quinta-feira, 1 de junho de 2017

436 - A SACRALIDADE DO PODER E A POSSE


A velha questão da origem do poder não é recente, nem sequer recua ou remonta à coroação de D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. O meu bom amigo Vilaça diria tratar-se duma questão tão velha como o… e, para vos dar de imediato uma ideia geral diria ser consensual, isto é, ser tão velha quão a invenção de Deus pelo homem.

O poder só se conquista pelas armas, por transmissão dinástica ou através de eleições. Sempre houve desde a pré-história casos em que a origem do poder não deixava dúvidas, o ceptro ou a coroa de louros seria arrebatada pelo vencedor de uma luta, ou de uma guerra, dificilmente sendo o vencedor contestado ao tomar o poder para si e entronando-se ou fazendo-se entronar. 

Mais tarde encarregaria ou delegaria tal na classe dos sacerdotes ou não eram eles a entidade intermediária entre Deus e os homens ? Não podendo a divindade estar presente devido a mais urgentes afazeres, fazia-se que agisse por meio dos seus representantes, os únicos autorizados e capazes de interpretar augúrios e valorizar escolhas, fosse com base em vísceras de animais ou no palpitar de um coração acabado de arrancar. 

Actualmente existe também o recurso à leitura das borras de café ou à interpretação dos búzios e conchas atirados aleatoriamente para o areal de qualquer praia ao anoitecer, mas seja qual for a metodologia utilizada o fito será sempre avaliar os predicados do guerreiro a entronar ou do apaixonado a aceitar.  

Com o crescimento do clã, da tribo, do povo, cresce a necessidade da burocracia e dos cargos para a preencher, com a sedentarização surgem os agricultores, os pescadores e caçadores, ou mantenedores, depois a necessidade de quem defenda estes da cobiça de outros clãs, de outras tribos ou povos e aparecem os guerreiros, ou defensores. 

Daí a que surjissem os intermediários junto do divino foi um passo, o homem é místico, emergem os sacerdotes, os oradores e outras classes que a evolução conturbada do homem no planeta foi tornando necessária, os feiticeiros, os físicos e os boticários para nos tratarem da saúde, os barbeiros e os sangradores, os escribas e os mestres, os servos, os escravos, todos fazendo parte ou construindo uma estrutura ou organização piramidal, daí a frase “piramiza filho piramiza” que é como quem diz vai-te foder, desaparece daqui, pirâmide essa sobrecarregando as bases e terminando no pico com um só, que se arrogara e encarregara do direito de estar aí por vontade divina, fosse o divino quem fosse, para a circunstância qualquer um serviria e além de servir convinha…

No vértice o mais poderoso, o mais forte, o invencível, o que reinará sobre tudo e todos, o que tudo e todos possuía, inclusive o direito à vida dos seus inferiores. Ainda hoje assim é, ou é assim, daí enviarem mancebos para a guerra em defesa de interesses duvidosos, quando não próprios, de um grupo ou classe superior e possidente. 

Enviar jovens como carne para canhão em defesa duma pátria inventada para que melhor reinem não é dispor do direito à vida dos outros ? Possuir a vida dos outros ? Possuir os outros ?


A tomada de posse evoluiu naturalmente, da unção com uma lança ou uma caveira passou-se à unção com um ceptro ou uma espada. Nos dias de hoje é usado um recurso muito mais afiado e de maior amplitude, o discurso. Atestar o direito divino ao poder tornou-se crucial mas indispensável em especial nos casos de dinastias nascidas ou interrompidas. 

Vejam-se os casos de D. Afonso Henriques que a ele mesmo se armou cavaleiro com apenas 13 anos, em Zamora, 1125 pois já nesta altura só reis poderiam escolher e armar cavaleiros, ainda que apenas viesse a usar o título de rei somente em 1140 após aclamação na batalha de Ourique, prestando vassalagem ao Papa em 1143. O mesmo Papa que em 1179 através da bula Manifestis problematum reconhece finalmente o reino de Portugal, isto é deu posse a Portugal. 

