sexta-feira, 30 de outubro de 2015

284 - DEMOGRAFIA SEM FIOS... 3 LINHAS…...

                 
                 A manhã sorriu-me, sexta-feira, final de semana, um belo dia de sol e, mal olho as noticias, uma delas incontestavelmente hilariante...

“Governo estuda medidas de apoio à demografia”, não me contive sem soltar duas valentes gargalhadas, nem parei de cantarolar durante a barba e o banho. Para ser franco ainda estou a rir-me. Isto das medidas demográficas não é como as fitas de apanhar moscas que vemos nos cafés, não é atar e pendurar como o chouriço da preta, não se penduram sem mais articulações com outras medidas cuja acção tem que ser despoletada com anos, senão décadas de antecedência. Governar é saber cantar e assobiar ao mesmo tempo e esta gente há quarenta anos que não me alegra. Só como anedotário.

Agora fazemos filhos, e daqui a vinte anos estarão a engrossar as estatísticas do desemprego que ainda deve andar pelas ruas da amargura, ou enxotam-se os ditos para a emigração, ou, pior ainda, pelo caminho que a Europa leva estaremos a empurrá-los para carne de canhão. Sublime, nem o Lomba teria tido ideia melhor. Santa ingenuidade.

Já que vem a propósito conto-vos a história, verídica, do meu vizinho e amigo Guedes, homem probo, exemplar, desempregado há meia dúzia de anos, e que festejou há poucos meses o seu cinquentenário. Desde aí que ninguém o vê, não sai à rua, nem do sofá, nem toma banho, não lava a boca nem se barbeia ou penteia, um verdadeiro troglodita diz a D. Ermelinda, que apesar dos seus quarentas e muitos é linda, está cada vez mais linda, e mais inacessível. Nem pára em casa, isto é um corrupio de carros a ir e vir deixá-la ou buscá-la, ninguém diria que a mestiça geraria tanta empatia, é a mestiça mais branquinha que já vi, mais branquinha que muitas branquinhas mas estou a divagar, estou a perder-me, onde é que eu ia, na D. Ermelinda que de mãos na cabeça vitupera o troglodita que tem lá em casa, não há quem aguente, isto é impossível, até me envergonho de levar alguém a casa, e não havia necessidade, o pior já passou, graças a Deus não devemos um tostão a ninguém e a Belinha já vai orientando a vidinha.

A linda Belinha sai ao pai, nota-se bem que é mestiça embora tal se confunda com um bronzeado imaculado, no resto sai à mãe, aliás sai muito com a mãe, quero dizer saía, já vai saindo sozinha e se em algo difere da mãe é nas preferências quanto a automóveis, D. Ermelinda pendendo mais para carros grandes, Mercedes e BMW, e a Belinha mais modesta, mais pragmática, mais virada para a classe B, Golfs, Nissans, Méganes, Toyotas, Astras e assim. A malta nova tem uma visão variada e mais dilatada dos horizontes desta vida, muito desigual até do irmão, que vive do RSI e não se sabe mais de quê, mas lhe chega para as roupas e ténis de marca que eu nem a invejar me atrevo, é gémeo da Belinha mas ninguém diria, ela uma mulheraça assumida ele um gaiatão ainda, vivendo todos do RSI, nem sei de onde vem tanta fartura naquela casa onde só o vizinho Guedes trabalhava e durante anos e anos vi aguentar com uma pernas às costas aquela casa feliz que contudo, e para falar verdade nunca vi tao feliz como agora, à excepção do Guedes, precisamente ele que era o apoio da família, o cabeça de casal, o pilar, o alicerce e a força daquela casa que parece ter aprendido a viver sem ele, viveria melhor sem ele que agora só “estrova” como a D. Ermelinda de vez e quando lhe atira à laia de motivação fazendo com que todas as cabeças assomem à janela na nossa rua.

Há meia dúzia de anos existia já, frente à casa onde vivo, um pátio com uma série de barracões que seriam para demolir, assim me disseram na altura em que visitei a casa, que estava à venda havia algum tempo apesar de barata, mas na qual ninguém pegava. Mostraram-me inclusive uma muito pormenorizada, muito colorida e muito bonita planta de um parque ajardinado previsto para a área dos ilegais e infectos barracões, uma coisa linda, e, ao ouvido, confidenciaram-me não estar ali a piscina por motivo de taxas e taxinhas camarárias mas que, mal o projecto aprovado ela seria concluída, para gáudio e regalo de todos os moradores desta minha linda urbanização. Comprei a casa sem pensar duas vezes nem olhar para trás, e tivesse eu amigos na banca, como o Joe Berardo ou o Vara ou tantos outros, e não teria adquirido unicamente a minha casa mas toda a fiada delas, todas perspectivadas para a zona mais linda do bairro e igualmente à venda.

Aldrabice, tudo aldrabice e todos uns aldrabões. Quando a comissão de moradores suportando mal os verões, se chegou ao município reclamando da demora no licenciamento do projecto que poria fim aos barracões, ficou sabendo nunca ter entrado ali projecto nenhum, nada, nada mais que conversa fiada e um desenho muito bonito e muito colorido no papel e, claro, uma confidência soprada amigavelmente ao ouvido e acompanhada de uma palmadinha nas costas. Uma pechincha aquela casa, eu que aproveitasse, e aproveitei, eu e mais uma dúzia de parvos.

