terça-feira, 13 de outubro de 2015

280 - MEDOS, QUEM NUNCA OS CALOU ?..............


           Patranhas. São tudo patranhas. Fugi porque senti medo. Ninguém me preparara para aquilo. Nem ao menos me avisara, e eu era demasiado novo.

E agora ? Que faço ?

Ruborizado, o coração batendo numa cadencia frenética, a mil “rotações” por minuto, todo eu suando, cheio de suores frios, o tacto embotado, os olhos na ponta dos dedos devido à escuridão, os dedos tentando ver tudo, desvendar tudo, entender, perceber, fazer um juízo que me dissesse como proceder a seguir, mas não, a excitação cegava-me mais que a escuridão toldando-me o raciocínio. Senti-me cercado, aprisionado, e ao não vislumbrar uma saída senti medo.

E agora ? Que fazer ?

E não me ocorria resposta nenhuma. O tempo esgotava-se tanto mais depressa quanto mais a situação que se me oferecia me prendava, e assustava.

As voltas que o mundo dá, de nós quatro naquela tarde só eu resto. O Pereira morreu há uns anos, nem lembro já de quê, acho que de overdose, a Fati, sua mestra e fiel companheira faleceu há uns trinta anos, talvez mais, talvez nem tantos, quem a recorda já ? Esclerose múltipla lembro-me de ouvir dizer. Dessa tarde resto eu, com os cinquenta passados, eu e quem sabe se a Lili, que nem vejo há mais de trinta anos, trinta ? Bem mais. Será viva ainda ? Não, minto. A memória trai-me. Ela e a mãe deram-me boleia uma vez. Uma directa, numa sexta-feira, de Vale de Zebro a Évora, a mãe vendia cosméticos, era agente ou representante de uma qualquer marca, e o carro tresandava a pó de talco e a cremes variados.

Não as reconheci quando estendi o polegar ou nem o teria feito. Depois da minha fuga, assustadíssimo diga-se em aval da verdade e para não ser mal interpretado, não nos viramos mais.

Nem recordo tão pouco se bati com o portão da garagem ao sair ou se o fechei devagar, recordo simplesmente que a luz forte do sol naquela tarde me cegou, a mim, que vinha cego da escuridão, a mim, a quem a escuridão assustara e somente com a ponta dos dedos conseguira ver alguma coisa.

Eu teria o quê ? Dezasseis, dezassete anos ? Não sei bem e nem interessa, estava habituado a que as primas fizessem tudo, me conduzissem, me serenassem, me acalmassem se prestes a explodir, lembro ainda a voz sussurrada da Lurdes, acalma-te, vai devagar, pára um bocadinho, não acabes já, temos o dia todo, controla-te. Mas isso era diferente, com ela era diferente, com elas era outra coisa, com elas iria até ao fim do mundo, aquilo eram pormenores, mas o caminho ? Quem me ensinava o caminho ? As peculiaridades e as particularidades do caminhar ? Como pisar ? Como avançar ? Como reagir, e mais importante ainda, como agir ? Que esperar ? Que fazer ?

Com a Miquelina tudo fora sempre fácil, fácil demais, com ela, que depois teimou que lhe chamassem Michele, e com quem, brincava aos pais e aos filhos, que me deixava ver a dela se eu lhe mostrasse a minha, nunca passei dos rudimentos da coisa, nessa altura éramos inocentes demais, jovens demais, nem os problemas eram os pormenores, os problemas viriam a colocar-se mais tarde quanto à abrangência, quanto ao contexto. Entre as primas, os dois ou três anos de diferença que levavam de avanço de mim, no máximo quatro, naquela idade uma diferença enorme, não permitia que me atrevesse a colocar em causa a sua autoridade, limitava-me a cumprir, a cumprir e a esforçar-me, como qualquer bom aluno, mais a mais adorava as lições.

Há coisas para as quais ninguém nos prepara, nem pai nem mãe, daí ter ficado assustado com o contexto, com a abrangência e a escuridão, com a situação. Já nessa altura a Lili cheirava a cosméticos, e pintava as unhas de vermelho vivo, as dos pés também, e virava ou revirava as pestanas com um alicate próprio, especial, e mal saía do liceu pintava os lábios do mesmo vermelho vivo das unhas, talvez por isso não lhe estranhei o sabor, por lhe adivinhar a cor mesmo no escuro, ainda hoje sei de cor o sabor do vermelho, de outras cores nem tanto mas do vermelho sim, é um sabor adocicado, e se demorasse a língua nele, macio, escorregadio, deslizante. Inda alimento uma especial predilecção pelo vermelho, não sei, ficou-me apesar da escuridão uma sensação agradável a emanada do vermelho, dizem ser uma cor quente, e confirmo, quentíssima, sei-o porque lhe toquei levemente com a ponta dos dedos, na boca entreaberta, primeiro no lábio superior, depois no inferior, quentes, macios, escorregadios, e quando me tragou o dedo mudei de mão, procurei-lhe o lóbulo da orelha no sombrio negrume dessa tarde quente, a veia sobressaindo do pescoço, lembro-a como se fosse hoje, ambos arfando, numa pressa despida de urgência, um vagar comprometido apressando-nos, os meus olhos chispando na ponta dos dedos como dois vaga-lumes, os seios duros, empinados, de bicos turgidos, nunca mais esqueci, os beijos doces, a boca doce, além de vender cosméticos a mãe fazia bolos para fora, fora ela quem fizera o bolo de anos para a Tininha da Nau, outra que não vejo há quase quarenta anos, depois da morte do Zé Pica a família desapareceu daqui, trespassaram o café e desapareceram, iam casar dizia-se, um acidente estupido digo eu, e não foi o único porque passadas semanas morreria o Neves, quase no mesmo local. Estive para comprar a mota de um, depois a do outro, mas desisti, estavam amaldiçoadas. Estariam ?

