleições e nem por isso ficou mais bem visto na história, como sabemos, portanto consolem-se, ganhou a PAF, que não é nazi que até é rapaziada portuguesa na mesma, diria mais são portugueses que têm também uma palavra a dizer, e não temos todos ? Esta república das bananas ainda não é uma confederação. 

Na realidade nem podemos acusar a PAF de ter ganho as eleições, a PAF ficou à frente nas eleições que o PS perdeu. Bem, a esquerda soma mais deputados, embora na prática isso não sirva para nada, nem de consolo a ninguém. Quanto a António Costa e o PS, os grandes perdedores, não perceberem em devido tempo (e passou muito) que com a queda no buraco negro da crise muita coisa mudara, entre elas a percepção que os portugueses passaram a ter da política e dos políticos. Antes da queda no astronómico e negro buracão a PAF dificilmente ganharia ao PS umas eleições.

Eles, Costa e o PS, não perceberam que o tempo das favas contadas se acabara, que o tempo do clubismo perdera viço, e nesse aspecto a campanha do PS foi desastrosa, pessoalmente senti-me melindrado com aquela forma de fazer campanha, como quem gere uma claque de futebol, debitando sound bites e frases feitas a torto e a direito, prometendo, ameaçando, e retirando para as trincheiras como se tudo fosse uma guerra e tudo tivesse que ser comentado, contestdo ou contrariado.

Estava visto ter o tempo desses modos passado. Acrescento que mau grado os sound bites e frases pré fabricadas o PS esqueceu não ser virgem, nem isento de culpas, faltou-lhe autoridade moral e a cada frase feita e por ele atirada ao ar poderia contrapor-se-lhe o seu contrário, e o seu contrário apontava o dedo ao PS.

Faltou ao PS autoridade moral para falar como falou durante a campanha, a menos que já tivesse pedido desculpa aos portugueses por nos ter trazido ao buraco negro. Ora se há coisa que os portugueses sabem é quem nos arrastou para tamanho buraco, e já nem vale a pena apontar culpas a Cavaco e à sua destruição do tecido económico nacional às mãos da CEE, está demasiado longe essa época e não foi na altura contrariado pelo PS, aliás por ninguém, e nem vale a pena bater em Durão Barroso que fugiu, porque para batermos nesse teremos que bater primeiro em Guterres, que fugira primeiro. Santana Lopes nem menciono, tal o desastre… a esse incluo-o nos desastres naturais que uma nação está sujeita a sofrer… Mas voltando a Guterres, o tal que fugira, então não era precisamente quem o PS adoraria ter na calha para PR ? Depois que esperavam digam-me lá ?

Que tentem fazer de mim parvo é uma coisa, que eu aceite sê-lo já é outra muito diferente topam ? Não me levaram com essa como não me levam com a flausina da Maria de Belém. 

Na verdade e apesar da trapalhice do governo não nos ter tirado de lá, por não querer ou não saber, sublinho o não saber, faltou ao PS admitir a sua parte no buraco e no mínimo pedir desculpa ao país. Não o fez, tentou passar sem se queimar sobre assunto tão candente e não passou, levou os votos da claque clubista e nem esses garanto que tenha levado todos. Costa pode não ter culpa, mas à sua derrota não é alheia a constante indefinição do PS, há quarenta anos a fingir que faz sem fazer, há quarenta anos alimentando uma politica de NINS, nem sim nem sopas, antes pelo contrário, nem a malta almoçava nem o pai morria, desta vez teve uma trombose, lixou-se.

Presunção e água benta cada um toma a que quer, há coisas do foro da psicologia que marcam muito fundo, há coisas a nível da legislação que são o que são, e são para cumprir, e coisas ao nível da ética e da moral em que cada um toma o que quer nem obedecendo nem tendo que obedecer a quaisquer enquadramentos legais. Espero que os votos sumidos do PS para beneficio de outras áreas da esquerda sejam pronuncio perene de manutenção fundamentada, embora nem acredite em tal, tal beneficio parece-me muito mais fruto de uma circunstancia especifica e circunscrita no tempo que capacidade de manter, proteger, acarinhar e fazer crescer. Se for como penso tenho pena, decerto teremos pena, contudo todavia mas porém, acuso o toque, em todas, e sublinho em todas, as entrevistas que vi, li e assisti dadas por responsáveis das nossas esquerdas, foi sintomática a ausência de abordagem aos modos do país fazer dinheiro.