Alguns anos mais tarde, por volta de 1305 oficial ou legal e unicamente aos reis seria permitido armar cavaleiros, o poder centralizava-se. No caso de D. João IV que sucedeu a D. Sebastião, morto em Alcácer-Quibir e pôs termo à dinastia filipina em 1640 não tomou posse, foi simplesmente aclamado como rei pelo povo e em cortes a 15 de Dezembro desse ano de 1640.

 Quem não for ungido em cerimonial será desvalorizado, ou nem se considerará empossado. Esta coisa da posse tem muito que se lhe diga e mais derivações ainda, o tomar posse, a posse em si, o possuir pode envolver ou abranger casos e situações surpreendentes, possuir a mulher por exemplo, é coisa que não estará completa sem o ámen dum sacerdote, ou do regedor, do notário, sem que ela seja ungida com o ceptro, a espada, a lança, o talo, daí dizer-se não estar o casamento consumado sem que a mulher seja atravessada pela espada, pela lança, possuída, penetrada, fodida. 

É um ritual machista e mundial este da posse da mulher de que nem as feministas se queixam nem a ele se subtraem, e pode como disse atrás revestir-se de derivações aberrantes ou absurdas, como por vezes acontece com o “ó filha não serás nunca inteiramente minha sem me dares esse rabinho redondinho e formosinho”… e a tomada de posse pela penetração meiga ou forçada ficará ao critério do macho possuidor, que o fará com mais ou menos dor ou meiguice e de acordo com a ideia muito própria que tenha da tomada de uma fortaleza ou de uma tomada de posse.


Portanto minhas meninas, quanto à história do “amor sou toda tua faz de mim o que quiseres” seria melhor que ficassem caladinhas no que à dádiva desses miminhos concerne, pois muitas enrabadelas acabam no hospital com dois ou três pontos de costura pelo menos, se não mais, dependendo do bacamarte do guerreiro ou do ceptro do rei. 

A penetração anal, longe de ser um acto de amor, é um brutal primevo e irracional acto de posse e submissão da mulher enquanto mero objecto da satisfação animalesca do homem, não diria do homem das cavernas mas diria do homem do talo, do homem das couves. Contudo tende em conta que este texto não tem por finalidade debruçar-se sobre a tentação, o pecado, a proibição ou o prazer, nem tão pouco atentar sobre fantasias, taras, manias ou desvios, cousas do âmbito da psiquiatria, da psicologia e da religião, as quais a pedido poderão ser exaustiva e sacramente abordadas noutra ocasião.

Ainda a propósito da sacralidade do poder, das cerimónias de tomada de posse ou de investidura acrescentaria que se em 1971 no Uganda tivessem investido um macaco em vez de Idi Amin Dada, (1920-2003) * toda a África teria beneficiado. 

E chegámos onde pretendo chegar, à compreensão das atitudes do PR Marcelo Rebelo de Sousa, que diariamente desmistifica e dessacraliza o poder e fá-lo cada vez que dá um abraço, um mergulho, pendura uma medalha, atribui uma honraria, distribui uma comenda ou espeta uma condecoração no peito de alguém. Essas homenagens mais não significam que tomadas de posse, é como se alguém dissesse és cá dos nossos, doravante pertences-nos. Idem para os caricatos rituais académicos ou os deveras anedóticos protocolos das confrarias do vinho, da cerveja, do porco, etc etc etc … 

O poder e a honra andam de mãos dadas é verdade, e os nobres homenageiam-se uns aos outros, mas também se arrastam pelo chão mor do descrédito que com tanta prebenda sobre eles teimam fazer cair. É verificar o rol de homenageados e as malfeitorias perpetradas contra este país. Desde Oliveira e Costa a Bava, Granadeiro, José Socrates há para todos os gostos.

Cada vez menos serão as cerimónias e o lugar a fazer o “homem”, o estadista, cada vez mais será o homem a fazer o “lugar”. O anterior PR, uma figura hierática que todas as fotos atestam estadista, observado na sua dinâmica nada seria sem a majestade do lugar que ocupou e do cargo que lhe puseram nos ombros. Por dentro estava vazio, como soa dizer-se brincando, saiu de Boliqueime mas Boliqueime não saiu dele. 

