quarta-feira, 4 de novembro de 2015

285 - MESSAGE TO GENOVEVA MARUJO, STOP


Lembro-me tal qual aquele dia estivesse sendo vivido hoje, ela mirando-me de cara espantada e sustendo a custo a risota, eu um pouco surpreendido ouvindo uma pormenorizada explicação. Para ser franco nem estava à espera, mas ouvi-a com agrado e a coisa ficou, e de tal modo ficou gravada na minha memória que hoje, passadas quatro décadas, mais coisa menos coisa, a recordo como naquele dia e me socorro dela, dela da explicação, lembrando-lhe a voz grave e sonora, vibrante de empatia.  

- Qual quê meu menino, (avançou ele para mim) nem tu nem ninguém seria capaz de tal, há modos de se fazerem as coisas, já viste alguém subir a um telhado sem a ajuda duma escada ?

Tudo porque me ouvira murmurar ao ouvido da Genoveva Marujo, que se sentava a meu lado, qualquer coisa do género de:

- Grande cabecinha, como é que este caramelo foi capaz de tamanho poema ? Terá sido escrito de rompante ? De seguida ? Foi inspiração ? Foram carradas de inspiração decerto.

E o caramelo era nem mais nem menos Fernando Pessoa, em cuja quarta ou quinta aula já íamos e que fazia a Genoveva Marujo parecer um peixe, tantos os bocejos que a coisa lhe dava. No seu mister nem tempo tinha para bocejar, nas horas livres tirava cafés atrás dum balcão ali à “Estrela da Mouraria”, um pequeno mas convidativo café que em tempos existiu, e entre uma bica e outra nem vagar teria para se coçar.

- Pois meu menino (continuou ele explicando) o autor não fez nenhuma escada mas terá elaborado um esquema a partir do qual e aos poucos foi construindo o seu poema, não esqueçamos que demorou vinte anos a escrevê-lo, vinte aninhos.

Ninguém tem capacidade ilimitadas, continuara ele, até a NASA concebeu o TITAN com vários andares pois de outro modo nunca conseguiria chegar onde chegou, com o TITAM ou com o SATURNO V, o segredo está em dosear as coisas, disse muito convicto.

E, pegando no giz, traçou no quadro vários traços, uns verticais, outros horizontais e em meia dúzia de palavras expõe ante a turma toda a estrutura ou o esquema do poema a “Mensagem” e fê-lo com uma desenvoltura e uma simplicidade tais que só não me surpreendeu por já o ir conhecendo e aos seus modos de fazer de nós a obra que certamente Deus teria ambicionado e de que ele seria na terra um mero obreiro.

De seguida perdeu-se, ou melhor, esqueceu-se do tempo na descrição de pormenores sobre o dito poema, o facto de o regime não o ter acolhido com bons olhos e devido a isso Fernando Pessoa não ter ganho mais que o segundo prémio na categoria do SPN, (mais tarde SNI) que contudo o premiou com  um valor em numerário idêntico ao primeiro lugar. “Na primeira categoria de poesia” ficaria o poema “A Romaria”, do padre Vasco Reis, um jovem missionário de Moçambique. O padre Reis na altura com vinte e quatro anos, passaria o resto da vida com um peso na consciência por ter ganho ao grande Fernando Pessoa.

O padre Geraldes alongaria ainda a sua explanação fazendo-a recair sobre a idoneidade e até capacidade dos próprios juízes para avaliarem e classificarem um poema muito acima de tudo e todos, talvez mesmo das suas próprias capacidades. A corruptela ou enviesamento dos critérios de avaliação foram sobejamente torcidos para que o primeiro lugar não fosse atribuído a um critico do regime, mas sim a um outro que de honesto pasmou com a marosca.

- Enfim meus filhos, preparem-se pois a vidinha é isso é mesmo assim, em maior ou menor grau todos vocês correm o risco de vir a ser mandados por gente incapaz, que não estará à altura, por vezes estará abaixo de vós mesmos, mas é a vida, manda quem pode e a quem não pode só lhe restará obedecer…

E também nos explicou ir rareando gente assim honesta, coerente, competente, consequente, alertando-nos para o facto de, infelizmente Deus andar distraído há muito tempo. Enquanto isto a Genoveva colando a perninha e cochichando para mim:

- Ainda aparece a PIDE e o leva preso…

E enfiando-me o cotovelo pelas costelas encostava à minha a sua coxa roliça que mais parecia uma botijinha cheiinha d’águinha quentinha, e agora desculpem-me mas até me perdi, de repente esqueci aquele bom padre, amigo, simpático, ele e as suas lições, isto passa-me, é um bloqueio passageiro, nunca mais vi a Genoveva e as tranças que adorava destrançar e desfazer, chamava-lhe Eva quando todo aquele cabelo lhe cobria os seios alvos, de grandes auréolas. Uma vez quando estava na marinha a fragata em que me encontrava embarcado beijou o Circulo Polar Árctico, o Tenente Ginete alvoroçado:

- Olhem-me aquela auréola boreal ! 

E nem sei por que carga de água ainda hoje quando se fala em auroras boreais me lembro logo das auréolas da Genoveva Marujo, como lembrei naqueles dias e dias seguidos no enorme e vasto mar salgado, quando toda a gente se fechava em si mesma depois de quase quatro meses seguidinhos de mar. Eu confesso, por vezes fechava-me sonhando com a Genoveva, com Deus, com o padre Geraldes, com Fernando Pessoa, com Eva de cabelos soltos e eu, eu e ela pecando, nós dois de maçã na mão ora dando eu ora dando ela uma dentadinha e assim passei aquele exercício da NATO em alto mar e em mares hostis, na peugada e caça de um inimigo inventado pelos almirantes e que no-lo vendiam em sermões e palestras p’ra justificarem as suas alegres vidinhas, sendo nesses momentos em especial que recordava o Padre Geraldes e quanta razão ele tinha quando:

- Preparem-se meus filhos pois a vidinha é mesmo assim, em maior ou menor grau todos vocês correm o risco de vir a ser mandados quantas vezes por gente incapaz, mas é a vida, manda quem pode e quem não pode obedece… E também eu recordei mais uma vez quanto e infelizmente Deus há muito tempo andaria distraído.

