quarta-feira, 4 de novembro de 2015

285 - MESSAGE TO GENOVEVA MARUJO, STOP


Lembro-me tal qual aquele dia estivesse sendo vivido hoje, ela mirando-me de cara espantada e sustendo a custo a risota, eu um pouco surpreendido ouvindo uma pormenorizada explicação. Para ser franco nem estava à espera, mas ouvi-a com agrado e a coisa ficou, e de tal modo ficou gravada na minha memória que hoje, passadas quatro décadas, mais coisa menos coisa, a recordo como naquele dia e me socorro dela, dela da explicação, lembrando-lhe a voz grave e sonora, vibrante de empatia.  

- Qual quê meu menino, (avançou ele para mim) nem tu nem ninguém seria capaz de tal, há modos de se fazerem as coisas, já viste alguém subir a um telhado sem a ajuda duma escada ?

Tudo porque me ouvira murmurar ao ouvido da Genoveva Marujo, que se sentava a meu lado, qualquer coisa do género de:

- Grande cabecinha, como é que este caramelo foi capaz de tamanho poema ? Terá sido escrito de rompante ? De seguida ? Foi inspiração ? Foram carradas de inspiração decerto.

E o caramelo era nem mais nem menos Fernando Pessoa, em cuja quarta ou quinta aula já íamos e que fazia a Genoveva Marujo parecer um peixe, tantos os bocejos que a coisa lhe dava. No seu mister nem tempo tinha para bocejar, nas horas livres tirava cafés atrás dum balcão ali à “Estrela da Mouraria”, um pequeno mas convidativo café que em tempos existiu, e entre uma bica e outra nem vagar teria para se coçar.

- Pois meu menino (continuou ele explicando) o autor não fez nenhuma escada mas terá elaborado um esquema a partir do qual e aos poucos foi construindo o seu poema, não esqueçamos que demorou vinte anos a escrevê-lo, vinte aninhos.

Ninguém tem capacidade ilimitadas, continuara ele, até a NASA concebeu o TITAN com vários andares pois de outro modo nunca conseguiria chegar onde chegou, com o TITAM ou com o SATURNO V, o segredo está em dosear as coisas, disse muito convicto.

E, pegando no giz, traçou no quadro vários traços, uns verticais, outros horizontais e em meia dúzia de palavras expõe ante a turma toda a estrutura ou o esquema do poema a “Mensagem” e fê-lo com uma desenvoltura e uma simplicidade tais que só não me surpreendeu por já o ir conhecendo e aos seus modos de fazer de nós a obra que certamente Deus teria ambicionado e de que ele seria na terra um mero obreiro.

De seguida perdeu-se, ou melhor, esqueceu-se do tempo na descrição de pormenores sobre o dito poema, o facto de o regime não o ter acolhido com bons olhos e devido a isso Fernando Pessoa não ter ganho mais que o segundo prémio na categoria do SPN, (mais tarde SNI) que contudo o premiou com  um valor em numerário idêntico ao primeiro lugar. “Na primeira categoria de poesia” ficaria o poema “A Romaria”, do padre Vasco Reis, um jovem missionário de Moçambique. O padre Reis na altura com vinte e quatro anos, passaria o resto da vida com um peso na consciência por ter ganho ao grande Fernando Pessoa.

O padre Geraldes alongaria ainda a sua explanação fazendo-a recair sobre a idoneidade e até capacidade dos próprios juízes para avaliarem e classificarem um poema muito acima de tudo e todos, talvez mesmo das suas próprias capacidades. A corruptela ou enviesamento dos critérios de avaliação foram sobejamente torcidos para que o primeiro lugar não fosse atribuído a um critico do regime, mas sim a um outro que de honesto pasmou com a marosca.

- Enfim meus filhos, preparem-se pois a vidinha é isso é mesmo assim, em maior ou menor grau todos vocês correm o risco de vir a ser mandados por gente incapaz, que não estará à altura, por vezes estará abaixo de vós mesmos, mas é a vida, manda quem pode e a quem não pode só lhe restará obedecer…

E também nos explicou ir rareando gente assim honesta, coerente, competente, consequente, alertando-nos para o facto de, infelizmente Deus andar distraído há muito tempo. Enquanto isto a Genoveva colando a perninha e cochichando para mim:

- Ainda aparece a PIDE e o leva preso…

E enfiando-me o cotovelo pelas costelas encostava à minha a sua coxa roliça que mais parecia uma botijinha cheiinha d’águinha quentinha, e agora desculpem-me mas até me perdi, de repente esqueci aquele bom padre, amigo, simpático, ele e as suas lições, isto passa-me, é um bloqueio passageiro, nunca mais vi a Genoveva e as tranças que adorava destrançar e desfazer, chamava-lhe Eva quando todo aquele cabelo lhe cobria os seios alvos, de grandes auréolas. Uma vez quando estava na marinha a fragata em que me encontrava embarcado beijou o Circulo Polar Árctico, o Tenente Ginete alvoroçado:

- Olhem-me aquela auréola boreal ! 

