Patranhas. São tudo
patranhas. Fugi porque senti medo. Ninguém me preparara para aquilo. Nem ao
menos me avisara, e eu era demasiado novo.
E
agora ? Que faço ?
Ruborizado,
o coração batendo numa cadencia frenética, a mil “rotações” por minuto, todo eu
suando, cheio de suores frios, o tacto embotado, os olhos na ponta dos dedos
devido à escuridão, os dedos tentando ver tudo, desvendar tudo, entender,
perceber, fazer um juízo que me dissesse como proceder a seguir, mas não, a
excitação cegava-me mais que a escuridão toldando-me o raciocínio. Senti-me
cercado, aprisionado, e ao não vislumbrar uma saída senti medo.
E
agora ? Que fazer ?
E
não me ocorria resposta nenhuma. O tempo esgotava-se tanto mais depressa quanto
mais a situação que se me oferecia me prendava, e assustava.
As
voltas que o mundo dá, de nós quatro naquela tarde só eu resto. O Pereira
morreu há uns anos, nem lembro já de quê, acho que de overdose, a Fati, sua
mestra e fiel companheira faleceu há uns trinta anos, talvez mais, talvez nem
tantos, quem a recorda já ? Esclerose múltipla lembro-me de ouvir dizer. Dessa
tarde resto eu, com os cinquenta passados, eu e quem sabe se a Lili, que nem
vejo há mais de trinta anos, trinta ? Bem mais. Será viva ainda ? Não, minto. A
memória trai-me. Ela e a mãe deram-me boleia uma vez. Uma directa, numa
sexta-feira, de Vale de Zebro a Évora, a mãe vendia cosméticos, era agente ou
representante de uma qualquer marca, e o carro tresandava a pó de talco e a
cremes variados.
Não
as reconheci quando estendi o polegar ou nem o teria feito. Depois da minha
fuga, assustadíssimo diga-se em aval da verdade e para não ser mal
interpretado, não nos viramos mais.
Nem
recordo tão pouco se bati com o portão da garagem ao sair ou se o fechei
devagar, recordo simplesmente que a luz forte do sol naquela tarde me cegou, a
mim, que vinha cego da escuridão, a mim, a quem a escuridão assustara e somente
com a ponta dos dedos conseguira ver alguma coisa.
Eu
teria o quê ? Dezasseis, dezassete anos ? Não sei bem e nem interessa, estava
habituado a que as primas fizessem tudo, me conduzissem, me serenassem, me
acalmassem se prestes a explodir, lembro ainda a voz sussurrada da Lurdes,
acalma-te, vai devagar, pára um bocadinho, não acabes já, temos o dia todo,
controla-te. Mas isso era diferente, com ela era diferente, com elas era outra
coisa, com elas iria até ao fim do mundo, aquilo eram pormenores, mas o caminho
? Quem me ensinava o caminho ? As peculiaridades e as particularidades do
caminhar ? Como pisar ? Como avançar ? Como reagir, e mais importante ainda,
como agir ? Que esperar ? Que fazer ?
Com
a Miquelina tudo fora sempre fácil, fácil demais, com ela, que depois teimou
que lhe chamassem Michele, e com quem, brincava aos pais e aos filhos, que me
deixava ver a dela se eu lhe mostrasse a minha, nunca passei dos rudimentos da
coisa, nessa altura éramos inocentes demais, jovens demais, nem os problemas
eram os pormenores, os problemas viriam a colocar-se mais tarde quanto à
abrangência, quanto ao contexto. Entre as primas, os dois ou três anos de
diferença que levavam de avanço de mim, no máximo quatro, naquela idade uma
diferença enorme, não permitia que me atrevesse a colocar em causa a sua
autoridade, limitava-me a cumprir, a cumprir e a esforçar-me, como qualquer bom
aluno, mais a mais adorava as lições.
Há
coisas para as quais ninguém nos prepara, nem pai nem mãe, daí ter ficado
assustado com o contexto, com a abrangência e a escuridão, com a situação. Já
nessa altura a Lili cheirava a cosméticos, e pintava as unhas de vermelho vivo,
as dos pés também, e virava ou revirava as pestanas com um alicate próprio,
especial, e mal saía do liceu pintava os lábios do mesmo vermelho vivo das
unhas, talvez por isso não lhe estranhei o sabor, por lhe adivinhar a cor mesmo
no escuro, ainda hoje sei de cor o sabor do vermelho, de outras cores nem tanto
mas do vermelho sim, é um sabor adocicado, e se demorasse a língua nele, macio,
escorregadio, deslizante. Inda alimento uma especial predilecção pelo vermelho,
não sei, ficou-me apesar da escuridão uma sensação agradável a emanada do
vermelho, dizem ser uma cor quente, e confirmo, quentíssima, sei-o porque lhe
toquei levemente com a ponta dos dedos, na boca entreaberta, primeiro no lábio
superior, depois no inferior, quentes, macios, escorregadios, e quando me
tragou o dedo mudei de mão, procurei-lhe o lóbulo da orelha no sombrio negrume
dessa tarde quente, a veia sobressaindo do pescoço, lembro-a como se fosse
hoje, ambos arfando, numa pressa despida de urgência, um vagar comprometido
apressando-nos, os meus olhos chispando na ponta dos dedos como dois vaga-lumes,
os seios duros, empinados, de bicos turgidos, nunca mais esqueci, os beijos
doces, a boca doce, além de vender cosméticos a mãe fazia bolos para fora, fora
ela quem fizera o bolo de anos para a Tininha da Nau, outra que não vejo há
quase quarenta anos, depois da morte do Zé Pica a família desapareceu daqui,
trespassaram o café e desapareceram, iam casar dizia-se, um acidente estupido
digo eu, e não foi o único porque passadas semanas morreria o Neves, quase no
mesmo local. Estive para comprar a mota de um, depois a do outro, mas desisti,
estavam amaldiçoadas. Estariam ?