Era nessas horas mortas, em que o inimigo nem se dignava aparecer que eu, sobremaneira me isolava em oração e deixava divagar o espírito pelo paraíso, ou fechado na camarata ou embrulhado em tudo que pudesse e, sentado no chão da varanda da ponte olhando o mar e as vagas, encolhendo-me cada vez que a proa do navio cortava uma onda maior distribuindo salpicos pelo convés, pelas armas e até por mim que nem na ponte estava a salvo das águas geladas, nem da Genoveva quentinha cujas maminhas, perdão, cujas auréolas tinham marcado a minha memória a ferro e fogo de tal modo que nas noites geladas em que o navio ludibriando os inimigos cortava silencioso o mar de Barents rasgando a aurora boreal com as antenas e os mastros, imperando o silencio absoluto e total da rádio, do radar, do sonar e até do cagar, ai de quem se atrevesse a bater o pé com mais força não fosse algum submarino inimigo ouvir-nos e no meio de todo aquele silêncio só Deus e o cortar do fio das aguas geladas pela proa do navio se ouvia, isso e o meu coração batendo descompassado traço ponto traço stop ponto ponto stop traço traço stop traço traço ponto ponto stop, num morse sem fim que as minhas mãos em oração debitavam, esperançadas que a mensagem chegasse a Genoveva Marujo que nunca mais vi, mas cujo sonho me levou a ganhar aquela batalha e vencer os inimigos da pátria mãe, mãe há só uma e foi precisamente essa que após seis duros meses no mar me esperava na Base Naval do Alfeite, essa e aquela que hoje está a meu lado e nunca me abandonou, a minha Luisinha, cujas ordens suplantaram há muito as dos almirantes que se lembravam de brincar às guerras com barquinhos e inventavam inimigos que inda hoje combatemos apesar de velhinhos aposto, e aposto que sentados numa esplanada solarenga em redor de uma mesa onde Genoveva, solicita e de peito generoso, lhes servirá refrescos de alcaparra, salsaparrilha, capilé e groselha acompanhados de uma palhinha e se entretem a enfunar-lhes as velas e a levantar-lhes os mastros dos barquinhos senis carregados de Parkinson e Alzheimer a fim de atirarem bazucadas e estalinhos de carnaval para cima do inimigo.  

Nunca mais vi a Genoveva, nem o padre Geraldes, lembro vagamente termos posteriormente passado ao estudo de Raul Brandão e a dormir as sestas na garagem dela, depois, só muito depois foi a vez de Almeida Garrett, Eça, Aquilino; Cesário Verde, Branquinho da Fonseca, Namora, Soeiro, Régio, a literatura é um mundo não é ?

Obrigado por tudo quanto me ensinou padre Geraldes.



Fernando Pessoa - Pintura Luiza Caetano - Portugal



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

284 - DEMOGRAFIA SEM FIOS... 3 LINHAS…...

                 
                 A manhã sorriu-me, sexta-feira, final de semana, um belo dia de sol e, mal olho as noticias, uma delas incontestavelmente hilariante...

“Governo estuda medidas de apoio à demografia”, não me contive sem soltar duas valentes gargalhadas, nem parei de cantarolar durante a barba e o banho. Para ser franco ainda estou a rir-me. Isto das medidas demográficas não é como as fitas de apanhar moscas que vemos nos cafés, não é atar e pendurar como o chouriço da preta, não se penduram sem mais articulações com outras medidas cuja acção tem que ser despoletada com anos, senão décadas de antecedência. Governar é saber cantar e assobiar ao mesmo tempo e esta gente há quarenta anos que não me alegra. Só como anedotário.

Agora fazemos filhos, e daqui a vinte anos estarão a engrossar as estatísticas do desemprego que ainda deve andar pelas ruas da amargura, ou enxotam-se os ditos para a emigração, ou, pior ainda, pelo caminho que a Europa leva estaremos a empurrá-los para carne de canhão. Sublime, nem o Lomba teria tido ideia melhor. Santa ingenuidade.

Já que vem a propósito conto-vos a história, verídica, do meu vizinho e amigo Guedes, homem probo, exemplar, desempregado há meia dúzia de anos, e que festejou há poucos meses o seu cinquentenário. Desde aí que ninguém o vê, não sai à rua, nem do sofá, nem toma banho, não lava a boca nem se barbeia ou penteia, um verdadeiro troglodita diz a D. Ermelinda, que apesar dos seus quarentas e muitos é linda, está cada vez mais linda, e mais inacessível. Nem pára em casa, isto é um corrupio de carros a ir e vir deixá-la ou buscá-la, ninguém diria que a mestiça geraria tanta empatia, é a mestiça mais branquinha que já vi, mais branquinha que muitas branquinhas mas estou a divagar, estou a perder-me, onde é que eu ia, na D. Ermelinda que de mãos na cabeça vitupera o troglodita que tem lá em casa, não há quem aguente, isto é impossível, até me envergonho de levar alguém a casa, e não havia necessidade, o pior já passou, graças a Deus não devemos um tostão a ninguém e a Belinha já vai orientando a vidinha.

