Dizer-vos
quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é impossível, pois não
recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição. É certo
o tempo ter passado, mas não esta lembrança gravada na minha mente como se
escrita na pedra e desde o instante em que pela primeira vez a vi.
Dizê-la
bonita, linda, simpática, não passaria nunca de frase comum, quando o que eu
pretendo é precisamente assinalar nela o oposto, o que tem de incomum que tanto
me impressionou primeiro e depois cativou, para sempre.
Os
olhos amendoados e sorridentes, vivos, emoldurando-lhe a beleza e extravasando
confiança contagiante. Olhos que falam, que interrogam, apoiam e prometem,
olhos que julgam, que submetem e libertam. Foram essas janelas da alma que,
muito antes de tudo, me permitiram conhecê-la por dentro, sondá-la como quem
desvenda as profundezas do mar e me impeliram a atirar a âncora deste amor imorredoiro.
Quais
ferramentas dessa leitura também a boca, sempre ridente, transbordando sensação
infinda de bem-estar, os dentes alvos, a conversa agradável e interminável à qual
me era doloroso pôr fim e que a todo o momento procurava atear.
Tudo
isto um rosto enquadrava, aprazível, viçoso de ternura e meiguice, tanto assim
era que me viciei nos seus carinhos, que hoje não dispenso nem disperso, antes
procuro e alimento como coisa natural e simultaneamente fulcral ao meu
sustento. Recordo como, de cada vez que o mundo me assustava, ela ali estava, indispensável, imperecível, sólida, inamovível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as
dores.
Por
isso esta minha vida tem sido vivida dispensando regularmente a
generosidade que outras fontes me oferecem numa cadência ritmada, mas às quais respondo talvez com insensatez e ingratidão, por culpa duma questão de
princípios em mim inculcada há muito e me dita e ordena, alheia a tudo, que
não, que não aceite nem sucumba e recorde sempre esta divida que pretendo quitar, mantendo insinuado na memória das gentes ser
falso que, desconsideração ou desarmonia me tenham habitado vez alguma a ética
ou que, por um absurdo ilógico ou inadvertência minha eu tenha permitido
deduzir, ou intuir a outrem ter a disciplina da minha fidelidade sido uma
só vez quebrada. Não foi.
Não,
não o foi nem por um momento de distracção ou ambivalência polémica sequer o
foi, ou por relapso, menos ainda inconscientemente, por tédio ou desolação,
maldade ou propósito, que não foi, nem foi nem esta minha identidade deliberou
alguma vez, por alucinação ou demência tão pouco subtrair-se à alçada generosa
das regras que decididamente a razão cultivou em mim desde que me conheço e que
ainda retinem, apelando à imortalidade ou emergência reputada indubitável à
salvaguarda do meu prestígio, à preciosidade do carácter que propagandeio e
atentamente vigio pois, neste âmbito não admito contradição ou paradoxo, nem
que a mínima inferência seja retirada da esfera delicada das amizades e
matérias apaixonantes que cultivo, a fim de que uma qualquer alucinação
polémica e estéril subverta as minhas melhores intenções, falaciosamente
procurando provar a ingratidão em quaisquer das atitudes por mim tomadas.
Não
busco a imortalidade, antes a constância, académica ou não, e jamais verão em
mim embaraço ou precedente, lamento ou risota que conflituem com a argumentação
da verdade e da formalidade que a minha exposição e transparência me consentem,
e a que me obrigam, e permitam minimamente ou sequer imaginar neles motivo de
punição ou duma qualquer prática axiomática e impessoal que tanto me esforço
por combater.
Nem
saturação nem tédio alguma vez foram instilados em mim de modo que pudessem
verter no meu caminhar o pez da desolação ou o vírus da chacota, inquinando um
prolongado e árduo trabalho de compilação da confiança que tornou impenetrável o
pedestal a que te guindei, em que obsequiosamente te coloquei, imune a alusões
soezes e a oportunidade de pendências que não foram sequer afloradas uma única
vez, por mais delicadamente que tivessem procurado instilar em mim o veneno da
dúvida, ou da soez divisão entre nós. Por isso, por tudo isso me custa agora
imaginar pelo menos que se te enuble a aura ou dissipe o karma, obliterando-me
a esperança e toldando-me o raciocínio e o devir.
Pressinto
aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do absurdo fim desta
história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo,
numa só vontade. Sinto-o quando à noite te abraço e o teu respirar cansado me
assusta, sinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o porque
voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não sentir que preenches
como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas não
comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu
colo, tal qual uma aparição ou um sonho, sinto-o no modo como os teus olhos me
fitam, sinto-o nesta deliquescência precoce que nos cerca e confunde, noto-a
nos projectos que já não alinhavamos.
A imortalidade
é filha da memória, as lembranças inesquecíveis são filhas e fruto de momentos
felizes e isso, sinto-o meu amor, nunca jamais em tempo algum me será tirado…
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