Perdeu o BdP um bom economista de trabalhos em equipa ou de grupo, pois demonstrou à saciedade que deixado sozinho somente fez merda. Aquela cabecinha não tem nadinha por dentro, nada, nem couves, talvez a Maria tenha apreciado o talo.  


* Major-General do exército ugandense, ditador militar e o terceiro presidente de Uganda entre 1971 e 1979 que se autopromoveu a Marechal de Campo e cujo governo ficou caracterizado por violações dos direitos humanos, repressão política, perseguição étnica, assassinatos, nepotismo, corrupção e má gestão económica. O número de mortos durante seu regime ditatorial é estimado por observadores internacionais e grupos de direitos humanos como situando-se entre cem mil e quinhentos mil.

terça-feira, 30 de maio de 2017

000 435 - DE ANGOLA A CONTRAGOSTO…..........


No momento crucial a Tv apagou-se e, aleatoriamente começou saltando canais, por momentos pensei ter-me sentado em cima do comando, mas não, estava ali ao lado onde sempre o deixo, pelo que lhe lancei a mão na esperança de repor a ordem no televisor e não perder pitada do programa pelo qual esperava havia mais de uma semana, uma reportagem sobre o 27 de Maio de 77 em Angola e que acabei por ver em péssimas condições num pequeno televisor que tenho na cozinha, em cima do frigorifico, ao qual tiro o som na hora das refeições e dos noticiários, e me ajuda a engolir algumas noticias e uma ou outra colherada mal mastigada. Porém perdi a melhor parte da reportagem, ainda que a tenha entendido mais ou menos, o que nem foi difícil.

O plasma que avariara tinha já três ou quatro anos, tinha sido uma extravagância minha, sendo quase do tamanho de um campo de futebol, um espectáculo dispondo de quinhentos canais. Dispunha mas já não dispõe, ao mandá-lo reparar apercebi-me que a avaria era num deles, na placa que os controla, tendo-me o técnico dito ser coisa fácil de reparar e barata, comum naquele modelo. Um chante ligando o canal anterior e posterior ao avariado e a coisa estaria feita, eu que não me apoquentasse pois ainda ficaria com quatrocentos e noventa e nove canais.

- E esse chante não pode ser maior ? 

aventei eu a hipótese, farto de fazer zapping entre quinhentos canais dos quais alguns eram replicados mais de dez ou vinte vezes, fiz a pergunta na esperança de resolver ali esse outro nada pequeno problema.

- Poder ser pode, é só prolongar mais o fiozinho de solda do chante que percorrerá o circuito integrado, mas não ganha nada com isso, bem, olhe, mais caro também não lhe irá sair, aqui o freguês manda e o mestre diz que se deve albardar o burro à vontade do dono, ok, será feita a sua vontade, passe cá logo pelo fim da tarde.

Agradeci, solicitei então que fossem retirados quatrocentos canais, os cem ou noventa e nove que ficariam chegariam e sobrariam, seria até uma grande felicidade e maior gozo me proporcionaria. E cá está ele o belo e o bom plasma funcionando às mil-maravilhas e agora mais acessível e prático, tudo por uns meros quinze euritos.

Perdera mais, ou custara-me mais ter perdido parte da reportagem embora nada do que ela focou tivesse sido novidade para mim, ao fim e ao cabo a minha preferência e simpatia pelo MPLA terminara em 78, muito antes de findado o período negro que acabaria somente em 79, muito cedo me apercebera haver quem, para se manter no poder lançasse mão de todos os instrumentos e os fins justificassem os meios, como tal não admira que os resultados do massacre e os seus ecos cedo tivessem chegado até mim e me tivessem atingido, pois nele vi desaparecer dois parentes, ainda que não muito chegados. (a imprensa avocou cerca de 40.000 vítimas).

