domingo, 24 de dezembro de 2017

WEST STREET IT'S MORE SOUTH ...

             

A esta distância é difícil recordar qual deles, o João Ruas ou o Celestino David levantou numa das aulas o problema da dúvida existencialista,* a verdade é que começava sentindo-lhe a mordida e se há coisas que me incomodam, garanto-vos, são as dúvidas, já que são bem piores que as certezas. Basta observar o comportamento de um qualquer cabrão, ou cabrona, por mor da igualdade de géneros.   


Quanto mais olhava mais me apercebia do variadíssimo, enormíssimo e riquíssimo arsenal bélico que a URSS e Cuba colocavam à disponibilidade de uma das partes, dando-me o caso mais razões para a vontade de afastamento sentida e que a consciência me ditava. Todavia tinha duas espinhas atravessadas na garganta, um contrato a cumprir até ao dia aprazado, e uma indiscutível lealdade para com os meus homens, os quais cegamente em mim confiavam, cegamente seguiam e cegamente cumpriam o que quer que lhes ordenasse. Essa lealdade e solidariedade eram indiscutíveis, eram inegociáveis, eram o baluarte moral e a base ética da nossa relação, da nossa coexistência. Eram irrevogáveis.

Aquilo era uma guerra, não era “o da Joana” porém as alianças a sul do equador eram estabelecidas tão depressa quão depressa eram quebradas e vogando ao sabor dos interesses do momento, deixando-nos pensando se estaríamos efectivamente combatendo pelo lado dos justos, pelo lado dos pobres, necessitados e oprimidos, pelo lado certo. Se um dos lados** tinha tudo de mão beijada por parte dos amigos e de quem colocava toda a riqueza ao serviço do internacionalismo proletário, uma outra parte corrompia a pureza ideológica da facção contrária*** ao colocar à sua disposição toda a riqueza que o apartheid consentia e no qual apostava.

Extremavam-se os campos e extremavam-se as dúvidas, e ali, no meio do mato, não havia lugar nem tempo para as lentas, arrastadas e plurais aulas de filosofia, ali o existencialismo consistia em mantermo-nos vivos, e claro, natural e preferencialmente actuar sem deixar lastro que pesasse na consciência, tal implicava acreditarmos fazê-lo pelo lado bom e cumprir escrupulosamente com os ditames da “Convenção de Genebra” num cenário em que era necessário ter tomates para o fazer. Nós fazíamo-lo, cumpríamos, mas até uma guerra por mais horrorosa que seja tem momentos hilariantes, ou caricatos, não irei invocar Sartre, nem Vergílio Ferreira, irei no fragor da guerra que cumpríamos chamar à colação o baixinho barrigudo de Torres Vedras.
                               
Era fim de tarde, a hora mais inapropriada para uma emboscada, estava-se ainda longe do lusco-fusco ou do escurecer que o sol-posto proporciona, caminháramos desde manhã, o Calaári há muito ficara para trás e a coluna serpenteava por entre a vegetação a qual ia paulatinamente ficando mais densa. Todos ouvimos nitidamente o matraquear de metralhadoras, todos nos atirámos automaticamente ao chão procurando manter uma formação em meia lua, dispersados seríamos um alvo difícil de abater e a formação escolhida permitiria contra atacar envolvendo ou cercando o foco ofensivo inimigo e abafá-lo fosse ele qual fosse. Irritei-me por não ter sido capaz de identificar claramente a proveniência do ataque, quanto a mim demasiado longínqua, demasiado distante para ser eficaz, um ataque sofrido pelo destacamento duas semanas antes ainda fazia sentir os seus efeitos e os tímpanos, ofendidos e doídos incapacitavam-me de localizar a origem do atacante e a sua verdadeira grandeza ou proximidade. Confiei nos meus homens e, como eles, mantive-me colado ao chão e de atalaia.


Dez longos minutos de feroz silêncio depois o banto Pende fez-me sinal para que olhasse por cima do capim, qual não foi o meu espanto quando, a cerca de cem metros vi, avançando na nossa direcção um individuo de cor branca, baixinho, arvorando um grande pau trazendo hasteado no cimo, um pano, uma bandeira branca. Caminhava hirto, lenta e cuidadosamente, gesticulando e falando alto. Eu e Pende entreolhámo-nos surpreendidos e, ante a visão dum branco desarmado, armado com um estendal daqueles, fiz sinal para que ninguém abrisse fogo, havia que deixá-lo aproximar-se, dar-lhe oportunidade de dizer ao que vinha e de, em simultâneo “matar” a nossa assanhada curiosidade.


