Lembro-me
tal qual aquele dia estivesse sendo vivido hoje, ela mirando-me de cara espantada
e sustendo a custo a risota, eu um pouco surpreendido ouvindo uma pormenorizada
explicação. Para ser franco nem estava à espera, mas ouvi-a com agrado e a
coisa ficou, e de tal modo ficou gravada na minha memória que hoje, passadas
quatro décadas, mais coisa menos coisa, a recordo como naquele dia e me socorro
dela, dela da explicação, lembrando-lhe a voz grave e sonora, vibrante de
empatia.
-
Qual quê meu menino, (avançou ele para mim) nem tu nem ninguém seria capaz de tal, há modos de se
fazerem as coisas, já viste alguém subir a um telhado sem a ajuda duma escada ?
Tudo
porque me ouvira murmurar ao ouvido da Genoveva Marujo, que se sentava a meu
lado, qualquer coisa do género de:
-
Grande cabecinha, como é que este caramelo foi capaz de tamanho poema ? Terá
sido escrito de rompante ? De seguida ? Foi inspiração ? Foram carradas de
inspiração decerto.
E o
caramelo era nem mais nem menos Fernando Pessoa, em cuja quarta ou quinta
aula já íamos e que fazia a Genoveva Marujo parecer um peixe, tantos os
bocejos que a coisa lhe dava. No seu mister nem tempo tinha para bocejar, nas
horas livres tirava cafés atrás dum balcão ali à “Estrela da Mouraria”, um pequeno mas
convidativo café que em tempos existiu, e entre uma bica e outra nem vagar teria
para se coçar.
-
Pois meu menino (continuou ele explicando) o autor não fez nenhuma escada mas terá elaborado um esquema a
partir do qual e aos poucos foi construindo o seu poema, não esqueçamos que
demorou vinte anos a escrevê-lo, vinte aninhos.
Ninguém
tem capacidade ilimitadas, continuara ele, até a NASA concebeu o TITAN com vários andares pois
de outro modo nunca conseguiria chegar onde chegou, com o TITAM ou com o SATURNO
V, o segredo está em dosear as coisas, disse muito convicto.
E,
pegando no giz, traçou no quadro vários traços, uns verticais, outros horizontais e em meia dúzia de palavras expõe ante a turma toda a estrutura ou o esquema do poema a “Mensagem” e fê-lo com uma desenvoltura e uma simplicidade tais que só não me
surpreendeu por já o ir conhecendo e aos seus modos de fazer de nós a obra que
certamente Deus teria ambicionado e de que ele seria na terra um mero obreiro.
De
seguida perdeu-se, ou melhor, esqueceu-se do tempo na descrição de pormenores
sobre o dito poema, o facto de o regime não o ter acolhido com bons olhos e devido a isso Fernando
Pessoa não ter ganho mais que o segundo prémio na categoria do SPN, (mais tarde
SNI) que contudo o premiou com um valor em numerário idêntico ao primeiro lugar.
“Na primeira categoria de poesia” ficaria o poema “A Romaria”, do padre Vasco
Reis, um jovem missionário de Moçambique. O padre Reis na altura com vinte e quatro
anos, passaria o resto da vida com um peso na consciência por ter ganho ao
grande Fernando Pessoa.
O
padre Geraldes alongaria ainda a sua explanação fazendo-a recair sobre a idoneidade e até capacidade dos
próprios juízes para avaliarem e classificarem um poema muito acima de tudo e
todos, talvez mesmo das suas próprias capacidades. A corruptela ou enviesamento
dos critérios de avaliação foram sobejamente torcidos para que o primeiro lugar não
fosse atribuído a um critico do regime, mas sim a um outro que de honesto pasmou com a marosca.
-
Enfim meus filhos, preparem-se pois a vidinha é isso é mesmo assim, em maior
ou menor grau todos vocês correm o risco de vir a ser mandados por gente
incapaz, que não estará à altura, por vezes estará abaixo de vós mesmos, mas é
a vida, manda quem pode e a quem não pode só lhe restará obedecer…
E também
nos explicou ir rareando gente assim honesta, coerente, competente, consequente,
alertando-nos para o facto de, infelizmente Deus andar distraído há muito tempo.