De qualquer modo os sms que nos últimos dias me têm feito chegar, as mensagens recebidas, as opiniões observadas, discutidas e trocadas, levam-me premonitoriamente a pensar estarmos perante um iminente episódio desses, uma vez mais destinado a manter no poder uma classe, uma casta, uma etnia, um clã, no caso uma família, já assim fora quando do massacre de Outubro de 92, em que no espaço de três dias, foram assassinados em Luanda milhares de apoiantes da União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA) e da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), pensa-se que terá havido dessa vez umas 20.000 vítimas. Parece estar a tornar-se um hábito, sempre que o poder tremelica o MPLA despoleta uma purga…

Bastará que o Zé Eduardinho se fine, bata as botas, a transição não foi preparada, o regime está podre de corrupto e caindo por todos os lados, os mecanismos democráticos não estão nem foram preparados para agir apesar dos supostos quarenta anos de democracia, na eventualidade que se avizinha vai ser cada um por si, todos ao molhe e fé em Deus, tal qual aprenderam connosco. O que me falha, por há décadas não ser um operacional é uma avaliação do poder militar e da força da UNITA e da FNLA, ou as apreensões que a Africa do Sul alimente ainda que tenha a Namíbia como tampão de segurança, ou os temores de contágio da Zâmbia e as ambições do Congo que têm com Angola fronteiras directas.

Com Angola desestabilizada por uma luta intestina pelo poder esses reflexos estender-se-ão por toda a Africa, central e do sul, e a norte, no enclave de Cabinda (petróleo) a sua Frente de Libertação endurecerá a luta armada de libertação contra o MPLA, ao qual faltará uma cabeça para dirigir a luta contra os elementos ”subversivos” de Cabinda, podendo ser esta a oportunidade para este movimento de libertação gritar vitória. Com a desestabilização será mais que certo fazerem-se ouvir e sentir as mais variadas repercussões e congregarem-se impensáveis relações de forças cujos interesses, até agora camuflados, só então se farão então ouvir.

Desta vez não tenho a menor dúvida de que cortarão a mão a Danilo dos Santos, o filho do Presidente angolano que arrematou há dias num leilão em Cannes um relógio por 500 mil euros, isto se com a pressa não lhe cortarem logo o pescoço. Vai ser uma chacina, ou o MPLA segura e aguenta a rebelião mal o presidente morra, ou numa manobra preventiva antecede o mais que previsível ataque despoletando ele a chacina, a purga, novo massacre. Desta vez não restará vivo nem um único membro da família Santos dos três meses aos noventa e nove anos. Soubesse eu a força militar ou militarizada das milícias do UNITA e da FNLA, sedentas de vingança, e dir-vos-ia já a magnitude do massacre que se aproxima.

Chamem-me o que quiserem mas preto é preto, aprenderam connosco mas são bem piores que nós, piores no sentido instintivo, primitivo, animalesco, primário, ora se nós já não somos flor que se cheire, imaginem o que está para vir… É que estes pretos ainda não atingiram nem sequer o nosso estádio de desenvolvimento ou de evolução, que nem é dos mais elevados…

Não meto um pé em Angola há mais de trinta anos, mas tenho a minha rede informal de informações e contactos que, embora formalmente inoperacional mal e porcamente vai contudo funcionando. Aos tugas que estão em Angola recomendaria umas férias na “metrópole” de três ou quatro anos e nunca menos, outra recomendação importante é que regressem já, quanto mais depressa possível tanto melhor, porque depois da coisa estoirar será impossível, ninguém conseguirá entrar ou sair do país, fazer sair dinheiro então é melhor nem pensar, arriscar-se-ão a ser presos e quem sabe se posterior e secretamente abatidos por traição se o tentarem fazer, mais vale perder pouco que tudo, que muito, ou a vida. Vinde já porque depois haverá controles nas estradas de quinhentos em quinhentos metros, do MPLA, da UNITA, da FNLA, tudo controlará tudo e nada até que a situação exija a ONU. Se passarem um controle poderão não passar quaisquer outros, ninguém perguntará quem são os mortos nem quem os matou, nem haverá sequer quem os enterre.

Recusei há dias a ida como observador disfarçado de turista, de caçador de caça grossa, de jornalista ou de activista, recusei todos os convites e todas as opções, sou macaco velho e já tenho calo no cu, se alguém quisesse uma Angola pacífica não lhe tivessem dado a independência em 75, pelo menos nos moldes em que foi dada, mas que força tínhamos nós para mais que fingir ter sido magnânimos ? Sim, que poderíamos ter feito mais que fingir que nos impusemos e que contámos para alguma coisa ? Não sei se ainda se recordam do Mapa Cor-de-Rosa e da história de Angola à contracosta, ambição a que o ultimato inglês de 1890 pôs cobro e episódio que também terá cota-parte no despoletar da República em 1910, desta vez não vai ser de Angola à contracosta, desta vez vamos sair é de Angola a contragosto… 





segunda-feira, 29 de maio de 2017

434 - PETROMAX .......



