Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)
Sinceramente nem sei que vos diga, pois não gosto de mentir
e aprecio a franqueza. Elas eram duas, da mesma idade e quase iguais, uma era
Maria Luísa a outra Luísa Maria talvez agora compreendam melhor as minhas
reticências. Uma era filha do meu tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas, e da
minha tia Ermelinda, a outra do meu tio Jacinto, do tio Jacinto Palma e da tia
Marcelina.
Confesso o meu desapego, delas ainda vou sabendo alguma
coisita de vez em quando e vendo-as ocasionalmente, talvez de dez em dez anos, geralmente
quando morre alguém vemo-nos todos no funeral, e quanto às tias e aos tios
penso já terem falecido todas e todos mas para ser franco nem disso tenho a
certeza, nas famílias grandes é assim dizem.
O sal e os fosfatos afectaram-me muito, não se trabalha
quarenta anos num distribuidor de bacalhau para sair incólume. Ainda hoje tenho
gretas nas pontas dos dedos de mexer em tanto sal e já me reformei há quase
vinte, mas o pior são os nitratos, ou fosfatos que alguns exportadores metiam
no bacalhau sei lá para quê, talvez para pesar mais, o meu patrão ao menos esse
era só água, cada mangueirada nos fardos duplicava-lhes o peso, o peso e o
ganho, mas os vapores que a água levantava aos fardos quem os respirava era eu.
Dizem que também são culpados pelo buraco do Ozone e pelo degelo do Árctico,
sei lá, parece que Lisboa vai ficar debaixo de água, e Cacilhas, preocupa-me sobretudo
o Seixal, uma das primas Luísa vive lá, e viúva, quem vai ajudá-la a lutar
contra a maré quando chegar a altura ?
Acessos todos em chapada (ladeira) os de Monsaraz...
A outra vive mais perto, mas nem por isso nos vimos mais,
casou-se, o tipo arrebatou-a, meteu-a em casa, nunca mais ninguém a viu, resquícios
árabes é o que é, dizem que os árabes andaram por aqui, em Monsaraz à entrada
das cercanias da vila lá está uma modesta construção, cuba ou mesquita, má gente essa, rebentaram com D. Fernando e D. Sebastião, e isto nunca mais foi nada que se visse, ou de jeito.
Vomecêses estão a
par do que eles andam pintando por essa Europa ? Hoje foi em Manchester, amanhã
sabe lá Deus onde será, não tenho dúvidas vai haver atentados para todos. Hoje Manchester, amanhã Chelsea, West End, Penny Lane, sobrarão, aliás era expectável, os tipos no Reino Unido andam brincando
com as pessoas, andam a lixar a vida a milhares de indivíduos…
Pisaram um
vespeiro, mal entrem numa mesquita chorando serão confortados, algum de vós tem
dúvidas ? Ah e tal irmão, não dirijas mal a tua raiva, aprende a usá-la, setenta e duas virgens te
esperam no paraíso e tal, sê um herói e um mártir, sim claro, sabemos que não
vale a pena ires a drogarias nem a farmácias mas a malta tem o que precisares
desde AK47 a camiões. Um braço por cima, um toque de confiança e não haverá
nenhum que saia sem um cinto de explosivos à cintura e sonhando com as tais virgens...
Nunca devíamos ter tocado em Ceuta, cada macaco no seu galho.
Cuba mourisca, actual capela de S. João Baptista.
Da mesquita lembro-me ainda que estivesse meio soterrada,
brincávamos em cima dela, por vezes até às sete da tarde, hora em que aparecia
o meu tio Jacinto deitando os bofes pela boca, pedalando desde a fábrica de
papel até cá acima, outras vezes arrastando-se ao lado da pedaleira, nunca
soube se a empurrara desde a ponte até cá acima, tal como nunca o vi partir,
abalar, descer a chapada, havia de ser bonito, uma ladeira daquelas, daqui à
fábrica, sempre a descer, aposto que nem tinha que pedalar nem uma única vez,
nunca o vi, mas imagino-o, mãos coladas no guiador, cabelos virados para trás
com o vento, cigarro bem trilhado nos lábios para não abalar, a ponta avivada,
o borrão voando sozinho, o cigarrinho chupadinho em três tempos, aposto que nem
lhe durava, as calças presas com uma mola para não esvoaçarem ou se meterem na
corrente, o chapéu entalado na caixa de lata onde levava o almoço e presa com
uns elásticos daqueles das fisgas.
Entre tantas fotos esta parece-me ser do meu tio Jacinto.
Tinha cara de gente boa o meu tio Jacinto, o Jacinto Palma,
de olhos azuis como o meu pai, eram cunhados, e para ser justo devo dizer que o
meu outro tio o tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas também era uma simpatia,
ele e a minha tia Ermelinda que só tinha igual na tia Aia, já a minha tia
Marcelina, a do Jacinto, é mais ensimesmada inda que tenha uma voz alegre,
fala cantando, também gosto dela.
E depois é isto, a família dispersa, nem sei se morta se
viva, cada um em seu canto, não cheira a esturro ? Farei amanhã noventa e
quatro anos, já enterrei muitos deles e acho que ainda vou enterrar muitos
mais. Queria deixar a fortuna aos meus, mas como se nem dão sinal ? Nem sei se
vivos se mortos, secalhando deixarei a fortuna à Misericórdia de Baião, que
façam um hospital novo com maternidade e tudo, e um lar para os velhos, e que
relvem o campo de futebol, façam um ginásio, construam as bancadas, e já agora
uma igreja nova, isso mesmo, com um bom largo, para os bailes quando da vinda dos
emigrantes que cada vez hádem ser
mais, e um adro sem igual, para concertos, e que criem uma filarmónica para
animar as manhãs da televisão, se assim for morrerei feliz.
Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)