A linda Belinha sai ao pai, nota-se bem que é mestiça embora tal se confunda com um bronzeado imaculado, no resto sai à mãe, aliás sai muito com a mãe, quero dizer saía, já vai saindo sozinha e se em algo difere da mãe é nas preferências quanto a automóveis, D. Ermelinda pendendo mais para carros grandes, Mercedes e BMW, e a Belinha mais modesta, mais pragmática, mais virada para a classe B, Golfs, Nissans, Méganes, Toyotas, Astras e assim. A malta nova tem uma visão variada e mais dilatada dos horizontes desta vida, muito desigual até do irmão, que vive do RSI e não se sabe mais de quê, mas lhe chega para as roupas e ténis de marca que eu nem a invejar me atrevo, é gémeo da Belinha mas ninguém diria, ela uma mulheraça assumida ele um gaiatão ainda, vivendo todos do RSI, nem sei de onde vem tanta fartura naquela casa onde só o vizinho Guedes trabalhava e durante anos e anos vi aguentar com uma pernas às costas aquela casa feliz que contudo, e para falar verdade nunca vi tao feliz como agora, à excepção do Guedes, precisamente ele que era o apoio da família, o cabeça de casal, o pilar, o alicerce e a força daquela casa que parece ter aprendido a viver sem ele, viveria melhor sem ele que agora só “estrova” como a D. Ermelinda de vez e quando lhe atira à laia de motivação fazendo com que todas as cabeças assomem à janela na nossa rua.

Há meia dúzia de anos existia já, frente à casa onde vivo, um pátio com uma série de barracões que seriam para demolir, assim me disseram na altura em que visitei a casa, que estava à venda havia algum tempo apesar de barata, mas na qual ninguém pegava. Mostraram-me inclusive uma muito pormenorizada, muito colorida e muito bonita planta de um parque ajardinado previsto para a área dos ilegais e infectos barracões, uma coisa linda, e, ao ouvido, confidenciaram-me não estar ali a piscina por motivo de taxas e taxinhas camarárias mas que, mal o projecto aprovado ela seria concluída, para gáudio e regalo de todos os moradores desta minha linda urbanização. Comprei a casa sem pensar duas vezes nem olhar para trás, e tivesse eu amigos na banca, como o Joe Berardo ou o Vara ou tantos outros, e não teria adquirido unicamente a minha casa mas toda a fiada delas, todas perspectivadas para a zona mais linda do bairro e igualmente à venda.

Aldrabice, tudo aldrabice e todos uns aldrabões. Quando a comissão de moradores suportando mal os verões, se chegou ao município reclamando da demora no licenciamento do projecto que poria fim aos barracões, ficou sabendo nunca ter entrado ali projecto nenhum, nada, nada mais que conversa fiada e um desenho muito bonito e muito colorido no papel e, claro, uma confidência soprada amigavelmente ao ouvido e acompanhada de uma palmadinha nas costas. Uma pechincha aquela casa, eu que aproveitasse, e aproveitei, eu e mais uma dúzia de parvos.

Mas os tais infectos barracões, ilegais, erguidos em zona agrícola onde a construção estava terminantemente proibida, albergavam uma série considerável de negócios, oficinas e escritórios, dando emprego a um magote de gente. Tanta que na rua inteira e arredores depois das nove da manhã não havia onde estacionar. Era numa dessas oficinas que o preto trabalhava de mecânico, era até muito considerado o meu vizinho Guedes, um dos primeiros moradores da minha rua, muito anterior a mim e feliz proprietário de um T1, lá mais abaixo, onde a avenida faz uma curva. Lembro-me ainda de ver a família feliz, aos fins-de-semana, toda enfiada num Mercedes preto já com uns bons aninhos mas cujo motor e mecânica o Guedes mantinha funcionando como um relógio suíço, a D. Ermelinda na frente, sempre ajeitando as alças do sutiã, tinha um peito admirável, ainda tem mas não é para os dentes de qualquer um, e agora muito menos que refinou o gosto e a auto-estima, esta coisa do desemprego ser uma oportunidade que se abre não é para toda a gente, nem toda a gente entenderá a coisa. O que lhes valia era o carro ser grande, os gémeos atrás e os outros três miúdos, pouco mais que bebés espalhados por ali com as bolas, as bóias, o cão e o gato e nem me alembra mais o quê.

A oficina do Guedes, do Guedes é como quem diz, onde o Guedes trabalhava, foi das primeiras a falir e o preto dos primeiros a ir para a rua. Paulatinamente quase todos os barracões foram fechando e hoje só não sobram os lugares de estacionamento na rua porque alguns vizinhos mantêm os carros parados meses inteiros, por vezes empurrados para ali com os depósitos vazios.

Desse dia em diante a auto-estima do Guedes foi-se apagando até se transformar no trapo que hoje para ali está. Graças a Deus a auto-estima de D. Ermelinda foi aumentando na proporção directa em que o Guedes a perdia e a casa aguentou-se, diria até estarem melhores agora que dantes, por vezes até eu duvido se este ajustamento não terá sido o sucesso que dizem, passo devagar frente à casa e pelas janelas abertas e convidativas vejo o Guedes esparramado num belo sofá de couro, invariavelmente agarrado a uma garrafa de uísque das que nem me atrevo a comprar, nem em promoção, na parede um plasma gigante, cortinados de renda, e não fosse o Guedes por vezes vir desabafar à sacada juraria tudo ir bem no reino da Dinamarca mas ele:

- Apoio demográfico o caralho que os foda ! Cabrões de merda, aldrabões, demografia a puta que os pariu ! Quantas vezes já me foderam o abono de família ? Sempre a reduzir a reduzir ! Nada devo a ninguém ! Cumpram que eu já cumpri e nem devo um tusta que seja a cabrão nenhum !

Acontece que frente ao Guedes vagara um T5, propriedade de um engenheiro incapaz de o pagar, que acabou por se pirar para o Canadá com a famelga e de cujo prédio o banco tomara conta. Ora a D. Emília já tentara com o banco proceder a um ajuste, entregar o T1 pelo T5 e pagar o remanescente, mas o banco não aceitara as condições e cometera a asneira (não confirmada) de estar por obrigação com a Misericórdia guardando o T5 para uma família numerosa de refugiados… A tampa saltou ao Guedes:

Refugiados o caralho ! A caridade deve começar em casa ! Toda a vida paguei os meus impostos e agora para aqueles cabrões tudo e para os tugas nada ! Puta que os pariu ! Também tenho uma família numerosa ! Se fosse no tempo de Hitler já teria ganho uma medalha ! Deus me dê paciência para aturar estes cabrões de merda, paneleiragem ! Vão todos para a cona da mãe !