… Depois de muito me conter julguei eu encostá-la à parede com um decisivo e peremptório:

- Eu sei escrever mas não quero fazê-lo…

- Então porque dizes isso ? Para me aguçares o apetite ?

- Para me travar os apetites. Temos que saber conter-nos.

- Fala de uma vez por todas ou cala-te para sempre.

- Sou incapaz de ficar calado. Está-me na massa do sangue.

- Doido insano.

- Doido ao quadrado, se pudesse amar-te-ia ao cubo, à terça, à tripla, à três composta, à quarta, à quinta, à sexta e ao sábado, domingo descansaria.

- Então fala caraças, decide-te.

- Se eu desatasse a falar seria até entornar o leite todo e partir a cantarinha. Seria té nunca mais me calar. E o respeito a que estou obrigado ?

- Então não fales homem do Diabo.

- Eu sou do Clube do Cupido e não do Diabo.

- Não me fecundes.

- Ta bem minha querida, adeus lindo amor do coração, por quem eu cortaria a cabeça e a daria a comer a um cão.

Fosse eu um Centauro e não falarias assim para mim, agarrar-te-ia p’los cabelos, dar-te-ia montaria e cavalgaria contigo p’los céus como Pégaso, enfrentando as alterosas ondas dum mar sereno onde te levasse e te deitasse até que, quando afogado nas suas profundezas eu finalmente respirasse e explodisse num banho de luz incontido p’lo negrume negro da profundidade do mar oceano que calhasse navegar e de tal modo essa luz me cegasse que eu visse miríades de pirilampos marinhos e grinaldas de coloridas anémonas voando no lugar das nuvens que esta felicidade afastara das alturas e eu, surpreendido pela beleza dos dias, o inusitado da situação e p'la felicidade vivida, abrindo a boca de espanto como peixe a quem faltasse o ar, me aferrasse à tua garupa, às tuas ancas, ao traseiro, aos quartos, colado às tuas coxas, procurando a firmeza de tudo quanto apregoas no lugar e procurando-te a fornalha incandescente, teimando uma e outra vez e cada vez mais fundo, almejando suprir esta avidez esta ânsia, esta fome e numa reviravolta de esperança e redenção, de fé e devoção, pudesse de ti tomar posse e entregar-me como se num rodeo montando um cavalo marinho eu lhe apontasse puxando as rédeas, o caminho da mais brilhante estrela do mar e lhe ordenasse que a buscasse, enquanto nós dois, mergulhando naquele céu de felicidade, por ser no fundo que está a virtude e a verdade, a luz e o clímax que ambos buscamos mas não encontramos, como se só o fizéssemos à luz de um Petromax, ao invés de dispararmos neste mar em que vogamos perdidos, uma pistola de sinais e rebentássemos bem alto na escuridão que nos tolhe um petardo de cor e luz cujo fulgor nos ocultasse, pois se há coisa que não quereria era sermos encontrados precisamente agora que estamos perdidos neste sonho sonhado de desejo consentido e com sentido mas travado, pois não quero que me dê um pandangaio, quero morrer farto mas não de enfarte, quero a fome de ti morta matada devagar e tu degustada devagar devagarinho como manda o Martinho e eu, feliz e contente tenha tempo até para palitar este dente que, como uma dor imaginada, como um espinho doloroso cravado na minha mente, moendo-me a consciência e esgotando-me a paciência que não tenho e se me esvai por não ferrar-te quando o que eu mais queria e tu o sabes, seria fecundar-te, deixar florir em ti a flor deste amor cujo rancor me incita a, de tempos a tempos regar-te o pezinho, alimentar-te o ego o brio o in e o id, de mansinho pois nada mais me resta que desejar-te, cobiçar-te, ambicionar-te, usar-te, ter-te, esclareça-se amar-te, não vás tu pensar julgar-te eu objecto de arte, ou artefacto, handcraft, fait à la main, sim talvez, porque não ?