Dá-me sempre a ideia de julgarem ser esse o nosso menor mal, quando é precisamente o nosso maior handicap, dá-me sempre a ideia de gente que com facilidade ordenaria ao Banco de Portugal que imprimisse notas e notas, ou se considerem felizardos a quem o dinheiro caia do céu resolvendo todos os nossos problemas. Desse-lhes a volta que der para eles um quadrado só tem três lados, e o quarto lado é ignorado, o das empresas, dos empresários, como se fossem entidades abstractas que constituíssem um mundo à parte, um mundo de metecos a quem bastasse ordenar que trabalhassem, que fizessem o que deviam fazer, pagassem impostos e ficassem quietinhos e caladinhos. Quando muito a nossa esquerda aceita trazer à colação pequenos empresários, pequenos industriais, pequenas e médias empresas, pequenos produtores, pequenos negócios, como se estes pela sua dimensão fossem tocados pela virtude e aos outros aos maiores, aos grandes, lhes tivesse acometido a lepra, a peste, o pecado.

A incapacidade da nossa esquerda em incluir na equação este lado do quadrado, apesar de se tratar de portugueses, lado tão hostilizado o dos nossos empresários/ investidores que têm sido abatidos ou substituídos por pretos, angolanos, ou amarelos chinocas, lado em que qualquer dia não restará quem queira investir além de mafiosos caucasianos.

Têm alguns amigos meus da chamada esquerda radical alvitrado terem contribuído para a vitória da PAF as “dificuldades” na votação desta vez levantadas aos emigrantes, e concedo-lhes razão. A PAF tanto lhes dificultou a vida como outros anteriormente lha tinham facilitado no sentido de se banquetearem com os seus votos. Contudo acrescentarei que para governar, dentro da legalidade, é preciso ter votos, ter deputados, e ser governo, o que a PAF conseguiu e a esquerda não, PAF que não podemos acusar de nesse item ter transgredido a legislação, que ela estava em condições de legitimamente produzir, como outros noutros tempos a produziram de sentido contrário.

Claro que ética e moralmente a situação pode ser criticável ou condenável, mas isso não a torna ilegal. Sabe-se que presunção, água benta, moral e ética, por enquanto cada um toma a que quer. O mito da superioridade moral da esquerda, das nossas esquerdas, incompatíveis entre si e inúteis, obriga-me por pudor a ficar calado quanto a essa pretensa superioridade pois não nos faltam na história exemplos de esquecimentos e atropelos seus pelo que nos dizem ter de mais querido. A tal ética e moral que apregoam, cai por terra com a reeleição desta PAF que, curiosamente, é também constituída por portugueses, mau grado terem sido e serem ignorados existem, e parece que contam, e que cada vez são mais. Apesar de enorme perda de votos obteve a PAF um resultado notável, um natural desgaste de 4 anos em que todas as reformas que deviam ter sido feitas não o foram, as que foram ficaram-se pela rama e os sacrifícios exigidos sobretudo e injustamente às classes abaixo de si.

Quanto aos emigrantes que atrás citei, deixem-se estar e fiquem bem, pois neste cantinho nem o povinho ainda sabe o que quer ou fazer escolhas com tino.

Já aqui tinha confessado a minha admiração pelo facto de o PS, apesar de tanta contradição que encerra, ir mantendo continuadamente bons registos em eleições. O tempo acabou por me dar razão, e talvez esta derrota sirva para que inicie uma autocrítica profunda, uma catarse que o conduza de novo à sua pureza matricial (de matriz). Há males que podem vir por bem, dizem até que Deus escreve direito por linhas tortas, e Constança Cunha e Sá, que tem a boca de esguelha, exortou ontem mesmo na Tv. os jovens turcos do partido a não se deixarem comer pelos velhos do Restelo.