Realmente ninguém se admira que D. Ermelinda tenha reservas quanto a levar alguém a casa… Com um marido assim coitada… Não entra gente mas sai ela, e sai muito em visitas e cada vez sai mais.

A Belinha segue os conselhos e as passadas da mãe e lá se vai orientando, está bonita, está alta, está altiva, está uma senhora. É ver a deferência com que todos os cavalheiros a tratam quando a vão deixar ou buscar ali, ao princípio da rua, a cinquenta metros de casa.

O mais velho não dá preocupações a ninguém a não ser aos técnicos do RSI que semana sim semana não lhe entram em casa, por ele e por toda a família, todos vivem do RSI e sei que votaram nos mesmos porque várias vezes os ouvi: 

- É preciso não perder o que já conseguimos… diziam.

É boa gente, gente que cumpre o seu dever cívico, gente que conta, gente que vota, as pessoas não são números, as pessoas contam, e os Guedes têm-se orientado bem nos difíceis caminhos que a nossa democracia nos oferece.

Cá por mim acho que deviam legalizar a prostituição. Gosto do meu vizinho e amigo Guedes e sei que seria um estigma que lhe tirariam de cima. Afinal fazem-se tantas leis parvas que a gente nem percebe a urgência, leis para a paneleiragem, p’ra adopção ou coisas do género e de género, da regionalização, da poupança e das gorduras do estado, tudo leis de merda a que ninguém liga, enfim é a nossa sina…

….. Apoio à demografia…. hihihihihihihihihi !

Como diria o Guedes vão-se todos foder………….…..


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

283 - NEM OITO NEM OITENTA ...............................


Ela pousou a mão com cuidado, diria antes com delicada suavidade agarrando com firmeza. Limitou-se a fazer deslizar a mão, como quem toma consciência das coisas, não queria usar de força a mais, desnecessária até e contraproducente naquela situação, pelo que depois de agarrar firme mas escrupulosamente e de feição, rodou cuidadosamente a mão para um lado e para o outro a fim de lhe tomar o efeito e, encostando a perna apressou os movimentos que foram ganhando impetuosidade e persistência, ou cadência e, buscando mais confortável posição e que lhe permitisse aplicar essa força de modo mais prático e proveitoso encostou também o ombro e a cabeça, insistido nos gestos de modo que, ignorando a realidade mas sendo possível observá-la do exterior diríamos encontrar-se em desespero, por fim e numa cadência multiplicada, aplicando simultaneamente mais força na coxa que lhe encostava e no ombro com que empurrava logrou repentinamente o seu objectivo e, nesse preciso momento o sorriso de esgar se lhe transformou num radioso e rasgado sorriso de orelha a orelha, como se da satisfação obtida jorrasse uma luz, uma luz resplandecente, iridescente e maravilhosa que a banhou num jacto quando já desesperava de conseguir os seus intentos e colocava em si mesma a culpa de falta de força ou de jeito, ou de ambas as coisas, quando na realidade sabemos que não lhe cabia a ela a causa de tal imputação, pois toda se aplicara e dedicara afincadamente a uma situação que nem previra e com a qual nunca contara, enquanto nós sabemos quanto o imprevisto pode dar cabo das melhores intenções, e que a falta de planeamento ou de programação nos obrigam ao improviso, quantas vezes sem resultado positivo, proveitoso, ou sequer satisfatório ou aceitável, deixando tudo ao sabor do acaso, ao Deus dará, ao calhas, entregue à sorte, coisa que ela de todo não desejava, não queria, e temia até, como sabemos.

Gostava das coisas dentro de uma certa razoabilidade, nunca esperava nem desejava milagres embora em criança tivesse sido educada num colégio de freiras em Gurué, igualmente e com a mesma fé abjurava o desastre, o imprevisível, o irrealizado ou o objecivo não conseguido. O normal e expectável bastava-lhe, nem tanto ao mar nem tanto à terra, nem oito nem oitenta, a normalidade era a sua praia, era nela que se sentia bem e à vontade consigo mesma e com os outros, pelo que a cena que ora terminara a exasperara e deixara irritada, irritável e com uma compreensível má disposição.

Conhecera-o num congresso de bibliotecários, arquivistas e documentalistas, o seu ar jovial e o porte atlético em contraste com o balofo marasmo da profissão escolhida atiçara a curiosidade dela sobre ele ao ponto de ter dificuldade em o imaginar numa biblioteca, reino do silencio onde um gesto repentino ou inusual não tem lugar, nem sequer concebemos, muito menos ela o conceberia ali, lá, peado, mãos amarradas por um garrote, risos abafados, não andando mas deslizando os pés num sussurro, não, ela nunca o imaginaria assim, antes de mangas arregaçadas e colarinho desabotoado, fralda da camisa por fora, desbragado, cabelos ondulando ao vento e tocando-lhe na face, na dela, que já antevia o seu abraço, já se via nos seus braços musculados e morenos por isso lhe era cada vez mais incompreensível e penoso que ele tivesse escolhido uma profissão de maricas, se não de maricas pelo menos amaricada, e só aceitava sonhá-lo manobrando um veleiro, agarrando firmemente a roda do leme, ajustando as velas, retesando o cordame e cheirando a “Old Spice”.