Deus distraído e alguém te fez, bela e sem senão, não fora esta nossa diferença que desde a nascença nos separa e depois de ao quadrado, ao cubo ou à terça ou tripla ou três composta e depois de te fruir, gozar, ter, depois de me lamber e degustar-te como um doce um docinho que mais poderia acontecer a não ser retribuíres-me em cuidados paliativos, visitar-me uma vez por semana, por quinzena, por mês, por trimestre até que finalmente uma linda coroa de flores, um caixão baratucho e na lápide:

- Aqui jaz o Silvestre, era bom rapaz mas apagou-se…








quinta-feira, 25 de maio de 2017

433 - NO BRAGANÇA OU NO PINTASILGO ............


Não o via havia cinquenta e cinco anos ou talvez mais um ou dois, ou menos dois ou três, mas não há duvida, tem o mesmo cabelo e os mesmos olhos de menino alegre que lhe recordava, aliás das poucas coisas que nele recordava. Isso e os bibes impecáveis, que também já não lembro se brancos, se azuis aos quadradinhos miudinhos, ou verdes, também os havia verdes.

O outro tinha um bibe desses, o Kito, verde aos quadradinhos, e ainda lembro a avó Inácia Ferradora, irada, a única vez que a vi zangada comigo:

- Tu fazes-me o favor de tratar o teu primo por menino ?

E eu moita-carrasco, era Kito para aqui Kito para ali, éramos da mesma idade, ou quase, seis ou sete anos, ou oito, a esta distância eu sei lá precisar. O menino Kito era o netinho preferido dela, filho da minha tia Lenita e do tio João, João Sebastião, doutor de línguas, outra estirpe, acho ter sido a partir daí que nunca mais gostei desse meu primo, hoje ter-lhe-ia chamado ódio de classe, mas não, nem ódio nem classe, não gostava dele mas nunca lhe tive ódio, nem ele classe, acho que tanto privilégio o estragou, deve ter sido isso que fez dele um parvalhão, eu por cá continuei na minha luta de classe, uma idiotice este século em que classe e classicismo ninguém tem, conhece ou cultiva.


Não o Júlio, não isto é, também era menino, o menino Julinho, mas não era parvo, brincávamos como iguais, conheci o pai, médico, bom tipo, embora não me lembre da mãe, decerto uma senhora de predicados, foi ela quem me sentou à mesa uma vez e me serviu arroz branco com manteiga, nunca tinha visto tal coisa, nunca comera nada daquilo, Monsaraz e Portugal por volta de 1960 eram o cu do mundo, e mesmo eu que depois ia lá passar as férias grandes ido de S. Miguel de Machede não seria o espingardeiro que sou hoje.

Da varanda da casa do Julinho viam-se, por cima das muralhas, os campos em volta, hoje ver-se-á um mar salpicado de ilhotas, um mar novo, ilhas novas, quando naquele tempo tudo em Monsaraz era velho, de novo somente duas ou três ruas esventradas por onde andavam passando os canos que levariam água a duas ou três bicas, uma nas traseiras da igreja matriz, ao lado da cocheira da Ruça, a burra do meu pai, a minha burra, a nossa burra, outra a meio da rua ida da casa da Inquisição em direcção à entrada da vila, a rua da taberna do Bragança, havia uma outra taberna na rua principal da qual não lembro o nome, Pintasilgo, seria a do Pintasilgo, talvez, fui lá tanta vez e não me lembro, passaram cinquenta anos, é muito tempo.


