A
manhã sorriu-me, sexta-feira, final de semana, um belo dia de sol e, mal olho
as noticias, uma delas incontestavelmente hilariante...
“Governo
estuda medidas de apoio à demografia”, não me contive sem soltar duas valentes
gargalhadas, nem parei de cantarolar durante a barba e o banho. Para ser franco
ainda estou a rir-me. Isto das medidas demográficas não é como as fitas de
apanhar moscas que vemos nos cafés, não é atar e pendurar como o chouriço da
preta, não se penduram sem mais articulações com outras medidas cuja acção tem
que ser despoletada com anos, senão décadas de antecedência. Governar é saber
cantar e assobiar ao mesmo tempo e esta gente há quarenta anos que não me alegra.
Só como anedotário.
Agora
fazemos filhos, e daqui a vinte anos estarão a engrossar as estatísticas do
desemprego que ainda deve andar pelas ruas da amargura, ou enxotam-se os ditos
para a emigração, ou, pior ainda, pelo caminho que a Europa leva estaremos a
empurrá-los para carne de canhão. Sublime, nem o Lomba teria tido ideia melhor.
Santa ingenuidade.
Já
que vem a propósito conto-vos a história, verídica, do meu vizinho e amigo
Guedes, homem probo, exemplar, desempregado há meia dúzia de anos, e que
festejou há poucos meses o seu cinquentenário. Desde aí que ninguém o vê, não
sai à rua, nem do sofá, nem toma banho, não lava a boca nem se barbeia ou
penteia, um verdadeiro troglodita diz a D. Ermelinda, que apesar dos seus
quarentas e muitos é linda, está cada vez mais linda, e mais inacessível. Nem
pára em casa, isto é um corrupio de carros a ir e vir deixá-la ou buscá-la,
ninguém diria que a mestiça geraria tanta empatia, é a mestiça mais branquinha
que já vi, mais branquinha que muitas branquinhas mas estou a divagar, estou a
perder-me, onde é que eu ia, na D. Ermelinda que de mãos na cabeça vitupera o
troglodita que tem lá em casa, não há quem aguente, isto é impossível, até me
envergonho de levar alguém a casa, e não havia necessidade, o pior já passou,
graças a Deus não devemos um tostão a ninguém e a Belinha já vai orientando a
vidinha.
A
linda Belinha sai ao pai, nota-se bem que é mestiça embora tal se confunda com
um bronzeado imaculado, no resto sai à mãe, aliás sai muito com a mãe, quero
dizer saía, já vai saindo sozinha e se em algo difere da mãe é nas preferências
quanto a automóveis, D. Ermelinda pendendo mais para carros grandes, Mercedes e
BMW, e a Belinha mais modesta, mais pragmática, mais virada para a classe B,
Golfs, Nissans, Méganes, Toyotas, Astras e assim. A malta nova tem uma visão
variada e mais dilatada dos horizontes desta vida, muito desigual até do irmão,
que vive do RSI e não se sabe mais de quê, mas lhe chega para as roupas e ténis
de marca que eu nem a invejar me atrevo, é gémeo da Belinha mas ninguém diria,
ela uma mulheraça assumida ele um gaiatão ainda, vivendo todos do RSI, nem sei
de onde vem tanta fartura naquela casa onde só o vizinho Guedes trabalhava e
durante anos e anos vi aguentar com uma pernas às costas aquela casa feliz que
contudo, e para falar verdade nunca vi tao feliz como agora, à excepção do
Guedes, precisamente ele que era o apoio da família, o cabeça de casal, o
pilar, o alicerce e a força daquela casa que parece ter aprendido a viver sem
ele, viveria melhor sem ele que agora só “estrova” como a D. Ermelinda de vez e
quando lhe atira à laia de motivação fazendo com que todas as cabeças assomem à
janela na nossa rua.
Há
meia dúzia de anos existia já, frente à casa onde vivo, um pátio com uma série de
barracões que seriam para demolir, assim me disseram na altura em que visitei a
casa, que estava à venda havia algum tempo apesar de barata, mas na qual
ninguém pegava. Mostraram-me inclusive uma muito pormenorizada, muito colorida
e muito bonita planta de um parque ajardinado previsto para a área dos ilegais
e infectos barracões, uma coisa linda, e, ao ouvido, confidenciaram-me não
estar ali a piscina por motivo de taxas e taxinhas camarárias mas que, mal o
projecto aprovado ela seria concluída, para gáudio e regalo de todos os
moradores desta minha linda urbanização. Comprei a casa sem pensar duas vezes
nem olhar para trás, e tivesse eu amigos na banca, como o Joe Berardo ou o Vara
ou tantos outros, e não teria adquirido unicamente a minha casa mas toda a
fiada delas, todas perspectivadas para a zona mais linda do bairro e igualmente
à venda.
Aldrabice,
tudo aldrabice e todos uns aldrabões. Quando a comissão de moradores suportando
mal os verões, se chegou ao município reclamando da demora no licenciamento do
projecto que poria fim aos barracões, ficou sabendo nunca ter entrado ali
projecto nenhum, nada, nada mais que conversa fiada e um desenho muito bonito e
muito colorido no papel e, claro, uma confidência soprada amigavelmente ao
ouvido e acompanhada de uma palmadinha nas costas. Uma pechincha aquela casa,
eu que aproveitasse, e aproveitei, eu e mais uma dúzia de parvos.