Fugira de Angola dias antes da independência, tinha feito e sido de tudo, agricultor, revendedor, distribuidor, transportador, fugira com a família para a África do Sul e de momento era batedor e intérprete do SAA (South African Army, exército sul-africano), sabia quem eu era, não me conhecia mas havia quem conhecesse bem e desejasse falar comigo. Ri-me do que ouvi mas não pude deixar de abraçar o meu compatriota, embora tal fosse tarefa difícil dado a enorme barriga que o fazia ridículo e risível. Baixo, barrigudo, dois olhinhos muito juntos e muito vivos, loquaz, bom observador, tanto que cuidei de não permitir que viesse a saber de quantos homens se compunha a minha coluna, pelo que gritei para eles bem alto:

- Atenção ninguém se mostra, ninguém muda de posição, ninguém fala, ninguém descura a atenção !

e assim foi durante as quase duas horas em que trocámos impressões. Seria correcto, não o hostilizaria, não desrespeitaria o seu sinal de paz, de tréguas, a sua bandeira branca, mas não lhe permitiria informar quem o mandara de quantos éramos, qual a nossa força, que armamento carregávamos. Amigos amigos negócios à parte, o calado é o melhor e se o lado contrário, o SAA se dispunha a tanta consideração pela minha pessoa tal se deveria única e exclusivamente ao facto de não me terem ainda conseguido “calar”, cousa com que muito teriam a ganhar, portanto nunca fiando. Desde que a Africa do Sul apoiava a UNITA, opositora do MPLA e aliada da Swapo, a nossa actividade na zona passara a processar-se com muito maior dificuldade e sobretudo maior perigo. Evitar a UNITA e a sua aliada de conveniência, a Swapo, passara a ser uma preocupação constante, alianças e amizades sofriam de uma volatilidade assinalável nunca nos permitindo saber de certeza certa a disposição hoje dos amigos de ontem e como cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, mais valia prevenir e evitar que remediar…

Fixei-lhe os olhinhos juntinhos, pequeninos, sobre uma cara de bolacha torrada, uma vez mais não sustive o riso ao ver-lhe o peito medalhado, isto é a proeminência da barriga aparar-lhe-ia todo o pingo babado pelo que as nódoas eram mais que muitas sobre a camisa de caqui do uniforme que não envergava, o chapéu era um velho chapéu do exército bóer mas os calções, a contradizer, testemunhavam nitidamente uma moda nascida em Lisboa há bem mais de uma dúzia de anos, as bota mal amanhadas e as meias curtas na perna despida não auguravam nada bom quanto às mordeduras das cobras, um elemento caricato na caricata situação criada, contudo levei-o a sério. Tersilian House, Ridge Road, West Street, n.157, Durban, não fora o que dissera ?


Que me esperassem pois lá apareceria um dia. Apertei-lhe a mão, garanti-lhe que voltaria em paz, pedi-lhe que voltasse p’lo mesmo caminho e que o percorresse sem olhar para trás, fiquei vendo-o ir pensando de mim para mim que nunca mais veria tal personagem mas estava enganado, dei de caras com ele no Mercado Municipal de Torres Vedras há umas semanas, conseguira regressar e trazer toda a família, uma história com diamantes disfarçados em estreitos e compridos furos nas tábuas dos caixotes que carregavam os seus haveres, era e é um agricultor, bem sucedido.

A vida tem cada uma …


* Profs. de filosofia do meu antigo 7º ano.
** MPLA
*** UNITA





sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

483 - " PASSAJAR-MI "


" PASSAJAR-MI "
   
Abro a caixinha da costura,

procurando o ovo centenário,

foi da bisavó, da avó da mãezinha, e inda dura,

andou de cestinho em cestinho, vivendo solitário,

olho os veios da madeira velha,

como voltas de um novelo, veios como rugas,

ofensa ao materialismo, centelha,

lume, tradição, soltando chispas, faúlhas.

  

Enfio o ovo p’la meia a passajar,

de dedal, a linha enfiada já pela agulha,

pico-me, retraio-me a praguejar,

o sangue surgindo lento e a pingar,

penso rápido, e mais rápido vou buscar um penso,

remendo-me com calma e o pinga-pinga estanco.

 

Pensando se poderia passajar a alma,

a alma, as almas deste mundo denso,

onde pontifica o civilizado branco

prenhe de dividas, à terra, à natureza,

sonhando rumar a Marte em caravela,

quando para passajar este lhe falta destreza,

fugindo, levando os eleitos, os outros deixando à luz da vela

ficando e comendo-se uns aos outros,


até ao último, e aos poucos.
   
