Nós
queríamos vê-las, não tanto porque isso tivesse alguma particular importância,
essencialmente matar-nos-ia a curiosidade. Nem era eu o único sedento por
descobrir o que teriam elas de especial que fizesse aquele grupinho dos grandes babar-se e gargalhar
sempre que alarvemente se juntava. Invariavelmente eram cercados pela garotada e pela rapaziada, ávida de os ouvir, mor das
vezes sem os entender…
Houvesse
esperança e paciência para esperar que no fim da conversa as mulheres viriam forçosamente à
baila, nunca vi nenhum daqueles grupos dispersar-se sem que assim não fosse e
sem que dissensões que eu então não entendia conduzissem à dispersão dos grupos
de galhofeiros.
As
viagens eram difíceis, nem melhoraram de ano para ano, ao camião eram adaptados
uns bancos corridos de tábua e que se estendiam a todo o comprimento da caixa
de carga, quatro filas. O toldo acarretava a desvantagem de concentrar os gases
de escape, pelo que a tosse e os vómitos eram coisa normal e nos punha a brigar
por ficar numa ponta. Uma vez chegados e as tendas grandes montadas depressa a
rotina se instalava e a vila deixava de ter segredos para nós.
Naquela
manhã dois ou três de nós esquecemos a praia e ultrapassámos o farol velho, um parque de
caravanismo, o pinhal e a extensão das dunas, para nos quedarmos entre as
rochas da praia do norte que nem areia tinha, mas tinha ouriços e estrelas-do-mar,
caranguejos, peixes coloridos e por colorir, rochas e rochedos, algas, lismos e
um mar verde cor de jade lindo lindo lindo, onde a espuma da rebentação,
envolvendo-nos, nos abraçava e isolava num mundo impar de fantasia em que nem
sede nem fome nos vinham à lembrança. Mais que uma vez bebemos água do mar e
comemos lapas cruas, como se fossem ostras…
De
sandálias, botas ou ténis pendurados ao pescoço pelos atacadores calcorreávamos
quilómetros, explorando a maré vazia e sem darmos pelo tempo passar até que na
volta, repentinamente aquela extensa rede de arame, ondulando pelas dunas e a perder de
vista, alta, malha miúda, pontilhada de sinais e avisos em três línguas,
convidando os mais afoitos a afastar-se e vincando a privacidade do local. Foi
o suficiente para nos captar a atenção e prender ao lugar, expectantes por
conhecer o mistério escondido por tanto sinal e tanto aviso. Só faltavam os
cães. Quase em uníssono lembrámo-nos de uma conversa dos grandes ouvida umas
noites atrás à volta da fogueira, e em coro exclamámos:
- É
o parque de nudismo !
O
castelo abrigava as tendas do vento frio soprado pelo mar naquelas noites de
Agosto, mas durante dia e em especial à tarde concentrava o calor sendo quase impossível
mantermo-nos ameias dentro. Quem conhecer o castelo de Sines achá-lo-á bonito, lindo, um dos
mais belos e de onde se estendia a vista por maravilhosa paisagem que
o mar ternamente afagava. Agora, com as obras do porto toda essa magia se foi,
mas naquela altura era o paraíso na terra.
Junto
à única saída do castelo todas as manhãs o mercado dava vida e cosmopolitismo
ao lugar, e à tarde, aos sábados e domingos as matinés do Cine Vasco da Gama e
do Cine Esplanada entretinham a gaiatagem, olhos nas fitas e comendo pevides,
amendoins, maçãs caramelizadas ou pastilhas Pirata, ou pelas noites frescas,
diariamente e sempre que não nos entretínhamos a deambular pela vila ou pelo
magnifico jardim aberto e mesmo a jeito, à saída da esplanada do cinema.
É
curioso como recordo tudo isto mas nem uma cara dos que comigo corriam,
brincavam e nadavam, lado a lado, ou sequer das largas dezenas que comigo
acamparam naquela experiência de escuteiros da Bufa, perdão, da Mocidade Portuguesa,
em que a cada dia uma dúzia de nós era escalada para faxina ajudando à mesa, a
confeccionar as refeições, a descascar batatas ou a lavar hortaliças. Ainda hoje
lembro o cheiro inconfundível do café com leite, ou antes do leite com café, os
papossecos quentes barrados com uma margarina amanteigada e granulosa que
deixava a língua esquisita e a travar. O que não recordo é quem, na dúzia de chuveiros e torneiras montadas a céu aberto junto à muralha tomava
banho a meu lado, ou a meu lado lavava o prato do almoço ou do jantar.