Fora preponderante na compra daquela velha mansão o seu estilo clássico, claro que o preço também ajudara, os dois se encarregariam de, com tempo, procederem ao seu restauro com o mesmo cuidado que ele colocava nos palimpsestos que manobrava ou restaurava na biblioteca e lhe moldava o caracter, a têmpera, a calma e sobretudo a perseverança e a paciência. Começaria pelas divisões de maior premência, o quarto grande, a casa de banho mais próxima dele e a cozinha. Depois e gradualmente recuperariam o resto da casa, da chaminé às clássicas janelas e portas, as primeiras de vidros cristalinos e biselados. Foi assim que no quarto, de tecto alto, os cortinados que mais pareciam um panejão de palco foram casados com uma cama com dossel, de estrutura em baldaquino e colocada na parede oposta à lareira. Naquele ninho acolhedor ela sentir-se-ia uma rainha, e não fosse a desmesurada altura das janelas e das portas e o quarto de dormir, nupcial, seria o paraíso na terra. Talvez eu me tivesse esquecido de esclarecer, mas o ar extasiado e absorvente que ela apresentara sempre que a ele coubera discursar para a plateia tinha sido notado. Não por acaso ela escolhera os lugares da frente, e quando já se imaginava ficando para tia ei-la ali entregue àquele adónis cheirando a barro, a papiro e a pergaminho. Afinal não pedira nada mas desejara-o fervorosamente, e o milagre aconteceu.

Sentia-se uma rainha, e passara a prestar mais atenção a si mesma. O quarto, mau grado as dimensões majestáticas era um ninho acolhedor pelo que devia atribuir a si própria, e não ao quarto ou a ele a sensação de estranheza sentida, como se ainda duvidasse de tudo, em especial dele, ela que dificilmente deixava alguém chegar-lhe perto, para mais tratando-se de homens. Mas não, não fora ele que a desiludira ou iludira, fora ela que abrira uma excepção no modo e postura para com os outros, para com ele, para com os homens, a quem invariavelmente considerava alarves, engatatões, interesseiros e vezeiros, só lhes interessando a satisfação dos seus prazeres quando afinal este não era nada disso, não era nada assim, pelo menos quanto a este ela tinha-se enganado redondamente e ainda bem pois era feliz, sentia-se feliz, o sexo não era o papão assustador que ela julgara e agora apreciava tanto quanto ele. Custava-lhe admitir mas, no caso, ela é que o tinha engatado, a engatatona afinal tinha sido ela, e sinceramente sentia por vezes vergonha de si mesma. Não haveria afinal tantas razões para temer os homens, em especial este gentil bibliotecário.
     Em desespero e afogueada, juntou todas as forças e, fincando o pé na almofada da porta, agarrando o lindo puxador de cristal e porcelana afastou-se para ganhar balanço tanto quanto os seus braços lhe permitiram e aplicou, enquanto o pé empurrava e a mão torcia a maçaneta para fazer rodar o trinco, uma valente pancada com o ombro, orando mentalmente para que a manobra surtisse o efeito desejado, e assim foi. Ouviu-se um estalido, que ela sentiu na mão através da maçaneta e a alta e pesada porta finalmente abriu-se, diga-se que de rompante e, não fora ela ter dado um passo em frente no momento certo tendo-se apoiado no puxador e certamente teria caído estirada ao comprido no chão, fruto da sua própria força, vontade, ímpeto e impaciente desespero. Ele acordou sobressalto com a manobra e de um pulo estava junto dela, amparando-a, acarinhando-a, consolando-a, mimando-a e jurando-lhe que não passaria outro dia sem que oleasse o mecanismo da velha fechadura que, volta não volta teimava em não abrir e ameaçava encerrá-los no seu “castelo do amor”, como ele se referia ao quarto onde a tomava ternamente de assalto, ao deitar, ao acordar, ou nos mais imprevistos momentos, momentos em que ela, toda ela, muito delicada e docemente lhe chamava o seu gatinho ou, pasme-se, o seu engatatãozinho, e se deixava tomar, invariavelmente por trás como se fosse uma gata no cio, perdão, uma gatinha no cio, a quem ele mordiscava a nuca e beijava com carinho os cabelos platinados. 

Nunca digas nunca, nunca digas desta água não beberei, nem nunca duvides quanta ternura pode esconder um selvagem ou amargura um gentleman. A educação católica dela, adquirida desde tenra idade no Colégio de Gurué e vincada em moldes ainda mais conservadores no Liceu particular de Nampula tinha-lhe limitado os horizontes inerentes aos sentimentos, ao amor, ao carinho, à ternura, e ao sexo. Somente Coimbra onde se formara em economia a libertara parcialmente desses traumas e complexos. Verdade que nem todos os sonhos acabam em pesadelos, mas a liga de apoio às vítimas está cheia de histórias tristes, por vezes de final mórbido ou desgraçado. Nunca esqueças, nem oito nem oitenta, a virtude está no meio e, em caso de dúvida não hesites, confirma, apalpa…. 

                       

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

282 - NUDISMO EM SINES ??????????????????? ...


           Nós queríamos vê-las, não tanto porque isso tivesse alguma particular importância, essencialmente matar-nos-ia a curiosidade. Nem era eu o único sedento por descobrir o que teriam elas de especial que fizesse aquele grupinho dos grandes babar-se e gargalhar sempre que alarvemente  se juntava. Invariavelmente eram cercados pela garotada e pela rapaziada, ávida de os ouvir, mor das vezes sem os entender…

Houvesse esperança e paciência para esperar que no fim da conversa as mulheres viriam forçosamente à baila, nunca vi nenhum daqueles grupos dispersar-se sem que assim não fosse e sem que dissensões que eu então não entendia conduzissem à dispersão dos grupos de galhofeiros.

As viagens eram difíceis, nem melhoraram de ano para ano, ao camião eram adaptados uns bancos corridos de tábua e que se estendiam a todo o comprimento da caixa de carga, quatro filas. O toldo acarretava a desvantagem de concentrar os gases de escape, pelo que a tosse e os vómitos eram coisa normal e nos punha a brigar por ficar numa ponta. Uma vez chegados e as tendas grandes montadas depressa a rotina se instalava e a vila deixava de ter segredos para nós.

