Quando,
casualmente presenciei a cena, estava bué de longe de imaginar a correlação que
se iria desenhar entre essa ocorrência e uma outra com a qual me depararia logo
na manhã seguinte.
É
certo que eu festejara demasiado naquela tarde, brindes e mais brindes, brindes
por isto e por aquilo, por este e por aquela, de modo que, embora a tarde
estivesse fria e ameaçando acabar em menos de um ai, sentei-me placidamente na
espreguiçadeira da varanda beberricando os restos do famoso wisqui que o meu
sobrinho favorito (e único) me trouxera das highscotlands. Ele, licenciado em computacia
e a companheira, licenciada em dentologia, tinham-se fartado de aturar esta
canalha e haviam há largos meses buscado outra zona de conforto na Suécia, pelo
que nem sei como apanharam um ferry, ou um charter para a Noruega, dali para as
Scotlands, trânsito via Edimburgo, em cujo free xop airport compraram uma
garrafa de 1,5L, das que por aqui nem vemos, genuíno old scotland malt que
carregaram até Évora para oferecer cá ao vosso rapaz, Capice ? Foi a desgraça da
visita, perdão, a alegria da visita, e os copos tiniram como nas mãos de gente
grande.
Mas,
dizia eu, acabara de me refastelar na espreguiçadeira quando, a grande
velocidade, um jeep BMW X1, preto, faz uma travagem abrupta mesmo na minha
frente, guina à direita, galga o passeio e numa manobra única e rapidíssima, de
mestre mesmo, fica impecavelmente estacionado no passeio fronteiro entre dois
outros carros. Foi então que me dei conta do inconcebível da coisa, decidida,
airosa, atenta, vigilante, uma loiraça sai do JU, lembro-me das letras da
matricula porque na noite anterior tivera insónias e vira um documentário na
National Geographic, aliás um dos meus programas preferidos, sobre a II GG e os
célebres aviões JU alemães, o Ju-87 Stuka e o Junkers JU-88 bomber, que isto
anda tudo ligado, e eu, mesmo genuinamente etilizado, reparei claramente,
embora ao lusco-fusco, que a loira esperava alguém, quando, também luzidio e
preto, parecia um carro presidencial, numa travagem decerto assistida por ABS,
igualmente repentina, um rapagão dos seus quarenta a cinquenta pára, recolhe a
loirinha, vira o Classe C novinho em folha na avenida, que aqui é larga, e se
somem os dois, qual miracle, em menos de dez segundos. Nem pó ficou, só o BMW
X1, preto, JU, pastando no estacionamento.
Eu, que
sempre fui um individuo de imaginação rica e bem mal-intencionado fiquei com o
copo a meio caminho da boca aberta.
Ná
ná, aqui há gato, cheira-me a marosca, e jamais imaginara que a ligeira
curvatura da avenida, larga e com amplo espaço de estacionamento na pacatíssima
zona onde resido, servisse para aventuras de capa & espada ao Pimpinela
Escarlate e sua muchacha. Emborquei o resto do wisqui de um só trago e desejei
sorte aos românticos e apressadinhos mosqueteiros, fechei os olhos, recostei-me
e dormitei até a minha Mimi me saltar para o colo, onde se aninhou pois estava
gelada, tal qual eu quando finalmente dei acordo.
Entrei
em casa, remirei o rótulo da milagrosa garrafita e foi com pesar que atirei com
ela para o balde do lixo, onde mal coube e teve que ficar ao alto. Esqueci a
coisa, lembrei-me que nem sempre devemos pensar o pior, ou o melhor, que enfim,
a urgência podia ser outra, e esqueci.
Quando
no day after me dirigi à Repartição de Finanças não bati com o nariz na porta
porque não havia porta, a dita jazia p’lo chão em mil bocados que o homem da
vidraria, um individuo simpático que detesto desde a minha juventude por me ter
roubado debaixo das barbas uma das minhas namoradas, com a qual aliás teve o
desplante de se casar, mas dizia eu, apanhava os vidrinhos e tirava medidas com
uma fita métrica do BE (oferta certamente da campanha eleitoral) para ir cortar
e vir instalar um novo vidro, aliás repito-me, perdoem-me a repetição, de
generosas medidas e considerável espessura, que eu nem imagino quem ou como
teria sido partido. Dei por mim correndo para a mota, estacionada a trinta
metros e que a camioneta da vidraria numa manobra manhosa ameaçava atirar ao
chão. (se o tipo gostasse tanto de mim como eu dele decerto passaria por cima
da mota).
-
Quer que desvie a mota amigo ?
Mas
não, não foi necessário, ele bufou e voltou a bufar agarrado ao volante e às
manobras, para não dar parte fraca, enquanto eu o animava antes que o homem, de
tao vermelho que estava, rebentasse ali à minha frente.
- Já
tem trabalho para a manhã toda não amigo ?