Ninguém nos prepara para coisa nenhuma, ninguém, a mim ninguém me preparou e na altura fulcral embatuquei, nem pai nem mãe nem ninguém me dissera vez alguma que o meu corpo era uma máquina complexa e poderia acontecer nem eu, um dia, lograr dominá-lo. Eu sabia como proceder quando a morta se afogava, ou não pegava, ou quando enratava, não desenvolvia, ou se ia abaixo, mas com a Lili de nada me serviu toda essa sabedoria, pois que, quando até com as pontas dos dedos via, nem era já eu que o fazia por nem saber no momento o que fazer e a inusitada situação me deixar a tremer, afónico e a tremer, apesar de entender todo aquele calor abrasador e os dedos lépidos escorregando-lhe para as virilhas tal o meu tremor, todo eu possuído por uma atrapalhação atrapalhada, e o pânico sentido ao senti-la molhada explicaram uma desorientação tal que me levou a beijar-lhe solenemente as unhas encarnadas, como quem perante uma rainha se baixa e beija em devoção, como inda hoje de quando em vez faço na igreja em oração.

Nem pai nem mãe nem irmão nem amigo ou vendilhão me falara e preparara alguma vez p’ra tal turbilhão e, quando na mesma escuridão que me embotava o espirito a Fati e o Pereira pareciam planar, quebrei, incapaz de respirar, de pensar, de ajuizar, de agir, tendo sido então que, tomado de um furor viril, tomei febril decisão final e que durante anos carreguei às costas como um animal, até que a entendi, até que me entendi. Foi fatal.

Na sombra escura ergui-me atabalhoadamente e vesti-me, e sem mais dali parti. Só muitos anos depois admiti ter fugido dela e me arrependi, temi as consequências, a verdade, para além de todas das desculpas com que tantos anos me enganei, foi que fui eu que fugi, fugi de mim. A desenvoltura dela face à minha inexperiência e atrapalhação assustara-me.

E agora ? Que fazer ?

Não encontrando a resposta soçobrei, e, ferido no meu orgulho, ferido mas não abatido, fugi. 

Claro que, como com muitos de nós acontece a resposta certa veio depois, muito depois, mas não viera na hora, nem na hora certa nem cinco minutos depois, cinco minutos ter-me-iam salvado de mim, cinco minutos teriam bastado para superar o meu bloqueio, mas irremediavelmente nem cinco minutos me foram concedidos.

Durante os dias e semanas que se seguiram evitei passar na avenida dela, furtei-me a aparecer nos sítios que ela frequentava temendo encará-la, encará-la seria confrontar-me comigo mesmo, com as minhas insuficiências, que nessa época e por esses dias estavam muito longe ainda de terem sido ultrapassadas.

Que poderia eu ter-lhe dito ? Que deveria ter-lhe dito ? Como confessar-lhe a minha incapacidade para lidar com a situação ? A minha cobardia ?

Providencialmente o destino veio em meu auxílio, o destino ou a desdita.

Do outro lado do mundo, na Venezuela, um garboso oficial de marinha dos seus vinte e poucos anos atravessava a zona portuária de Maracaíbo quando, do alto de um guindaste um contentor se soltou indo por ali abaixo e esmagando-o. Teve morte imediata esse saudoso eborense. Não me recordo já dos pormenores, se o corpo voltou, se foi enterrado cá, sinceramente não me consigo recordar, o que recordo com dor e com um envergonhado alívio é da família enlutada e destroçada, e o facto da própria mãe, e da Lili, sua irmã, ambas de negro, terem deixado de vez a cidade. Até hoje. Obrigado e perdão Lili, poupaste-me a um vergonhaço.

Poupei-me a um vergonhaço, mas não a um peso na consciência. Uma vez mais aprendi demasiado tarde. Tem sido o azar da minha vida esta aprendizagem tardia de tudo. Só muito mais tarde vim a ler Stendhal e a perceber, a entender e aprender com ele que “…o momento mais desejado para um namorado, a primeira intimidade com uma nova conquista, pode tornar-se o seu momento mais angustiante… “

Até a ler comecei tarde demais…………………………

             https://pt.wikiquote.org/wiki/Stendhal