Mas os tais infectos barracões, ilegais, erguidos em zona agrícola onde a construção estava terminantemente proibida, albergavam uma série considerável de negócios, oficinas e escritórios, dando emprego a um magote de gente. Tanta que na rua inteira e arredores depois das nove da manhã não havia onde estacionar. Era numa dessas oficinas que o preto trabalhava de mecânico, era até muito considerado o meu vizinho Guedes, um dos primeiros moradores da minha rua, muito anterior a mim e feliz proprietário de um T1, lá mais abaixo, onde a avenida faz uma curva. Lembro-me ainda de ver a família feliz, aos fins-de-semana, toda enfiada num Mercedes preto já com uns bons aninhos mas cujo motor e mecânica o Guedes mantinha funcionando como um relógio suíço, a D. Ermelinda na frente, sempre ajeitando as alças do sutiã, tinha um peito admirável, ainda tem mas não é para os dentes de qualquer um, e agora muito menos que refinou o gosto e a auto-estima, esta coisa do desemprego ser uma oportunidade que se abre não é para toda a gente, nem toda a gente entenderá a coisa. O que lhes valia era o carro ser grande, os gémeos atrás e os outros três miúdos, pouco mais que bebés espalhados por ali com as bolas, as bóias, o cão e o gato e nem me alembra mais o quê.

A oficina do Guedes, do Guedes é como quem diz, onde o Guedes trabalhava, foi das primeiras a falir e o preto dos primeiros a ir para a rua. Paulatinamente quase todos os barracões foram fechando e hoje só não sobram os lugares de estacionamento na rua porque alguns vizinhos mantêm os carros parados meses inteiros, por vezes empurrados para ali com os depósitos vazios.

Desse dia em diante a auto-estima do Guedes foi-se apagando até se transformar no trapo que hoje para ali está. Graças a Deus a auto-estima de D. Ermelinda foi aumentando na proporção directa em que o Guedes a perdia e a casa aguentou-se, diria até estarem melhores agora que dantes, por vezes até eu duvido se este ajustamento não terá sido o sucesso que dizem, passo devagar frente à casa e pelas janelas abertas e convidativas vejo o Guedes esparramado num belo sofá de couro, invariavelmente agarrado a uma garrafa de uísque das que nem me atrevo a comprar, nem em promoção, na parede um plasma gigante, cortinados de renda, e não fosse o Guedes por vezes vir desabafar à sacada juraria tudo ir bem no reino da Dinamarca mas ele:

- Apoio demográfico o caralho que os foda ! Cabrões de merda, aldrabões, demografia a puta que os pariu ! Quantas vezes já me foderam o abono de família ? Sempre a reduzir a reduzir ! Nada devo a ninguém ! Cumpram que eu já cumpri e nem devo um tusta que seja a cabrão nenhum !

Acontece que frente ao Guedes vagara um T5, propriedade de um engenheiro incapaz de o pagar, que acabou por se pirar para o Canadá com a famelga e de cujo prédio o banco tomara conta. Ora a D. Emília já tentara com o banco proceder a um ajuste, entregar o T1 pelo T5 e pagar o remanescente, mas o banco não aceitara as condições e cometera a asneira (não confirmada) de estar por obrigação com a Misericórdia guardando o T5 para uma família numerosa de refugiados… A tampa saltou ao Guedes:

Refugiados o caralho ! A caridade deve começar em casa ! Toda a vida paguei os meus impostos e agora para aqueles cabrões tudo e para os tugas nada ! Puta que os pariu ! Também tenho uma família numerosa ! Se fosse no tempo de Hitler já teria ganho uma medalha ! Deus me dê paciência para aturar estes cabrões de merda, paneleiragem ! Vão todos para a cona da mãe !

Realmente ninguém se admira que D. Ermelinda tenha reservas quanto a levar alguém a casa… Com um marido assim coitada… Não entra gente mas sai ela, e sai muito em visitas e cada vez sai mais.

A Belinha segue os conselhos e as passadas da mãe e lá se vai orientando, está bonita, está alta, está altiva, está uma senhora. É ver a deferência com que todos os cavalheiros a tratam quando a vão deixar ou buscar ali, ao princípio da rua, a cinquenta metros de casa.

O mais velho não dá preocupações a ninguém a não ser aos técnicos do RSI que semana sim semana não lhe entram em casa, por ele e por toda a família, todos vivem do RSI e sei que votaram nos mesmos porque várias vezes os ouvi: 

- É preciso não perder o que já conseguimos… diziam.

É boa gente, gente que cumpre o seu dever cívico, gente que conta, gente que vota, as pessoas não são números, as pessoas contam, e os Guedes têm-se orientado bem nos difíceis caminhos que a nossa democracia nos oferece.

Cá por mim acho que deviam legalizar a prostituição. Gosto do meu vizinho e amigo Guedes e sei que seria um estigma que lhe tirariam de cima. Afinal fazem-se tantas leis parvas que a gente nem percebe a urgência, leis para a paneleiragem, p’ra adopção ou coisas do género e de género, da regionalização, da poupança e das gorduras do estado, tudo leis de merda a que ninguém liga, enfim é a nossa sina…

….. Apoio à demografia…. hihihihihihihihihi !

Como diria o Guedes vão-se todos foder………….…..