Ainda a ética, o modo como Costa afastou Seguro, no mínimo deselegantemente, decerto não lhe granjeou votos e, apesar de eu não apreciar Seguro, foi por aí que perdeu o meu voto. As atitudes dão, mas também tiram votos, no saber geri-las é que está a sabedoria. Aproximo-me dos cinquenta, não sou nem jovem nem idoso, nada tenho na favor ou contra uns ou outros, mas Costa ter enchido num dos últimos dias da campanha o palco com velharias, a quem na altura chamei a brigada socialista do reumático, perdeu-o certamente. Quem é que, especialmente entre o eleitorado mais jovem iria apostar naquelas velharias ? Não tinham elas por acaso sido a brigada responsável, culpada por nos deixar cair no buracão ? Toda aquela gente está fadada, está tocada pelo destino, aquela gente é culpada de quarenta anos de mentiras, de défices escondidos debaixo do tapete, culpada de cumplicidade, culpada de ter pactuado, de ter calado.

A estratégia escolhida de olhar para o lado e fingir não ver o buraco, a atitude estulta de fingir nada ter que ver com esse buracão, a táctica de o ignorar pura e simplesmente como se nada tivesse que ver com ele ou o buraco nem existisse foi-lhe fatal. Claro que foi a PAF e o autocarro das esquerdas quem na hora derradeira nos empurrou para o buraco, quem nem admitiu o PEC IV, quem foi a Bingo e viu saírem-lhe as contas furadas, mas o que estava em jogo era a paternidade do buraco, ser filho incógnito caiu muito mal… o resto não passou de habilidades de parte a parte.

Costa devia ter partido da culpa para o perdão, mas não, partiu do esquecimento manhoso para a apoteose das favas contadas. Os portugueses não lhe perdoaram.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

277 - " ISTO ANDA TUDO LIGADO " .......................


Quando, casualmente presenciei a cena, estava bué de longe de imaginar a correlação que se iria desenhar entre essa ocorrência e uma outra com a qual me depararia logo na manhã seguinte.

É certo que eu festejara demasiado naquela tarde, brindes e mais brindes, brindes por isto e por aquilo, por este e por aquela, de modo que, embora a tarde estivesse fria e ameaçando acabar em menos de um ai, sentei-me placidamente na espreguiçadeira da varanda beberricando os restos do famoso wisqui que o meu sobrinho favorito (e único) me trouxera das highscotlands. Ele, licenciado em computacia e a companheira, licenciada em dentologia, tinham-se fartado de aturar esta canalha e haviam há largos meses buscado outra zona de conforto na Suécia, pelo que nem sei como apanharam um ferry, ou um charter para a Noruega, dali para as Scotlands, trânsito via Edimburgo, em cujo free xop airport compraram uma garrafa de 1,5L, das que por aqui nem vemos, genuíno old scotland malt que carregaram até Évora para oferecer cá ao vosso rapaz, Capice ? Foi a desgraça da visita, perdão, a alegria da visita, e os copos tiniram como nas mãos de gente grande.

Mas, dizia eu, acabara de me refastelar na espreguiçadeira quando, a grande velocidade, um jeep BMW X1, preto, faz uma travagem abrupta mesmo na minha frente, guina à direita, galga o passeio e numa manobra única e rapidíssima, de mestre mesmo, fica impecavelmente estacionado no passeio fronteiro entre dois outros carros. Foi então que me dei conta do inconcebível da coisa, decidida, airosa, atenta, vigilante, uma loiraça sai do JU, lembro-me das letras da matricula porque na noite anterior tivera insónias e vira um documentário na National Geographic, aliás um dos meus programas preferidos, sobre a II GG e os célebres aviões JU alemães, o Ju-87 Stuka e o Junkers JU-88 bomber, que isto anda tudo ligado, e eu, mesmo genuinamente etilizado, reparei claramente, embora ao lusco-fusco, que a loira esperava alguém, quando, também luzidio e preto, parecia um carro presidencial, numa travagem decerto assistida por ABS, igualmente repentina, um rapagão dos seus quarenta a cinquenta pára, recolhe a loirinha, vira o Classe C novinho em folha na avenida, que aqui é larga, e se somem os dois, qual miracle, em menos de dez segundos. Nem pó ficou, só o BMW X1, preto, JU, pastando no estacionamento.