Naquela manhã dois ou três de nós esquecemos a praia e ultrapassámos o farol velho, um parque de caravanismo, o pinhal e a extensão das dunas, para nos quedarmos entre as rochas da praia do norte que nem areia tinha, mas tinha ouriços e estrelas-do-mar, caranguejos, peixes coloridos e por colorir, rochas e rochedos, algas, lismos e um mar verde cor de jade lindo lindo lindo, onde a espuma da rebentação, envolvendo-nos, nos abraçava e isolava num mundo impar de fantasia em que nem sede nem fome nos vinham à lembrança. Mais que uma vez bebemos água do mar e comemos lapas cruas, como se fossem ostras…

De sandálias, botas ou ténis pendurados ao pescoço pelos atacadores calcorreávamos quilómetros, explorando a maré vazia e sem darmos pelo tempo passar até que na volta, repentinamente aquela extensa rede de arame, ondulando pelas dunas e a perder de vista, alta, malha miúda, pontilhada de sinais e avisos em três línguas, convidando os mais afoitos a afastar-se e vincando a privacidade do local. Foi o suficiente para nos captar a atenção e prender ao lugar, expectantes por conhecer o mistério escondido por tanto sinal e tanto aviso. Só faltavam os cães. Quase em uníssono lembrámo-nos de uma conversa dos grandes ouvida umas noites atrás à volta da fogueira, e em coro exclamámos:

- É o parque de nudismo !

O castelo abrigava as tendas do vento frio soprado pelo mar naquelas noites de Agosto, mas durante dia e em especial à tarde concentrava o calor sendo quase impossível mantermo-nos ameias dentro. Quem conhecer o castelo de Sines achá-lo-á bonito, lindo, um dos mais belos e de onde se estendia a vista por maravilhosa paisagem que o mar ternamente afagava. Agora, com as obras do porto toda essa magia se foi, mas naquela altura era o paraíso na terra.

Junto à única saída do castelo todas as manhãs o mercado dava vida e cosmopolitismo ao lugar, e à tarde, aos sábados e domingos as matinés do Cine Vasco da Gama e do Cine Esplanada entretinham a gaiatagem, olhos nas fitas e comendo pevides, amendoins, maçãs caramelizadas ou pastilhas Pirata, ou pelas noites frescas, diariamente e sempre que não nos entretínhamos a deambular pela vila ou pelo magnifico jardim aberto e mesmo a jeito, à saída da  esplanada do cinema.

É curioso como recordo tudo isto mas nem uma cara dos que comigo corriam, brincavam e nadavam, lado a lado, ou sequer das largas dezenas que comigo acamparam naquela experiência de escuteiros da Bufa, perdão, da Mocidade Portuguesa, em que a cada dia uma dúzia de nós era escalada para faxina ajudando à mesa, a confeccionar as refeições, a descascar batatas ou a lavar hortaliças. Ainda hoje lembro o cheiro inconfundível do café com leite, ou antes do leite com café, os papossecos quentes barrados com uma margarina amanteigada e granulosa que deixava a língua esquisita e a travar. O que não recordo é quem, na dúzia de chuveiros e torneiras montadas a céu aberto junto à muralha tomava banho a meu lado, ou a meu lado lavava o prato do almoço ou do jantar.

Se não fosse por uns seixos muito redondinhos e acinzentados que se pintados de vermelho pareceriam medronhos nem lembraria o Clemente nem o Lourido, com mais dois ou três anos que eu e por essa altura conheci. Um faleceu há pouco, em Ponte de Sor onde escolhera viver, decerto de alguma cirrose mas isto já sou eu feito maroto a imaginar, Deus lhe tenha a alma em descanso. O outro dei com ele de caras há uns meses e pareceu-me um velho, abatido, barba por fazer, escondido e tiritando dentro de um robe maior que ele, mas, curiosamente, ostentado a mesma cara de menino com que quase há cinquenta anos o conheci, menino descarado que mijava mais longe que qualquer um e a tinha de longe muito maior que a de todos, pois que se puseram uma vez a disputar-lhe o tamanho despertando a curiosidade, a animosidade e atenção da malta toda que já se preparava para dormir, mas preferiu puxar dela antes que lhe chamassem maricas, apesar de muitos de nós nem conhecermos muito bem tudo para que aquilo servia. Aos curiosos e em especial às curiosas adiantarei que eu fiquei na média, o meu nem era o maior nem o mais pequeno, já então possuía, como hoje, um número de senhora, maneirinho, tamanho indicado para senhoras…

Mas por falar em curiosidade e voltando à rede aramada e ao seu mistério, toda aquela extensão perdendo-se de vista pelas dunas e espicaçando-nos a curiosidade debaixo de um sol abrasador, sem um único pinheiro ou arbusto onde nos abrigarmos, fez-nos palmilhar quilómetros na esperança, vã, de ver alguma mulher nua. Não vimos, e apesar de todos pela vida fora me terem garantido que as mulheres são todas iguais e quem viu uma ter visto todas, hoje sou capaz de afirmar que o não são. Começam logo por não terem todas a mesma profundidade no olhar nem o mesmo calor se nos abraçam.

São diferentes, muito diferentes, e por vezes essa diferença nem é subtil, é marcada e marcante. Cada uma é única, soltam gargalhadas distintas e mesmo que tenham as mesmas cócegas não riem do mesmo modo, e estendem a perna ou o pé de forma desigual. Nem dormem para o mesmo lado, nem gostam das mesmas coisas nem das mesmas posições. Há as que nos abraçam até que lhes sintamos o bater do coração e as que nem coração têm, há as que nos enlaçam com as pernas numa devoção que nos renova a esperança e solidifica a fé. Há as que beijam com sofreguidão e as que nos sugam a alma sem perdão. Há-as volúveis, ou com profundidade, como há as que corporizam a vacuidade em contraste total com todas aquelas que nos conduzem ao abismo.

