Ela
pousou a mão com cuidado, diria antes com delicada suavidade agarrando com firmeza. Limitou-se a fazer deslizar a mão, como quem toma consciência
das coisas, não queria usar de força a mais, desnecessária até e
contraproducente naquela situação, pelo que depois de agarrar firme mas escrupulosamente
e de feição, rodou cuidadosamente a mão para um lado e para o outro a fim de
lhe tomar o efeito e, encostando a perna apressou os movimentos que foram
ganhando impetuosidade e persistência, ou cadência e, buscando mais confortável
posição e que lhe permitisse aplicar essa força de modo mais prático e
proveitoso encostou também o ombro e a cabeça, insistido nos gestos de modo
que, ignorando a realidade mas sendo possível observá-la do exterior diríamos encontrar-se
em desespero, por fim e numa cadência multiplicada, aplicando simultaneamente
mais força na coxa que lhe encostava e no ombro com que empurrava logrou
repentinamente o seu objectivo e, nesse preciso momento o sorriso de esgar se
lhe transformou num radioso e rasgado sorriso de orelha a orelha, como se da
satisfação obtida jorrasse uma luz, uma luz resplandecente, iridescente e
maravilhosa que a banhou num jacto quando já desesperava de conseguir os seus
intentos e colocava em si mesma a culpa de falta de força ou de jeito, ou de ambas
as coisas, quando na realidade sabemos que não lhe cabia a ela a causa de tal
imputação, pois toda se aplicara e dedicara afincadamente a uma situação que nem
previra e com a qual nunca contara, enquanto nós sabemos quanto o imprevisto
pode dar cabo das melhores
intenções, e que a falta de planeamento ou de programação nos obrigam ao
improviso, quantas vezes sem resultado positivo, proveitoso, ou sequer
satisfatório ou aceitável, deixando tudo ao sabor do acaso, ao Deus dará, ao
calhas, entregue à sorte, coisa que ela de todo não desejava, não queria, e
temia até, como sabemos.
Gostava
das coisas dentro de uma certa razoabilidade, nunca esperava nem desejava
milagres embora em criança tivesse sido educada num colégio de freiras em Gurué, igualmente e com a mesma fé abjurava o
desastre, o imprevisível, o irrealizado ou o objecivo não conseguido. O normal e
expectável bastava-lhe, nem tanto ao mar nem tanto à terra, nem oito nem oitenta,
a normalidade era a sua praia, era nela que se sentia bem e à vontade consigo
mesma e com os outros, pelo que a cena que ora terminara a exasperara e deixara
irritada, irritável e com uma compreensível má disposição.
Conhecera-o
num congresso de bibliotecários, arquivistas e documentalistas, o seu ar jovial e o porte atlético em contraste com o balofo marasmo da profissão escolhida
atiçara a curiosidade dela sobre ele ao ponto de ter dificuldade em o imaginar
numa biblioteca, reino do silencio onde um gesto repentino ou inusual não tem
lugar, nem sequer concebemos, muito menos ela o conceberia ali, lá, peado, mãos
amarradas por um garrote, risos abafados, não andando mas deslizando os pés num
sussurro, não, ela nunca o imaginaria assim, antes de mangas arregaçadas e
colarinho desabotoado, fralda da camisa por fora, desbragado, cabelos ondulando
ao vento e tocando-lhe na face, na dela, que já antevia o seu abraço, já se via
nos seus braços musculados e morenos por isso lhe era cada vez mais
incompreensível e penoso que ele tivesse escolhido uma profissão de maricas, se
não de maricas pelo menos amaricada, e só aceitava sonhá-lo manobrando um
veleiro, agarrando firmemente a roda do leme, ajustando as velas, retesando o
cordame e cheirando a “Old Spice”.
Fora
preponderante na compra daquela velha mansão o seu estilo clássico, claro que o
preço também ajudara, os dois se encarregariam de, com tempo, procederem ao seu
restauro com o mesmo cuidado que ele colocava nos palimpsestos que manobrava ou
restaurava na biblioteca e lhe moldava o caracter, a têmpera, a calma e
sobretudo a perseverança e a paciência. Começaria pelas divisões de maior
premência, o quarto grande, a casa de banho mais próxima dele e a cozinha.