Eu, que sempre fui um individuo de imaginação rica e bem mal-intencionado fiquei com o copo a meio caminho da boca aberta.

Ná ná, aqui há gato, cheira-me a marosca, e jamais imaginara que a ligeira curvatura da avenida, larga e com amplo espaço de estacionamento na pacatíssima zona onde resido, servisse para aventuras de capa & espada ao Pimpinela Escarlate e sua muchacha. Emborquei o resto do wisqui de um só trago e desejei sorte aos românticos e apressadinhos mosqueteiros, fechei os olhos, recostei-me e dormitei até a minha Mimi me saltar para o colo, onde se aninhou pois estava gelada, tal qual eu quando finalmente dei acordo.

Entrei em casa, remirei o rótulo da milagrosa garrafita e foi com pesar que atirei com ela para o balde do lixo, onde mal coube e teve que ficar ao alto. Esqueci a coisa, lembrei-me que nem sempre devemos pensar o pior, ou o melhor, que enfim, a urgência podia ser outra, e esqueci.

Quando no day after me dirigi à Repartição de Finanças não bati com o nariz na porta porque não havia porta, a dita jazia p’lo chão em mil bocados que o homem da vidraria, um individuo simpático que detesto desde a minha juventude por me ter roubado debaixo das barbas uma das minhas namoradas, com a qual aliás teve o desplante de se casar, mas dizia eu, apanhava os vidrinhos e tirava medidas com uma fita métrica do BE (oferta certamente da campanha eleitoral) para ir cortar e vir instalar um novo vidro, aliás repito-me, perdoem-me a repetição, de generosas medidas e considerável espessura, que eu nem imagino quem ou como teria sido partido. Dei por mim correndo para a mota, estacionada a trinta metros e que a camioneta da vidraria numa manobra manhosa ameaçava atirar ao chão. (se o tipo gostasse tanto de mim como eu dele decerto passaria por cima da mota).

- Quer que desvie a mota amigo ?

Mas não, não foi necessário, ele bufou e voltou a bufar agarrado ao volante e às manobras, para não dar parte fraca, enquanto eu o animava antes que o homem, de tao vermelho que estava, rebentasse ali à minha frente.

- Já tem trabalho para a manhã toda não amigo ?

- Sim tenho, ainda que felizmente trabalho não me falte, mas já me atrapalhou o dia todo esta merda, nem sei como irei dar conta da agenda, mais valia que tivessem ido foder pra outro lado, ou noutro dia qualquer.

Carregou no acelerador, a camioneta largou uma baforada de fumo negro e abalou chocalhando rua do Salvador abaixo na urgência da vidraça, enquanto eu voltava à fila da repartição, esclarecendo-me e sossegando-me a mim mesmo, de que aquele “vão-se foder p’ra outro lado” não me era dirigido nem tinha nada a ver comigo. Sentei-me num cadeira que entretanto vagara e fiquei olhando com a habitual cara de parvo e displicência para o resto do pessoal igualmente aguardando a sua vez, e nisto entre as muitas conversas que se entrecruzavam na sala uma delas me chamou a atenção.

- Pois, parece que um dos directores e uma estagiária, ou dessa coisa dos POC’s, chegaram ali ontem ao cair da noite e com a pressa nem entraram, ter-se-ão encostado ao vidro enquanto ele tentava meter,

isto já sou eu a pensar (eu, um dos indivíduos em espera na sala e não eu mesmo empurrando o vidro, não cá o rapaz) enquanto ele tentaria possivelmente enfiar a chave na fechadura, o vidro tem um vão muito grande, terá cedido, e se calhar quando ele a meteu pum catrapum ! O vidro cedeu e badam !