As tintas esbateram diferenças no que à cor do cabelo concerne, mas Deus fez com que não pudessem disfarçar o sorriso, o rir, ou o bater das pestanas. Já não fumo, fumei quase quarenta anos e ia-me matando, e sempre detestei mulheres que fumem ainda que, depois de, adorasse puxar de um cigarro e fumá-lo de papo virado para ar, ficando ali falando com ela, de economia, história ou geografia… *

«O que eu gostava ouvi-la falar de economia … ou qualquer outra coisa, matemática, física, história, ou geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro, debaixo da manta curta.

Tu falavas, eu ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias, à pressa, como sempre, como tudo, como se o vagar pudesse acabar-se um dia, ou eu, a quem a tua conversa seduzia, como feitiço que sobre mim caísse e revolvesse numa inquietação obscena.

Amavas focar a geografia, contares-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos vias, e eu, nostálgico, sorria e, numa ternura impaciente, desatava-te os laços e lacinhos, por vezes com os dentes.

Recitavas pela enésima vez a história da economia, a beleza dos números, ah ! Mas não de todos ! Repreendias-me com sarcasmo :

 - Apenas números grandes ! As deduções e induções, as tendências, as projecções ! ……………….

Emergias. Sorriso afivelado, cantos da boca babados, seios pendurados, divertida, maquiavélica, diabólica, demoníaca :

- Acabou-se a matemática a álgebra e a trigonometria !

Incapaz de travar-te as investidas, desejoso de aparar-te as manhas conhecidas, para depois ficar ainda ouvindo-te, molengona, falando de economia, história e geografia. Há anos te recordo em cada anfiteatro, em cada seminário, workshop ou auditório» *

Quem diria.

* http://mentcapto.blogspot.pt/2014/05/189-o-que-ela-adorava-falar-de-economia.html

                       

terça-feira, 20 de outubro de 2015

281 - VAI FAZER SOL ??????????? .............................


A maravilha que a internet pode ser, constituir, sensibilizou-me esta semana com a publicação de um vídeo inédito dos Quatro de Liverpool, cujo link não poderia deixar de vos disponibilizar no fim da página. É verdade que foram excepcionais, um ainda o é, e salvo erro dois são ainda vivos, o baterista Ringo Starr e o vocalista Paul McCartney.

Naturalmente vi o vídeo do princípio ao fim, mas não foram as musiquinhas, que estou fartito de ouvir desde que era gaiato, que me despertaram a atenção e me quebraram a inércia aos neurónios que de imediato se puseram aos pulos não parando a tarde inteira e até me ter agarrado ao pc a desbobinar a arenga que aqui vos deixo hoje.

O que me deixou os ditos verdadeiramente aos pulos foram antes o tempo e as circunstancias em que o fenómeno ocorreu, já Garcia Lorca nunca desapossava do homem as circunstâncias em que se movia, foi portanto o contexto em que o fenomenal fenómeno ocorreu e teve lugar que me ocupou as meninges, terão sido aquelas quatro personagens únicas ?

Evidentemente que o não foram, mas tiveram a sorte, que lhes atirou para o colo o proveito e o mérito de uma carrada de circunstâncias sem as quais jamais teriam ultrapassado o anonimato. Verdade que eram naturalmente muito bons no que faziam, até porque as circunstâncias e em especial a sorte, só bafejam quem esteja preparado para as ou a receber. Um pouco como a coragem, ou a heroicidade, que somente protege e beneficia os audazes. (Ao contrário deles, Portugal desperdiça oportunidades há quarenta anos).

Aqueles quatro pacifistas, ironia das ironias o destino fez com que um deles tivesse morrido com um tiro no peito, foram os primeiros grandes beneficiados do facto de a GB ter vencido a II Grande Guerra. O esforço tecnológico colocado pela ilha para vencer o conflito mundial, em especial a invenção do RADAR, o tal tubo de raios catódicos que desaguaria na televisão, e os desenvolvimentos propiciados pelas ondas hertzianas, vulgo rádio, com as válvulas a serem substituídas por transístores, seriam fulcrais como trampolins do seu merecido e reconhecido sucesso.

É certo ter havido grande disponibilidade e muitíssima gente disposta a vê-los e a morrer por ouvi-los, ao contrário do que acontece comigo, que canto muito bem mas pareço não alegrar ninguém, os milhares que enchiam os estádios eram jovens a quem a fúria de viver animava e almejavam vestir a irreverência que os quatro corporizavam, esquecidos que estavam os serviços fúnebres das gerações anteriores.

A ilha, ou melhor a GB, já durante a I Guerra Mundial perdera os jovens de duas gerações, e, quando ser recompunha, a II Grande Guerra rouba-lhe ingloriamente outras duas gerações, pelo que a seguir ao conflito a ilha, a par dos EUA, foi um dos dois pontos do mundo onde outras e vantajosas condições se aliaram causando o fenómeno posteriormente conhecido entre nós como baby boom. Democracia e desenvolvimento económico dominaram a variável que hoje conhecemos como “confiança do consumidor” e foram pais de milhões de bebés encantadores por toda a Europa e USA, um pouco do que inversamente acontece agora entre nós, cuja democracia e economia de sucesso ditaram o gelado inverno demográfico em que nos atolámos e que nem a maravilha do último ajustamento ajudou a derreter.