Ou num ou noutro, ou no Bragança ou no Pintasilgo, mais neste que naquele, gostava de ir á noite ver televisão, a avó Inácia deixava-me ir se durante a manhã lhe tivesse enchido as tarefas e os cântaros de água, que ia buscar à bica atrás da igreja, do outro lado da vila portanto, com duas latas daquelas que vinham dos USA para a Misericórdia, como dádiva, e cheias de queijo flamengo para os pobrezinhos, os pobrezinhos não são uma modernice d’agora. Aqueles tipos dos States foram sempre uma cambada de fascistas prontos a convencerem-nos da sua bondade, mas a verdade é que até as luzidias latas eram aproveitadas, levavam dois furinhos e uma asinha em arame, havendo dias em que faria dez viagens com cinco litros em cada lata, era trabalho infantil que a avó coordenava como ninguém, ela que criou treze filhos, mais filhas que filhos. Não deixava de ser exploração infantil avó/neto, classe a classe dentro da mesma classe, hoje seria inadmissível tal abuso, ainda chamar menino ao Kito vá que não vá mas burro de carga ?

Mas este que reencontrei cinquenta e cinco anos depois e cuja mãe não lembro mas ainda ouço foi quem o baptizou:

- Menino Julinho almoço !

E nós dois entretidos na brinca para logo puxado por ele subirmos rindo-nos a escadaria do quintal até á varanda e à cozinha, os olhos galgando as muralhas e estendendo-se até à raia de Espanha, o vau da Guadiana, tendo sido esses mesmos olhos inocentes que reencontrei agora, os mesmos cabelos finos a quem o pai de vez em quando desfazia a compostura, mão na cabeça abanando-a, sacudindo-a e:

Menino Julinho menino Julinho …

seguindo caminho com a mesma alheada firmeza com que se aproximara de nós, vida de homem, vida de gente grande, não, ali nunca houve coacção que me forçasse a qualquer submissão ao menino com quem repartia brincadeiras e me olhava com os mesmos olhos que hoje lhe vejo na foto que o trouxe até mim, meio século depois.


E enquanto eu rejubilava por ter reencontrado este querido e velho amigo de quem direi que o simples facto de existir me contenta e deixa feliz, soube que aqui ao lado Vinícius Júnior, jogador contratado pelo Real Madrid ao Flamengo, de apenas 16 anos e que terá custado cerca de 45 milhões de euros, poderá valer 200 milhões. A uns endeusam, a outros expulsam, outros há sem eira nem beira, enquanto uns riem outros choram, e outros caem em Manchester…  Ontem ali, a norte de Londres, confiando em amigos e jogando com a existência, outro ser, outra vida, sem preocupações quanto ao facto de os amigos existirem ou não, desiste de existir, desiste de si, arrastando consigo o caos e deixando em agonia a utopia que nos alimenta as ilusões e o viver, acreditando que, numa nuvem talvez maior, mas como a que fora vista na Cova de Iria o esperariam setenta e duas virgens antes de acabar o dia…
  



terça-feira, 23 de maio de 2017

000 432 - MONSARAZ, TIOS, TIAS, PRIMAS…

Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)

Sinceramente nem sei que vos diga, pois não gosto de mentir e aprecio a franqueza. Elas eram duas, da mesma idade e quase iguais, uma era Maria Luísa a outra Luísa Maria talvez agora compreendam melhor as minhas reticências. Uma era filha do meu tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas, e da minha tia Ermelinda, a outra do meu tio Jacinto, do tio Jacinto Palma e da tia Marcelina.

Confesso o meu desapego, delas ainda vou sabendo alguma coisita de vez em quando e vendo-as ocasionalmente, talvez de dez em dez anos, geralmente quando morre alguém vemo-nos todos no funeral, e quanto às tias e aos tios penso já terem falecido todas e todos mas para ser franco nem disso tenho a certeza, nas famílias grandes é assim dizem.

O sal e os fosfatos afectaram-me muito, não se trabalha quarenta anos num distribuidor de bacalhau para sair incólume. Ainda hoje tenho gretas nas pontas dos dedos de mexer em tanto sal e já me reformei há quase vinte, mas o pior são os nitratos, ou fosfatos que alguns exportadores metiam no bacalhau sei lá para quê, talvez para pesar mais, o meu patrão ao menos esse era só água, cada mangueirada nos fardos duplicava-lhes o peso, o peso e o ganho, mas os vapores que a água levantava aos fardos quem os respirava era eu. Dizem que também são culpados pelo buraco do Ozone e pelo degelo do Árctico, sei lá, parece que Lisboa vai ficar debaixo de água, e Cacilhas, preocupa-me sobretudo o Seixal, uma das primas Luísa vive lá, e viúva, quem vai ajudá-la a lutar contra a maré quando chegar a altura ?