Ora nada disto obsta a que possamos malevolamente imaginar uma cena canalha, ela aflitinha, encostada e apertada contra o vidro e tentando simultaneamente manter a saia levantada e a cueca desviada, puxada, afastada, enquanto ele, excitado e vermelho, ou vermelho e excitado, a palma da mão espalmada no vidro, amparando-se nele, um pé firme, outro permanentemente escorregando no granito super alisado de tão pisado, atrapalhando-o, a outra mão tentando manter aberta a braguilha e meter a chave na fechadura, submetido à tensão exorbitante do momento, a palma suada escorregando-lhe no vidro, desencaminhando-o da fechadura, o suor escorrendo-lhe da testa, embaciando-lhe os óculos, os dois ofegantes, o colarinho empapado de suor, a gravata esganando-o e ele com vontade de a desapertar e atirar com ela ao chão, mas como ? Se só tem duas mãos ?

Encontravam-se absorvidos por toda esta ginástica e tensão que a situação gerava quando, não aguentando tanta pressão o vidro badam ! E caem um sobre o outro no meio do granizo em que o vidro se transforma. Repentinamente um pirilampo amarelo piscando insolentemente sobre a trave mestra da porta e uma irritante sirene piri, piri, piri, piri,

- Não tardará a policia aqui, a policia e uma multidão de curiosos, estamos fodidos Cremilde.

Passada a estupefacção levantam-se gatinhando, amanham-se, sacodem-se, terão vociferado em uníssono contra o inusitado da situação,

- E agora merda ? Que fazemos ? A ultima coisa que precisava era ser vista aqui neste estrelaio, desta é impossível que a tua mulher não venha a saber, e que vou eu dizer ao Valentim ?

Confesso que, quando a Mimi me saltara para o colo nem reparara nas horas, nem reparei sequer que descalçara os ténis, caríssimos, que passaram a noite na varanda, não reparei no frio do anoitecer anestesiado que estava, não reparei no jeep BMW X1, JU, não reparei se ainda estava ou se já não estava, não reparei a que horas voltaram a busca-lo, nem reparei que caía de sono nem em quem me meteu vestido na cama, somente me recordo de ter dormitado, e de ter sonhado, com um BMW X1 e um Mercedes Classe C novinho em folha, com a mota, com o imposto, com as Finanças, com o vidro partido, com o merdas que me roubara a namorada, com a tagarelice na sala de espera, a brejeirice de uns e de outros, é verdade que isto anda tudo ligado mas já nem sei se é redondo se quadrado, se sonhei ou se é facto verificado, e antes que a minha Luisinha me dissesse alguma coisa arrebanhei os copos todos na sala, aspirei os restos de caju e as cascas de amendoim e tremoços, os restos pisados dos salgadinhos e outros aperitivos entranhados no tapete de Arraiolos. 

             Diga-se em meu abono e da verdade que a carpete é linda, grande, cara, e que agora com a crise o melhor é estimar esta  porque já nem há dinheiro pra  outra que isto anda tudo ligado, a crise é geral e se eu me lixar aqui quem se fode são os de Arraiolos.

Capice ?

                                                     

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

276 - DELIQUESCÊNCIA .............................................


Dizer-vos quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é impossível, pois não recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição. É certo o tempo ter passado, mas não esta lembrança gravada na minha mente como se escrita na pedra e desde o instante em que pela primeira vez a vi.

Dizê-la bonita, linda, simpática, não passaria nunca de frase comum, quando o que eu pretendo é precisamente assinalar nela o oposto, o que tem de incomum que tanto me impressionou primeiro e depois cativou, para sempre.

Os olhos amendoados e sorridentes, vivos, emoldurando-lhe a beleza e extravasando confiança contagiante. Olhos que falam, que interrogam, apoiam e prometem, olhos que julgam, que submetem e libertam. Foram essas janelas da alma que, muito antes de tudo, me permitiram conhecê-la por dentro, sondá-la como quem desvenda as profundezas do mar e me impeliram a atirar a âncora deste amor imorredoiro.