Se não
fosse por uns seixos muito redondinhos e acinzentados que se pintados de vermelho
pareceriam medronhos nem lembraria o Clemente nem o Lourido, com mais dois ou três anos que eu e por essa altura
conheci. Um faleceu há pouco, em Ponte de Sor onde escolhera viver, decerto de
alguma cirrose mas isto já sou eu feito maroto a imaginar, Deus lhe tenha a
alma em descanso. O outro dei com ele de caras há uns meses e pareceu-me um velho,
abatido, barba por fazer, escondido e tiritando dentro de um robe maior que
ele, mas, curiosamente, ostentado a mesma cara de menino com que quase há
cinquenta anos o conheci, menino descarado que mijava mais longe que qualquer
um e a tinha de longe muito maior que a de todos, pois que se puseram uma vez a
disputar-lhe o tamanho despertando a curiosidade, a animosidade e atenção da
malta toda que já se preparava para dormir, mas preferiu puxar dela antes que
lhe chamassem maricas, apesar de muitos de nós nem conhecermos muito bem tudo para
que aquilo servia. Aos curiosos e em especial às curiosas adiantarei que eu
fiquei na média, o meu nem era o maior nem o mais pequeno, já então possuía,
como hoje, um número de senhora, maneirinho, tamanho indicado para senhoras…
Mas por
falar em curiosidade e voltando à rede aramada e ao seu mistério, toda aquela extensão
perdendo-se de vista pelas dunas e espicaçando-nos a curiosidade debaixo de um
sol abrasador, sem um único pinheiro ou arbusto onde nos abrigarmos, fez-nos
palmilhar quilómetros na esperança, vã, de ver alguma mulher nua. Não vimos, e
apesar de todos pela vida fora me terem garantido que as mulheres são todas
iguais e quem viu uma ter visto todas, hoje sou capaz de afirmar que o não são. Começam
logo por não terem todas a mesma profundidade no olhar nem o mesmo calor se nos abraçam.
São
diferentes, muito diferentes, e por vezes essa diferença nem é subtil, é marcada
e marcante. Cada uma é única, soltam gargalhadas distintas e mesmo que tenham
as mesmas cócegas não riem do mesmo modo, e estendem a perna ou o pé de forma
desigual. Nem dormem para o mesmo lado, nem gostam das mesmas coisas nem das
mesmas posições. Há as que nos abraçam até que lhes sintamos o bater do coração
e as que nem coração têm, há as que nos enlaçam com as pernas numa devoção que nos
renova a esperança e solidifica a fé. Há as que beijam com sofreguidão e as que
nos sugam a alma sem perdão. Há-as volúveis, ou com profundidade, como há as
que corporizam a vacuidade em contraste total com todas aquelas que nos
conduzem ao abismo.
As
tintas esbateram diferenças no que à cor do cabelo concerne, mas Deus fez com
que não pudessem disfarçar o sorriso, o rir, ou o bater das pestanas. Já não
fumo, fumei quase quarenta anos e ia-me matando, e sempre detestei mulheres que
fumem ainda que, depois de, adorasse puxar de um cigarro e fumá-lo de papo
virado para ar, ficando ali falando com ela, de economia, história ou geografia…
*
«O
que eu gostava ouvi-la falar de economia … ou qualquer outra coisa,
matemática, física, história, ou geografia… Estirado, pés fora da cama,
inalando indolentemente um cigarro, debaixo da manta curta.
Tu
falavas, eu ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias, à pressa, como
sempre, como tudo, como se o vagar pudesse acabar-se um dia, ou eu, a quem a
tua conversa seduzia, como feitiço que sobre mim caísse e revolvesse numa
inquietação obscena.
Amavas
focar a geografia, contares-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu
nos vias, e eu, nostálgico, sorria e, numa ternura impaciente, desatava-te os
laços e lacinhos, por vezes com os dentes.
Recitavas
pela enésima vez a história da economia, a beleza dos números, ah ! Mas não de
todos ! Repreendias-me com sarcasmo :
- Apenas números grandes ! As deduções e
induções, as tendências, as projecções ! ……………….
Emergias.
Sorriso afivelado, cantos da boca babados, seios pendurados, divertida,
maquiavélica, diabólica, demoníaca :
-
Acabou-se a matemática a álgebra e a trigonometria !
Incapaz
de travar-te as investidas, desejoso de aparar-te as manhas conhecidas, para
depois ficar ainda ouvindo-te, molengona, falando de economia, história e
geografia. Há anos te recordo em cada anfiteatro, em cada seminário, workshop
ou auditório» *
Quem
diria.
* http://mentcapto.blogspot.pt/2014/05/189-o-que-ela-adorava-falar-de-economia.html