Acessos todos em chapada (ladeira) os de Monsaraz... 

A outra vive mais perto, mas nem por isso nos vimos mais, casou-se, o tipo arrebatou-a, meteu-a em casa, nunca mais ninguém a viu, resquícios árabes é o que é, dizem que os árabes andaram por aqui, em Monsaraz à entrada das cercanias da vila lá está uma modesta construção, cuba ou mesquita, má gente essa, rebentaram com D. Fernando e D. Sebastião, e isto nunca mais foi nada que se visse, ou de jeito. 

Vomecêses estão a par do que eles andam pintando por essa Europa ? Hoje foi em Manchester, amanhã sabe lá Deus onde será, não tenho dúvidas vai haver atentados para todos. Hoje Manchester, amanhã Chelsea, West End, Penny Lane, sobrarão, aliás era expectável, os tipos no Reino Unido andam brincando com as pessoas, andam a lixar a vida a milhares de indivíduos… 

Pisaram um vespeiro, mal entrem numa mesquita chorando serão confortados, algum de vós tem dúvidas ? Ah e tal irmão, não dirijas mal a tua raiva, aprende a usá-la, setenta e duas virgens te esperam no paraíso e tal, sê um herói e um mártir, sim claro, sabemos que não vale a pena ires a drogarias nem a farmácias mas a malta tem o que precisares desde AK47 a camiões. Um braço por cima, um toque de confiança e não haverá nenhum que saia sem um cinto de explosivos à cintura e sonhando com as tais virgens... Nunca devíamos ter tocado em Ceuta, cada macaco no seu galho.

Cuba mourisca, actual capela de S. João Baptista.

Da mesquita lembro-me ainda que estivesse meio soterrada, brincávamos em cima dela, por vezes até às sete da tarde, hora em que aparecia o meu tio Jacinto deitando os bofes pela boca, pedalando desde a fábrica de papel até cá acima, outras vezes arrastando-se ao lado da pedaleira, nunca soube se a empurrara desde a ponte até cá acima, tal como nunca o vi partir, abalar, descer a chapada, havia de ser bonito, uma ladeira daquelas, daqui à fábrica, sempre a descer, aposto que nem tinha que pedalar nem uma única vez, nunca o vi, mas imagino-o, mãos coladas no guiador, cabelos virados para trás com o vento, cigarro bem trilhado nos lábios para não abalar, a ponta avivada, o borrão voando sozinho, o cigarrinho chupadinho em três tempos, aposto que nem lhe durava, as calças presas com uma mola para não esvoaçarem ou se meterem na corrente, o chapéu entalado na caixa de lata onde levava o almoço e presa com uns elásticos daqueles das fisgas.

Entre tantas fotos esta parece-me ser do meu tio Jacinto.

Tinha cara de gente boa o meu tio Jacinto, o Jacinto Palma, de olhos azuis como o meu pai, eram cunhados, e para ser justo devo dizer que o meu outro tio o tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas também era uma simpatia, ele e a minha tia Ermelinda que só tinha igual na tia Aia, já a minha tia Marcelina, a do Jacinto, é mais ensimesmada inda que tenha uma voz alegre, fala cantando, também gosto dela.

E depois é isto, a família dispersa, nem sei se morta se viva, cada um em seu canto, não cheira a esturro ? Farei amanhã noventa e quatro anos, já enterrei muitos deles e acho que ainda vou enterrar muitos mais. Queria deixar a fortuna aos meus, mas como se nem dão sinal ? Nem sei se vivos se mortos, secalhando deixarei a fortuna à Misericórdia de Baião, que façam um hospital novo com maternidade e tudo, e um lar para os velhos, e que relvem o campo de futebol, façam um ginásio, construam as bancadas, e já agora uma igreja nova, isso mesmo, com um bom largo, para os bailes quando da vinda dos emigrantes que cada vez hádem ser mais, e um adro sem igual, para concertos, e que criem uma filarmónica para animar as manhãs da televisão, se assim for morrerei feliz.

Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)