-
Sim tenho, ainda que felizmente trabalho não me falte, mas já me atrapalhou o
dia todo esta merda, nem sei como irei dar conta da agenda, mais valia que
tivessem ido foder pra outro lado, ou noutro dia qualquer.
Carregou
no acelerador, a camioneta largou uma baforada de fumo negro e abalou
chocalhando rua do Salvador abaixo na urgência da vidraça, enquanto eu voltava
à fila da repartição, esclarecendo-me e sossegando-me a mim mesmo, de que
aquele “vão-se foder p’ra outro lado” não me era dirigido nem tinha nada a ver
comigo. Sentei-me num cadeira que entretanto vagara e fiquei olhando com a
habitual cara de parvo e displicência para o resto do pessoal igualmente
aguardando a sua vez, e nisto entre as muitas conversas que se entrecruzavam na
sala uma delas me chamou a atenção.
-
Pois, parece que um dos directores e uma estagiária, ou dessa coisa dos POC’s,
chegaram ali ontem ao cair da noite e com a pressa nem entraram, ter-se-ão
encostado ao vidro enquanto ele tentava meter,
isto já sou eu a pensar (eu,
um dos indivíduos em espera na sala e não eu mesmo empurrando o vidro, não cá o
rapaz) enquanto ele tentaria possivelmente enfiar a chave na fechadura, o vidro
tem um vão muito grande, terá cedido, e se calhar quando ele a meteu pum
catrapum ! O vidro cedeu e badam !
Ora
nada disto obsta a que possamos malevolamente imaginar uma cena canalha, ela
aflitinha, encostada e apertada contra o vidro e tentando simultaneamente
manter a saia levantada e a cueca desviada, puxada, afastada, enquanto ele,
excitado e vermelho, ou vermelho e excitado, a palma da mão espalmada no vidro, amparando-se nele, um pé firme, outro permanentemente escorregando no granito
super alisado de tão pisado, atrapalhando-o, a outra mão tentando manter aberta
a braguilha e meter a chave na fechadura, submetido à tensão exorbitante do
momento, a palma suada escorregando-lhe no vidro, desencaminhando-o da
fechadura, o suor escorrendo-lhe da testa, embaciando-lhe os óculos,
os dois ofegantes, o colarinho empapado de suor, a gravata esganando-o e ele
com vontade de a desapertar e atirar com ela ao chão, mas como ? Se só tem duas
mãos ?
Encontravam-se
absorvidos por toda esta ginástica e tensão que a situação gerava quando, não
aguentando tanta pressão o vidro badam ! E caem um sobre o outro no meio do
granizo em que o vidro se transforma. Repentinamente um pirilampo amarelo
piscando insolentemente sobre a trave mestra da porta e uma irritante sirene
piri, piri, piri, piri,
-
Não tardará a policia aqui, a policia e uma multidão de curiosos, estamos
fodidos Cremilde.
Passada
a estupefacção levantam-se gatinhando, amanham-se, sacodem-se, terão vociferado
em uníssono contra o inusitado da situação,
- E
agora merda ? Que fazemos ? A ultima coisa que precisava era ser vista aqui
neste estrelaio, desta é impossível que a tua mulher não venha a saber, e que vou
eu dizer ao Valentim ?
Confesso
que, quando a Mimi me saltara para o colo nem reparara nas horas, nem reparei
sequer que descalçara os ténis, caríssimos, que passaram a noite na varanda,
não reparei no frio do anoitecer anestesiado que estava, não reparei no jeep
BMW X1, JU, não reparei se ainda estava ou se já não estava, não reparei a que
horas voltaram a busca-lo, nem reparei que caía de sono nem em quem me meteu
vestido na cama, somente me recordo de ter dormitado, e de ter sonhado, com um BMW
X1 e um Mercedes Classe C novinho em folha, com a mota, com o imposto, com as
Finanças, com o vidro partido, com o merdas que me roubara a namorada, com a
tagarelice na sala de espera, a brejeirice de uns e de outros, é verdade que
isto anda tudo ligado mas já nem sei se é redondo se quadrado, se sonhei ou se
é facto verificado, e antes que a minha Luisinha me dissesse alguma coisa arrebanhei
os copos todos na sala, aspirei os restos de caju e as cascas de amendoim e
tremoços, os restos pisados dos salgadinhos e outros aperitivos entranhados no tapete de Arraiolos.
Diga-se em meu abono e da verdade que a carpete é linda, grande, cara, e que agora com a crise o melhor é estimar esta porque já nem há dinheiro pra outra que isto anda tudo ligado, a crise é geral e se eu me lixar aqui quem se fode são os de Arraiolos.
Diga-se em meu abono e da verdade que a carpete é linda, grande, cara, e que agora com a crise o melhor é estimar esta porque já nem há dinheiro pra outra que isto anda tudo ligado, a crise é geral e se eu me lixar aqui quem se fode são os de Arraiolos.
Capice
?