Humberto Baião - Évora, 19-12-2017


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

482 - ** NEW CONCEPT EXPOSITION, NEW CONCEPT GALLERY, NEW CONCEPT INVITATION TO NEW CONCEPT COFFEE & SHOP


Um andará pelos quarenta, o outro pouco aquém disso, disputam a pujança dentro do grupo dos “Amigos Do Pidal” e pedalam, vinte, trinta, quarenta ou mais quilómetros cada sábado, cada domingo, em cada arrancada. De semana trabucam e trocam impressões, sentados na esplanada do New Concept Coffee & Shop esgrimem pedaleiras, calções, carretos, equipamentos, rodados, óculos de vidrado espelhado, pisos, mas também riscos, cores, desenhos, esquiços, pinturas, quadros e visões, sonhos.


Foi num destes momentos que os apanhei e disparei a Polaroid, fixei a imagem, agora há que levá-la à tina do preparado e revelá-la porque vocês ainda não o sabem mas sei-o eu já, a revelação mostrou-se surpreendente, uma verdadeira revelação aliás como deverá ser qualquer surpresa que se preze. Então não foi que após tantos anos vividos na mesma cidade, sem se conhecerem, as bicicletas os aproximaram ?


Talvez não deva dizer aproximaram, talvez deva dizer ligaram, já que entre eles se descobriram ambos adeptos das mesmas cores, das mesmas tendências, do mesmo gosto pelos lápis, pelo carvão, traço, risco, desenho, pintura, até se descobrirem ambos pintores, artistas da tela e do pincel, das bisnagas, dos cavaletes, tendo-se então olhado bem e descoberto a si mesmos iguais em muitas coisas, até na cor dos olhos e, de descoberta em descoberta, chegaram à conclusão que o pai de um deles assim assado mas também o pai do outro assado e assim, p’lo que apesar de demorada a coisa acabou por ser concluída, eram irmãos ! Digo meio irmãos !


Então não foi mesmo uma revelação surpreendente ? Até eu, a quem pouca coisa já surpreende fiquei admirado, espantado, pasmado com esta constância e exuberância dos genes, dos cromossomas, do ADN, claro que depois surgiu naturalmente a pergunta; por que não contar esta linda história ? Como ? De que modo ? Arranjando uma base, um pódio onde colocar os manos em exposição e com uma pequena legenda por baixo ? Vestidos de ciclistas ? Nus ? De pincel na mão ?


É inverno, está frio, e quem viria ver dois cabeludos mal encabelados em cuecas ? A história é bonita, comovente, surpreendente e, depois de lhes conhecer as obras sugeri que ao invés deles se mostrassem os seus quadros, e daí até sondarmos o Nuno Fernandes foi um passo, há que aproveitar o espaço, o espaço e o conceito do seu café. O sorriso rasgado que nos serviu de bandeja mal lhe esboçámos a ideia tirou-nos todas as dúvidas, e a Dora ?


A Dora adora estas coisas, cores, pintura, desenhos, adora tudo isso e pintar os olhos, estava montada a marosca.


Depois foi dar aos pedais, projectar a coisa, convidar mais criaturas, artistas locais, regionais, promover o artista local, pescámos o João Concha da Rusty Place * um consagrado para âncora, ficará exposto mal se entre no café, uma escultura num ponto central p’ra deslumbrar, p’ra surpreender e criar uma centralidade, uma atmosfera, é artista conhecido e batido nestas lides, bom tipo, terapeuta, pachorrento, bonacheirão e amigo de toda a gente, comedido quanto deve ser um artista.


Além dele o José da Fonseca, também ele já rodado e com quem expositoremos de braço dado, é um apoio sólido, como se diz agora, uma mais valia considerável e nada despicienda, talvez arregimentemos a Sandra Bravo, a Helena Sousa, e sabe Deus quem mais pois a coisa já começou a andar sozinha, já está imparável e não queremos excluir ninguém, antes incluir todos, quem sabe se aparecerá a Sara Caieiro com algumas pinturas ou barros, a Sandra está lá longe no Porto e poderá não participar, é pena, haverá uma próxima, haverá mais, este é o meu modo de meter as mãos nas tintas, nas cores, na argila, no ferro, a vida só é bem vivida se nos lambuzarmos dela nã é ?


Será giro, ver como eles vêem o mundo e no-lo mostram.












domingo, 17 de dezembro de 2017

481 - O OBSERVADOR QUANDO OBSERVADO .....


  Claro que gosto de encontrar e de me encontrar com os bons amigos, de confraternizar, de falar, largar umas larachas, beber uns copos, petiscar umas coisas, mordiscar outras. Quem diz amigos diz amigas, não faço discriminação de géneros, nem sequer ao Apolinário que é todo não me toques, e eu não lhe toco, desde que fiquemos por aí tudo bem, não perde o malmequer as pétalas nem eu fico menos macho por isso.