Mas
os tais infectos barracões, ilegais, erguidos em zona agrícola onde a
construção estava terminantemente proibida, albergavam uma série considerável
de negócios, oficinas e escritórios, dando emprego a um magote de gente. Tanta
que na rua inteira e arredores depois das nove da manhã não havia onde
estacionar. Era numa dessas oficinas que o preto trabalhava de mecânico, era
até muito considerado o meu vizinho Guedes, um dos primeiros moradores da minha
rua, muito anterior a mim e feliz proprietário de um T1, lá mais abaixo, onde a
avenida faz uma curva. Lembro-me ainda de ver a família feliz, aos fins-de-semana,
toda enfiada num Mercedes preto já com uns bons aninhos mas cujo motor e
mecânica o Guedes mantinha funcionando como um relógio suíço, a D. Ermelinda na
frente, sempre ajeitando as alças do sutiã, tinha um peito admirável, ainda tem
mas não é para os dentes de qualquer um, e agora muito menos que refinou o
gosto e a auto-estima, esta coisa do desemprego ser uma oportunidade que se
abre não é para toda a gente, nem toda a gente entenderá a coisa. O que lhes
valia era o carro ser grande, os gémeos atrás e os outros três miúdos, pouco
mais que bebés espalhados por ali com as bolas, as bóias, o cão e o gato e nem
me alembra mais o quê.
A
oficina do Guedes, do Guedes é como quem diz, onde o Guedes trabalhava, foi das
primeiras a falir e o preto dos primeiros a ir para a rua. Paulatinamente quase
todos os barracões foram fechando e hoje só não sobram os lugares de
estacionamento na rua porque alguns vizinhos mantêm os carros parados meses
inteiros, por vezes empurrados para ali com os depósitos vazios.
Desse
dia em diante a auto-estima do Guedes foi-se apagando até se transformar no
trapo que hoje para ali está. Graças a Deus a auto-estima de D. Ermelinda foi
aumentando na proporção directa em que o Guedes a perdia e a casa aguentou-se,
diria até estarem melhores agora que dantes, por vezes até eu duvido se este
ajustamento não terá sido o sucesso que dizem, passo devagar frente à casa e
pelas janelas abertas e convidativas vejo o Guedes esparramado num belo sofá de
couro, invariavelmente agarrado a uma garrafa de uísque das que nem me atrevo a
comprar, nem em promoção, na parede um plasma gigante, cortinados de renda, e
não fosse o Guedes por vezes vir desabafar à sacada juraria tudo ir bem no
reino da Dinamarca mas ele:
-
Apoio demográfico o caralho que os foda ! Cabrões de merda, aldrabões,
demografia a puta que os pariu ! Quantas vezes já me foderam o abono de família
? Sempre a reduzir a reduzir ! Nada devo a ninguém ! Cumpram que eu já
cumpri e nem devo um tusta que seja a cabrão nenhum !
Acontece
que frente ao Guedes vagara um T5, propriedade de um engenheiro incapaz de o
pagar, que acabou por se pirar para o Canadá com a famelga e de cujo prédio o
banco tomara conta. Ora a D. Emília já tentara com o banco proceder a um
ajuste, entregar o T1 pelo T5 e pagar o remanescente, mas o banco não aceitara
as condições e cometera a asneira (não confirmada) de estar por obrigação com a
Misericórdia guardando o T5 para uma família numerosa de refugiados… A tampa
saltou ao Guedes:
Refugiados
o caralho ! A caridade deve começar em casa ! Toda a vida paguei os meus
impostos e agora para aqueles cabrões tudo e para os tugas nada ! Puta que os
pariu ! Também tenho uma família numerosa ! Se fosse no tempo de Hitler já
teria ganho uma medalha ! Deus me dê paciência para aturar estes cabrões de
merda, paneleiragem ! Vão todos para a cona da mãe !
Realmente
ninguém se admira que D. Ermelinda tenha reservas quanto a levar alguém a casa…
Com um marido assim coitada… Não entra gente mas sai ela, e sai muito em
visitas e cada vez sai mais.
A
Belinha segue os conselhos e as passadas da mãe e lá se vai orientando, está
bonita, está alta, está altiva, está uma senhora. É ver a deferência com que
todos os cavalheiros a tratam quando a vão deixar ou buscar ali, ao princípio
da rua, a cinquenta metros de casa.
O
mais velho não dá preocupações a ninguém a não ser aos técnicos do RSI que semana
sim semana não lhe entram em casa, por ele e por toda a família, todos vivem do
RSI e sei que votaram nos mesmos porque várias vezes os ouvi:
- É preciso não
perder o que já conseguimos… diziam.
É
boa gente, gente que cumpre o seu dever cívico, gente que conta, gente que
vota, as pessoas não são números, as pessoas contam, e os Guedes têm-se
orientado bem nos difíceis caminhos que a nossa democracia nos oferece.
Cá
por mim acho que deviam legalizar a prostituição. Gosto do meu vizinho e amigo
Guedes e sei que seria um estigma que lhe tirariam de cima. Afinal fazem-se
tantas leis parvas que a gente nem percebe a urgência, leis para a
paneleiragem, p’ra adopção ou coisas do género e de género, da regionalização,
da poupança e das gorduras do estado, tudo leis de merda a que ninguém liga,
enfim é a nossa sina…
….. Apoio
à demografia…. hihihihihihihihihi !
Como
diria o Guedes vão-se todos foder………….…..