E nem sei por que carga de água ainda hoje quando se fala em auroras boreais me lembro logo das auréolas da Genoveva Marujo, como lembrei naqueles dias e dias seguidos no enorme e vasto mar salgado, quando toda a gente se fechava em si mesma depois de quase quatro meses seguidinhos de mar. Eu confesso, por vezes fechava-me sonhando com a Genoveva, com Deus, com o padre Geraldes, com Fernando Pessoa, com Eva de cabelos soltos e eu, eu e ela pecando, nós dois de maçã na mão ora dando eu ora dando ela uma dentadinha e assim passei aquele exercício da NATO em alto mar e em mares hostis, na peugada e caça de um inimigo inventado pelos almirantes e que no-lo vendiam em sermões e palestras p’ra justificarem as suas alegres vidinhas, sendo nesses momentos em especial que recordava o Padre Geraldes e quanta razão ele tinha quando:

- Preparem-se meus filhos pois a vidinha é mesmo assim, em maior ou menor grau todos vocês correm o risco de vir a ser mandados quantas vezes por gente incapaz, mas é a vida, manda quem pode e quem não pode obedece… E também eu recordei mais uma vez quanto e infelizmente Deus há muito tempo andaria distraído.

Era nessas horas mortas, em que o inimigo nem se dignava aparecer que eu, sobremaneira me isolava em oração e deixava divagar o espírito pelo paraíso, ou fechado na camarata ou embrulhado em tudo que pudesse e, sentado no chão da varanda da ponte olhando o mar e as vagas, encolhendo-me cada vez que a proa do navio cortava uma onda maior distribuindo salpicos pelo convés, pelas armas e até por mim que nem na ponte estava a salvo das águas geladas, nem da Genoveva quentinha cujas maminhas, perdão, cujas auréolas tinham marcado a minha memória a ferro e fogo de tal modo que nas noites geladas em que o navio ludibriando os inimigos cortava silencioso o mar de Barents rasgando a aurora boreal com as antenas e os mastros, imperando o silencio absoluto e total da rádio, do radar, do sonar e até do cagar, ai de quem se atrevesse a bater o pé com mais força não fosse algum submarino inimigo ouvir-nos e no meio de todo aquele silêncio só Deus e o cortar do fio das aguas geladas pela proa do navio se ouvia, isso e o meu coração batendo descompassado traço ponto traço stop ponto ponto stop traço traço stop traço traço ponto ponto stop, num morse sem fim que as minhas mãos em oração debitavam, esperançadas que a mensagem chegasse a Genoveva Marujo que nunca mais vi, mas cujo sonho me levou a ganhar aquela batalha e vencer os inimigos da pátria mãe, mãe há só uma e foi precisamente essa que após seis duros meses no mar me esperava na Base Naval do Alfeite, essa e aquela que hoje está a meu lado e nunca me abandonou, a minha Luisinha, cujas ordens suplantaram há muito as dos almirantes que se lembravam de brincar às guerras com barquinhos e inventavam inimigos que inda hoje combatemos apesar de velhinhos aposto, e aposto que sentados numa esplanada solarenga em redor de uma mesa onde Genoveva, solicita e de peito generoso, lhes servirá refrescos de alcaparra, salsaparrilha, capilé e groselha acompanhados de uma palhinha e se entretem a enfunar-lhes as velas e a levantar-lhes os mastros dos barquinhos senis carregados de Parkinson e Alzheimer a fim de atirarem bazucadas e estalinhos de carnaval para cima do inimigo.  

Nunca mais vi a Genoveva, nem o padre Geraldes, lembro vagamente termos posteriormente passado ao estudo de Raul Brandão e a dormir as sestas na garagem dela, depois, só muito depois foi a vez de Almeida Garrett, Eça, Aquilino; Cesário Verde, Branquinho da Fonseca, Namora, Soeiro, Régio, a literatura é um mundo não é ?

Obrigado por tudo quanto me ensinou padre Geraldes.



Fernando Pessoa - Pintura Luiza Caetano - Portugal