Ora após o baby boom havia uma catrefa de jovens sedentos por que lhes ocupassem os tempos livres e lhes segredassem coisinhas românticas ao ouvido, e, não casualmente, existiam já prenhes de êxito e disseminados por todos os lares, rádios, nessa época designados por “galenas”, coisa que tinha que ver com a antena e o ajustamento das frequências emitidas. Mas, ainda que a preto e branco, já pontificava a televisão, que havia de preencher a toda esta gentinha a tal avidez nada comezinha quando não uma surpreendente histeria. Milagrosamente violas e guitarras eléctricas, tal como amplificadores, sintetizadores e “distorcedores” de som ampliariam de modo inaudito a valência dos espectáculos ao vivo, levando a juventude ao delírio. A invenção do fonógrafo, então já desenvolvidíssima para o suporte em disco mais ajudou à festa.

Diria que se conjugaram as condições ideais, fulcrais, necessárias e fundamentais para que o anonimato ou o mero conhecimento limitado e localizado da música daqueles quatro, tivesse sido ultrapassado e as suas melodias difundidas pelo mundo com maior sucesso e rapidez que os bips do Sputnik. Toda a causa tem efeito, e todos os condicionalismos ou circunstancialismos ditam e moldam os nossos gostos usos e costumes, tudo é fruto de algum determinismo.

Sherlock Holmes, Agatha Christie, Poirot, Fantomas, e outros grandes autores e personagens literários tiveram a sua época num período em que as massas não chafurdavam na vacuidade da Tv a cores ou das rádios FM. Esses quatro sortudos tiveram a sua época no tempo das preciosidades, e não no do consumismo desenfreado de CD’s a pontapé ou da miséria dos mídia actuais cuja função mais parece ser a de embrutecer-nos. Emílio Salgari ou Júlio Verne não teriam sucesso hoje que o pessoal pensa que sabe tudo, já viu tudo e acredita que sim, que assim é. Os quatro do bando, não confundir com o bando dos quatro, tiveram a sua época, tal como Ágata Christie Sherlock Holmes e outros tantos tiveram a sua época no mundo da leitura, da imprensa, dos livros, quando a imprensa e a edição eram rainhas e sinónimo de verdade, confiança e cultura. Depois passou-se para a época em que sabemos tudo e todos somos cultos, letrados, instruídos e aperaltados pelas estatísticas, pela normalizadora, Orwelliana e mistificadora varinha de condão das estatísticas. Está para mim mais que visto ter a escola pública falhado, o ministério, a escola e bué de professores que nelas pontificam, ganhando demasiado para o bem pouco que sabem. 

Mas esses foram tempos atrasados, sem progresso, tempos da conquista dos pólos, de Roald Amudsen e Robert Falcon Scott, de Herman Melville e da caça à baleia branca, Moby Dick, foram os tempos das descobertas de novos mundos e espécies, de Charles Darwin, de Jean Baptiste Lamarck, de Mendel, dos bandeirantes, dos Mapas Cor-de-rosa, de Angola à contracosta, do pioneirismo na aviação, na electricidade, de Mr. Hyde e Mr. Jekill, de Frankenstein, do cinema mudo que nos havia de gritar a plenos pulmões, das Neves do Kilimanjaro, das Vinhas da Ira, de Doutor Jivago, foram os tempos do Expresso do Oriente, das 20.000 Léguas Submarinas e da Viagem ao Centro da Terra. Nem séculos mais tarde a conquista da Lua arrebanharia tantos curiosos.

Já então se sabia tudo, sabíamos tudo, Freud e Einstein haviam mostrado tudo, e a volta ao mundo depois do Titanic fazia-se em muito menos de oitenta dias.

Mas os quatro de Liverpool beneficiariam também da Revolução Russa de 1917, das influências de Marx e do Manifesto Comunista, do advento das correntes socialistas e sociais-democratas (não confundir com as nossas), dos debates à volta de Pierre Joseph Proudhom e do que É a Propriedade, do bom selvagem de Rousseau e do seu Contrato Social. À época destes quatro cavaleiros do apocalipse o lazer estava instituído bem como a jorna de oito horas diárias, os tempos de esclavagismo da Revolução Industrial estavam enterrados, o lazer exigia novas respostas, criando novas oportunidades, novos hábitos, novas indústrias, novos empregos, novas necessidades, novos nichos de mercado como se diz agora, e de todas estas circunstâncias os quatro beneficiaram em cheio pois estavam à hora certa no local certo, tivessem estado na Africa do Sul ou em Portugal e teriam morrido incógnitos, por cá temos até o mau hábito de foder a maioria das poucas oportunidades que milagrosamente nos aparecem.

Paulatinamente o som e a imagem foram destronando dos jornais os folhetins diários que gente séria escrevia e outras gentes igualmente circunspectas liam religiosamente pois eram publicados e avidamente devorados apaixonadamente dia a dia. Relatando, quando não inventando histórias, a imaginação e a ficção não tinham limites, descreviam odisseias, sagas, aventuras, epopeias, descobertas, avanços científicos, apresentando-nos o presente enquanto simultaneamente nos preparavam para o futuro.

Paradoxalmente hoje, tanta cultura ameaça remeter-nos de novo para as cavernas, endeusámos a ligeireza do vácuo, da vacuidade, até na música estamos muito longe das miríficas letras e acordes dos quatro de Liverpool, e, por este andar, temo que não demore que recolhamos de novo às grutas de Lascaux, Altamira e de Matera, aos saltos, aos grunhidos, aos monossílabos, gesticulando em redor de uma qualquer fogueira e arrastando-as de novo pelos cabelos.

Aquele vídeo, este vídeo, fez-me pensar, deu-me conta da enorme incompetência e estupidez que nos rodeiam, nunca imaginara tal gigantismo. Brutos, incongruentes, inconsequentes, incultos, pouco menos que analfabetos, selvagens... Nem no tempo da  outra  senhora eu vira tamanha desgraça.

           Vai fazer sol ? Não sei, só sei que quer à esquerda quer à direita a ignorância a estupidez e a boçalidade tudo carregam de cores negras...

            Ob-la-di, ob-la-di, ob-la-dá……………………………..