Quais ferramentas dessa leitura também a boca, sempre ridente, transbordando sensação infinda de bem-estar, os dentes alvos, a conversa agradável e interminável à qual me era doloroso pôr fim e que a todo o momento procurava atear.

Tudo isto um rosto enquadrava, aprazível, viçoso de ternura e meiguice, tanto assim era que me viciei nos seus carinhos, que hoje não dispenso nem disperso, antes procuro e alimento como coisa natural e simultaneamente fulcral ao meu sustento. Recordo como, de cada vez que o mundo me assustava, ela ali estava, indispensável, imperecível, sólida, inamovível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores.

Por isso esta minha vida tem sido vivida dispensando regularmente a generosidade que outras fontes me oferecem numa cadência ritmada, mas às quais respondo talvez com insensatez e ingratidão, por culpa duma questão de princípios em mim inculcada há muito e me dita e ordena, alheia a tudo, que não, que não aceite nem sucumba e recorde sempre esta divida que pretendo quitar, mantendo insinuado na memória das gentes ser falso que, desconsideração ou desarmonia me tenham habitado vez alguma a ética ou que, por um absurdo ilógico ou inadvertência minha eu tenha permitido deduzir, ou intuir a outrem ter a disciplina da minha fidelidade sido uma só vez quebrada. Não foi. 

Não, não o foi nem por um momento de distracção ou ambivalência polémica sequer o foi, ou por relapso, menos ainda inconscientemente, por tédio ou desolação, maldade ou propósito, que não foi, nem foi nem esta minha identidade deliberou alguma vez, por alucinação ou demência tão pouco subtrair-se à alçada generosa das regras que decididamente a razão cultivou em mim desde que me conheço e que ainda retinem, apelando à imortalidade ou emergência reputada indubitável à salvaguarda do meu prestígio, à preciosidade do carácter que propagandeio e atentamente vigio pois, neste âmbito não admito contradição ou paradoxo, nem que a mínima inferência seja retirada da esfera delicada das amizades e matérias apaixonantes que cultivo, a fim de que uma qualquer alucinação polémica e estéril subverta as minhas melhores intenções, falaciosamente procurando provar a ingratidão em quaisquer das atitudes por mim tomadas.

Não busco a imortalidade, antes a constância, académica ou não, e jamais verão em mim embaraço ou precedente, lamento ou risota que conflituem com a argumentação da verdade e da formalidade que a minha exposição e transparência me consentem, e a que me obrigam, e permitam minimamente ou sequer imaginar neles motivo de punição ou duma qualquer prática axiomática e impessoal que tanto me esforço por combater.

Nem saturação nem tédio alguma vez foram instilados em mim de modo que pudessem verter no meu caminhar o pez da desolação ou o vírus da chacota, inquinando um prolongado e árduo trabalho de compilação da confiança que tornou impenetrável o pedestal a que te guindei, em que obsequiosamente te coloquei, imune a alusões soezes e a oportunidade de pendências que não foram sequer afloradas uma única vez, por mais delicadamente que tivessem procurado instilar em mim o veneno da dúvida, ou da soez divisão entre nós. Por isso, por tudo isso me custa agora imaginar pelo menos que se te enuble a aura ou dissipe o karma, obliterando-me a esperança e toldando-me o raciocínio e o devir.

Pressinto aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do absurdo fim desta história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Sinto-o quando à noite te abraço e o teu respirar cansado me assusta, sinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o porque voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não sentir que preenches como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas não comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu colo, tal qual uma aparição ou um sonho, sinto-o no modo como os teus olhos me fitam, sinto-o nesta deliquescência precoce que nos cerca e confunde, noto-a nos projectos que já não alinhavamos.

A imortalidade é filha da memória, as lembranças inesquecíveis são filhas e fruto de momentos felizes e isso, sinto-o meu amor, nunca jamais em tempo algum me será tirado… 



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