Não o via
havia cinquenta e cinco anos ou talvez mais um ou dois, ou menos dois ou três,
mas não há duvida, tem o mesmo cabelo e os mesmos olhos de menino alegre que
lhe recordava, aliás das poucas coisas que nele recordava. Isso e os bibes impecáveis,
que também já não lembro se brancos, se azuis aos quadradinhos miudinhos, ou
verdes, também os havia verdes.
O outro tinha
um bibe desses, o Kito, verde aos quadradinhos, e ainda lembro a avó Inácia Ferradora, irada, a única vez que a
vi zangada comigo:
- Tu fazes-me
o favor de tratar o teu primo por menino ?
E eu moita-carrasco,
era Kito para aqui Kito para ali, éramos da mesma idade, ou quase, seis ou sete
anos, ou oito, a esta distância eu sei lá precisar. O menino Kito era o netinho
preferido dela, filho da minha tia Lenita e do tio João, João Sebastião, doutor
de línguas, outra estirpe, acho ter sido a partir daí que nunca mais gostei desse
meu primo, hoje ter-lhe-ia chamado ódio de classe, mas não, nem ódio nem
classe, não gostava dele mas nunca lhe tive ódio, nem ele classe, acho que
tanto privilégio o estragou, deve ter sido isso que fez dele um parvalhão, eu
por cá continuei na minha luta de classe, uma idiotice este século em que classe
e classicismo ninguém tem, conhece ou cultiva.
Não o Júlio, não
isto é, também era menino, o menino Julinho, mas não era parvo, brincávamos
como iguais, conheci o pai, médico, bom tipo, embora não me lembre da mãe,
decerto uma senhora de predicados, foi ela quem me sentou à mesa uma vez e me
serviu arroz branco com manteiga, nunca tinha visto tal coisa, nunca comera
nada daquilo, Monsaraz e Portugal por volta de 1960 eram o cu do mundo, e mesmo
eu que depois ia lá passar as férias grandes ido de S. Miguel de Machede não
seria o espingardeiro que sou hoje.
Da varanda da
casa do Julinho viam-se, por cima das muralhas, os campos em volta, hoje ver-se-á
um mar salpicado de ilhotas, um mar novo, ilhas novas, quando naquele tempo
tudo em Monsaraz era velho, de novo somente duas ou três ruas esventradas por
onde andavam passando os canos que levariam água a duas ou três bicas, uma nas traseiras
da igreja matriz, ao lado da cocheira da Ruça, a burra do meu pai, a minha
burra, a nossa burra, outra a meio da rua ida da casa da Inquisição em direcção
à entrada da vila, a rua da taberna do Bragança, havia uma outra taberna na rua
principal da qual não lembro o nome, Pintasilgo, seria a do Pintasilgo, talvez,
fui lá tanta vez e não me lembro, passaram cinquenta anos, é muito tempo.
Ou num ou noutro,
ou no Bragança ou no Pintasilgo, mais neste que naquele, gostava de ir á noite ver
televisão, a avó Inácia deixava-me ir se durante a manhã lhe tivesse enchido as
tarefas e os cântaros de água, que ia buscar à bica atrás da igreja, do outro
lado da vila portanto, com duas latas daquelas que vinham dos USA para a
Misericórdia, como dádiva, e cheias de queijo flamengo para os pobrezinhos, os
pobrezinhos não são uma modernice d’agora. Aqueles tipos dos States foram
sempre uma cambada de fascistas prontos a convencerem-nos da sua bondade, mas a
verdade é que até as luzidias latas eram aproveitadas, levavam dois furinhos e
uma asinha em arame, havendo dias em que faria dez viagens com cinco litros em
cada lata, era trabalho infantil que a avó coordenava como ninguém, ela que
criou treze filhos, mais filhas que filhos. Não deixava de ser exploração infantil
avó/neto, classe a classe dentro da mesma classe, hoje seria inadmissível tal
abuso, ainda chamar menino ao Kito vá que não vá mas burro de carga ?
Mas este que
reencontrei cinquenta e cinco anos depois e cuja mãe não lembro mas ainda ouço
foi quem o baptizou:
- Menino
Julinho almoço !
E nós dois
entretidos na brinca para logo puxado por ele subirmos rindo-nos a escadaria do
quintal até á varanda e à cozinha, os olhos galgando as muralhas e
estendendo-se até à raia de Espanha, o vau da Guadiana, tendo sido esses mesmos
olhos inocentes que reencontrei agora, os mesmos cabelos finos a quem o pai de
vez em quando desfazia a compostura, mão na cabeça abanando-a, sacudindo-a e:
Menino
Julinho menino Julinho …
seguindo caminho com a mesma alheada
firmeza com que se aproximara de nós, vida de homem, vida de gente grande, não,
ali nunca houve coacção que me forçasse a qualquer submissão ao menino com quem
repartia brincadeiras e me olhava com os mesmos olhos que hoje lhe vejo na foto
que o trouxe até mim, meio século depois.
E enquanto eu
rejubilava por ter reencontrado este querido e velho amigo de quem direi que o
simples facto de existir me contenta e deixa feliz, soube que aqui ao lado Vinícius
Júnior, jogador contratado pelo Real Madrid ao Flamengo, de apenas 16 anos e
que terá custado cerca de 45 milhões de euros, poderá valer 200 milhões. A uns
endeusam, a outros expulsam, outros há sem eira nem beira, enquanto uns riem
outros choram, e outros caem em Manchester…
Ontem ali, a norte de Londres, confiando em amigos e jogando com a existência,
outro ser, outra vida, sem preocupações quanto ao facto de os amigos existirem
ou não, desiste de existir, desiste de si, arrastando consigo o caos e deixando
em agonia a utopia que nos alimenta as ilusões e o viver, acreditando que, numa
nuvem talvez maior, mas como a que fora vista na Cova de Iria o esperariam
setenta e duas virgens antes de acabar o dia…