Ninguém
nos prepara para coisa nenhuma, ninguém, a mim ninguém me preparou e na altura
fulcral embatuquei, nem pai nem mãe nem ninguém me dissera vez alguma que o meu
corpo era uma máquina complexa e poderia acontecer nem eu, um dia, lograr
dominá-lo. Eu sabia como proceder quando a morta se afogava, ou não pegava, ou
quando enratava, não desenvolvia, ou se ia abaixo, mas com a Lili de nada me
serviu toda essa sabedoria, pois que, quando até com as pontas dos dedos via,
nem era já eu que o fazia por nem saber no momento o que fazer e a inusitada
situação me deixar a tremer, afónico e a tremer, apesar de entender todo aquele
calor abrasador e os dedos lépidos escorregando-lhe para as virilhas tal o meu
tremor, todo eu possuído por uma atrapalhação atrapalhada, e o pânico sentido
ao senti-la molhada explicaram uma desorientação tal que me levou a beijar-lhe
solenemente as unhas encarnadas, como quem perante uma rainha se baixa e beija
em devoção, como inda hoje de quando em vez faço na igreja em oração.
Nem
pai nem mãe nem irmão nem amigo ou vendilhão me falara e preparara alguma vez
p’ra tal turbilhão e, quando na mesma escuridão que me embotava o espirito a
Fati e o Pereira pareciam planar, quebrei, incapaz de respirar, de pensar, de
ajuizar, de agir, tendo sido então que, tomado de um furor viril, tomei febril
decisão final e que durante anos carreguei às costas como um animal, até que a
entendi, até que me entendi. Foi fatal.
Na
sombra escura ergui-me atabalhoadamente e vesti-me, e sem mais dali parti. Só
muitos anos depois admiti ter fugido dela e me arrependi, temi as
consequências, a verdade, para além de todas das desculpas com que tantos anos
me enganei, foi que fui eu que fugi, fugi de mim. A desenvoltura dela face à
minha inexperiência e atrapalhação assustara-me.
E
agora ? Que fazer ?
Não
encontrando a resposta soçobrei, e, ferido no meu orgulho, ferido mas não
abatido, fugi.
Claro
que, como com muitos de nós acontece a resposta certa veio depois, muito
depois, mas não viera na hora, nem na hora certa nem cinco minutos depois,
cinco minutos ter-me-iam salvado de mim, cinco minutos teriam bastado para
superar o meu bloqueio, mas irremediavelmente nem cinco minutos me foram
concedidos.
Durante
os dias e semanas que se seguiram evitei passar na avenida dela, furtei-me a
aparecer nos sítios que ela frequentava temendo encará-la, encará-la seria confrontar-me
comigo mesmo, com as minhas insuficiências, que nessa época e por esses dias
estavam muito longe ainda de terem sido ultrapassadas.
Que
poderia eu ter-lhe dito ? Que deveria ter-lhe dito ? Como confessar-lhe a minha
incapacidade para lidar com a situação ? A minha cobardia ?
Providencialmente
o destino veio em meu auxílio, o destino ou a desdita.
Do outro
lado do mundo, na Venezuela, um garboso oficial de marinha dos seus vinte e
poucos anos atravessava a zona portuária de Maracaíbo quando, do alto de um
guindaste um contentor se soltou indo por ali abaixo e esmagando-o. Teve morte
imediata esse saudoso eborense. Não me recordo já dos pormenores, se o corpo voltou,
se foi enterrado cá, sinceramente não me consigo recordar, o que recordo com
dor e com um envergonhado alívio é da família enlutada e destroçada, e o facto
da própria mãe, e da Lili, sua irmã, ambas de negro, terem deixado de vez a
cidade. Até hoje. Obrigado e perdão Lili, poupaste-me a um vergonhaço.
Poupei-me
a um vergonhaço, mas não a um peso na consciência. Uma vez mais aprendi demasiado
tarde. Tem sido o azar da minha vida esta aprendizagem tardia de tudo. Só muito
mais tarde vim a ler Stendhal e a perceber, a entender e aprender com ele que “…o
momento mais desejado para um namorado, a primeira intimidade com uma nova
conquista, pode tornar-se o seu momento mais angustiante… “
Até a
ler comecei tarde demais…………………………