Enquanto isto a Genoveva colando a perninha e cochichando para mim:
-
Ainda aparece a PIDE e o leva preso…
E enfiando-me o cotovelo pelas costelas encostava à minha a sua coxa roliça que
mais parecia uma botijinha cheiinha d’águinha quentinha, e agora desculpem-me mas
até me perdi, de repente esqueci aquele bom padre, amigo, simpático, ele e as suas lições, isto
passa-me, é um bloqueio passageiro, nunca mais vi a Genoveva e as tranças que
adorava destrançar e desfazer, chamava-lhe Eva quando todo aquele cabelo lhe cobria
os seios alvos, de grandes auréolas. Uma vez quando estava na marinha a fragata
em que me encontrava embarcado beijou o Circulo Polar Árctico, o Tenente
Ginete alvoroçado:
-
Olhem-me aquela auréola boreal !
E nem
sei por que carga de água ainda hoje quando se fala em auroras boreais me
lembro logo das auréolas da Genoveva Marujo, como lembrei naqueles dias e
dias seguidos no enorme e vasto mar salgado, quando toda a gente se fechava em
si mesma depois de quase quatro meses seguidinhos de mar. Eu confesso, por
vezes fechava-me sonhando com a Genoveva, com Deus, com o padre Geraldes, com
Fernando Pessoa, com Eva de cabelos soltos e eu, eu e ela pecando, nós dois de maçã
na mão ora dando eu ora dando ela uma dentadinha e assim passei aquele exercício
da NATO em alto mar e em mares hostis, na peugada e caça de um inimigo
inventado pelos almirantes e que no-lo vendiam em sermões e palestras p’ra
justificarem as suas alegres vidinhas, sendo nesses momentos em especial que recordava o
Padre Geraldes e quanta razão ele tinha quando:
- Preparem-se
meus filhos pois a vidinha é mesmo assim, em maior ou menor grau todos vocês
correm o risco de vir a ser mandados quantas vezes por gente incapaz, mas é a
vida, manda quem pode e quem não pode obedece… E também eu recordei mais uma
vez quanto e infelizmente Deus há muito tempo andaria distraído.
Era
nessas horas mortas, em que o inimigo nem se dignava aparecer que eu,
sobremaneira me isolava em oração e deixava divagar o espírito pelo paraíso,
ou fechado na camarata ou embrulhado em tudo que pudesse e, sentado no chão da
varanda da ponte olhando o mar e as vagas, encolhendo-me cada vez que a proa do
navio cortava uma onda maior distribuindo salpicos pelo convés, pelas armas e
até por mim que nem na ponte estava a salvo das águas geladas, nem da Genoveva quentinha
cujas maminhas, perdão, cujas auréolas tinham marcado a minha memória a ferro e
fogo de tal modo que nas noites geladas em que o navio ludibriando os inimigos
cortava silencioso o mar de Barents rasgando a aurora boreal com as antenas e
os mastros, imperando o silencio absoluto e total da rádio, do radar, do sonar
e até do cagar, ai de quem se atrevesse a bater o pé com mais força não
fosse algum submarino inimigo ouvir-nos e no meio de todo aquele silêncio só
Deus e o cortar do fio das aguas geladas pela proa do navio se ouvia, isso e o
meu coração batendo descompassado traço ponto traço stop ponto ponto stop traço
traço stop traço traço ponto ponto stop, num morse sem fim que as minhas mãos
em oração debitavam, esperançadas que a mensagem chegasse a Genoveva Marujo que
nunca mais vi, mas cujo sonho me levou a ganhar aquela batalha e vencer os
inimigos da pátria mãe, mãe há só uma e foi precisamente essa que após seis
duros meses no mar me esperava na Base Naval do Alfeite, essa e aquela que hoje
está a meu lado e nunca me abandonou, a minha Luisinha, cujas ordens
suplantaram há muito as dos almirantes que se lembravam de brincar às guerras
com barquinhos e inventavam inimigos que inda hoje combatemos apesar de
velhinhos aposto, e aposto que sentados numa esplanada solarenga em redor de
uma mesa onde Genoveva, solicita e de peito generoso, lhes servirá
refrescos de alcaparra, salsaparrilha, capilé e groselha acompanhados de uma
palhinha e se entretem a enfunar-lhes as velas e a levantar-lhes os mastros dos
barquinhos senis carregados de Parkinson e Alzheimer a fim de atirarem bazucadas e estalinhos de carnaval para
cima do inimigo.
Nunca
mais vi a Genoveva, nem o padre Geraldes, lembro vagamente termos posteriormente
passado ao estudo de Raul Brandão e a dormir as sestas na garagem dela, depois,
só muito depois foi a vez de Almeida Garrett, Eça, Aquilino; Cesário Verde,
Branquinho da Fonseca, Namora, Soeiro, Régio, a literatura é um mundo não é ?
Obrigado
por tudo quanto me ensinou padre Geraldes.
Fernando
Pessoa - Pintura Luiza Caetano - Portugal