Depois e gradualmente recuperariam o resto da casa, da chaminé às clássicas
janelas e portas, as primeiras de vidros cristalinos e biselados. Foi assim que
no quarto, de tecto alto, os cortinados que mais pareciam um panejão de palco
foram casados com uma cama com dossel, de estrutura em baldaquino e colocada na parede
oposta à lareira. Naquele ninho acolhedor ela sentir-se-ia uma rainha, e não
fosse a desmesurada altura das janelas e das portas e o quarto de dormir,
nupcial, seria o paraíso na terra. Talvez eu me tivesse esquecido de
esclarecer, mas o ar extasiado e absorvente que ela apresentara sempre que a
ele coubera discursar para a plateia tinha sido notado. Não por acaso ela
escolhera os lugares da frente, e quando já se imaginava ficando para tia ei-la
ali entregue àquele adónis cheirando a barro, a papiro e a pergaminho. Afinal
não pedira nada mas desejara-o fervorosamente, e o milagre aconteceu.
Sentia-se
uma rainha, e passara a prestar mais atenção a si mesma. O quarto, mau grado as
dimensões majestáticas era um ninho acolhedor pelo que devia atribuir a si própria,
e não ao quarto ou a ele a sensação de estranheza sentida, como se ainda
duvidasse de tudo, em especial dele, ela que dificilmente deixava alguém
chegar-lhe perto, para mais tratando-se de homens. Mas não, não fora ele que a
desiludira ou iludira, fora ela que abrira uma excepção no modo e postura para
com os outros, para com ele, para com os homens, a quem invariavelmente
considerava alarves, engatatões, interesseiros e vezeiros, só lhes interessando
a satisfação dos seus prazeres quando afinal este não era nada disso, não era nada
assim, pelo menos quanto a este ela tinha-se enganado redondamente e ainda bem
pois era feliz, sentia-se feliz, o sexo não era o papão assustador que ela
julgara e agora apreciava tanto quanto ele. Custava-lhe admitir mas, no caso,
ela é que o tinha engatado, a engatatona afinal tinha sido ela, e
sinceramente sentia por vezes vergonha de si mesma. Não haveria afinal tantas
razões para temer os homens, em especial este gentil bibliotecário.
Em desespero
e afogueada, juntou todas as forças e, fincando o pé na almofada da porta,
agarrando o lindo puxador de cristal e porcelana afastou-se para ganhar balanço
tanto quanto os seus braços lhe permitiram e aplicou, enquanto o pé empurrava e
a mão torcia a maçaneta para fazer rodar o trinco, uma valente pancada com o
ombro, orando mentalmente para que a manobra surtisse o efeito desejado, e
assim foi. Ouviu-se um estalido, que ela sentiu na mão através da maçaneta e a
alta e pesada porta finalmente abriu-se, diga-se que de rompante e, não fora
ela ter dado um passo em frente no momento certo tendo-se apoiado no puxador e certamente teria caído estirada ao comprido no chão, fruto da sua própria
força, vontade, ímpeto e impaciente desespero. Ele acordou sobressalto com a
manobra e de um pulo estava junto dela, amparando-a, acarinhando-a,
consolando-a, mimando-a e jurando-lhe que não passaria outro dia sem que
oleasse o mecanismo da velha fechadura que, volta não volta teimava em não
abrir e ameaçava encerrá-los no seu “castelo do amor”, como ele se referia ao
quarto onde a tomava ternamente de assalto, ao deitar, ao acordar, ou nos mais
imprevistos momentos, momentos em que ela, toda ela, muito delicada e docemente
lhe chamava o seu gatinho ou, pasme-se, o seu engatatãozinho, e se deixava
tomar, invariavelmente por trás como se fosse uma gata no cio, perdão, uma
gatinha no cio, a quem ele mordiscava a nuca e beijava com carinho os cabelos
platinados.
Nunca
digas nunca, nunca digas desta água não beberei, nem nunca duvides quanta
ternura pode esconder um selvagem ou amargura um gentleman. A educação católica
dela, adquirida desde tenra idade no Colégio de Gurué e vincada em moldes ainda
mais conservadores no Liceu particular de Nampula tinha-lhe limitado os
horizontes inerentes aos sentimentos, ao amor, ao carinho, à ternura, e ao
sexo. Somente Coimbra onde se formara em economia a libertara parcialmente desses traumas e complexos.
Verdade que nem todos os sonhos acabam em pesadelos, mas a liga de apoio às
vítimas está cheia de histórias tristes, por vezes de final mórbido ou
desgraçado. Nunca esqueças, nem oito nem oitenta, a virtude está no meio e, em
caso de dúvida não hesites, confirma, apalpa….