  Por isso ou por isto, ou por aquilo, de vez em quando lá vem à baila o estranho facto de eu gostar de ler no café, e realmente gosto, e muito, é no meio do bulício que encontro a paz e provavelmente a coisa terá muito a ver com o facto de há mais de quarenta anos o meu sítio predilecto ter sido o Café Portugal, uma colmeia, um enxame, um mundo, cosmopolita como nunca mais tivemos outro, uma tertúlia, aliás dezenas de tertúlias, uma por mesa e dentro de cujo burburinho, zum zum, zoada, fumo de tabaco e cheiro a café, banhado num estável e constante murmúrio me sentia como peixe na água, ou melhor num aquário.
      
  Ali conseguia o milagre da evasão, da descontracção, do relaxamento tibetano de que me falou anos mais tarde a Constança, toda ela prenhe das influências do yoga, do flower power e de dois livros que lera na altura e estiveram na berra, “Viagem ao Mundo da Droga” e poucos anos mais tarde “Os Filhos da Droga” duas obras de referência para gente passada, gente de quem diríamos hoje cobras e lagartos, gente para quem a loja dos Porfírios, ou dos Por-fi-ri-os na baixa pombalina era o supra sumo da modernidade.

  Não vejo o que possa haver de estranho no facto de ler no café, dantes estudava, já que o silêncio me perturba imenso e nem me permite concentrar-me, como se o organismo ficasse alerta, tenso, pronto a disparar como uma mola ao mais pequeno ruído e contudo esse mesmo ruido envolve-me, embala-me, consegue que o ignore e dele me isole numa bolha, relaxe, pois bastará que todo ele se suma repentinamente para que eu então levante os olhos curioso do calar dos pássaros, todos eles emudecidos ao mesmo tempo.
  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Existe portanto uma gigantesca diferença ou poderá existir, entre o que alguns de nós acham estranho e a opinião de muitos outros, os quais advogam parecer completamente contrário. É possível, e acontece, o modo de pensar, de ver, de observar, variar de pessoa para pessoa de acordo com a sua visão da coisas, do mundo, de acordo com os seus interesses, variando até de acordo com deformações profissionais cujos reflexos induzem a ver ou a olhar só, ou sobretudo, numa determinada perspectiva. O mesmo em relação a qualquer quadro numa exposição de pintura. Aliás a própria pintura não evoluiu por fases ao acaso, o naturalismo, impressionismo, o expressionismo, o surrealismo, o abstraccionismo, o cubismo, o construtivismo e tutti quanti mais não são ke diferentes formas de ver a realidade, e de a mostrar claro…

  Não esqueçamos espécimes como o meu amigo Morais, provocador, extrapolador, nem além destas tipologias o visionário, nem o sonhador. É aqui que torna a entrar o meu amigo Apolinário, por procurar ver e mostrar precisamente o que não está à vista, no que é o oposto da Constança. O meu amigo Apolinário escreve epitáfios, uma ocupação senão curiosa pelo menos caricata mas que leva muito a sério. Ele busca, escava nas biografias dos defuntos não para garimpar o que toda a gente sabe mas o que neles seja nobre, sendo essa pepita que nos dá a ver, nos mostra, uma faceta do morto até ali ignorada ou desconhecida, o lado bom dessa alma, quantas vezes causa de espanto e de estranheza.
                         Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Porém a Constança, fotógrafa amadora com algum jeitinho para a coisa, é mais prosaica na busca desse mesmo espanto ou estranheza com que nos possa cutucar a curiosidade, ela busca e mete em destaque, exacerba o que possa ficar escondido arrancando o banal à sua quieta banalidade. Ela engrandece, ou glorifica, destaca, põe em evidência o que de outro modo ficaria esquecido, ignorado, desprezado numa perspectiva da qual ficaríamos alheados.

 À sua maneira ambos me espantam, a ele convidá-lo-ei enquanto é tempo a que me escreva o obituário, ela que me fotografe em grande plano esta carinha laroca, em especial o sinalzinho catita, herança familiar, pois é sempre por ele, é sempre por aqui que os avanços da Benedita começam, mais madura e impaciente, e outra amante genuína da fotografia cuja insistência não trava enquanto não pousa a máquina e contrariado lhe mostro um outro sinal, a operar e remover em breve por tropeçar nele a fivela do cinto e me atormentar de dores quantas vezes nem sei já, só sei que mal sinto a sua mão junto ao umbigo lhe adivinho o costumeiro pedido:
                             Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

- Deixa tirar uma fotinha para o meu álbum da ciência, deixas fofinho ?

  E eu, impaciente, disparando e repetindo eternamente a mesma ladainha:

  - OK Benedita, depois tiras, agora manda lá vir as caracoletas na chapa quente e umas cervejas bem frescas…
   
  E enquanto chupava e mastigava as caracoletas numa tasca catita ali ao Largo de Alcântara, fui-lhe confessando serem com ela os meus melhores pensamentos, aliás fazia-me sentir borboletas no estômago, ao que ela não ficou de todo indiferente tendo retrucado:
  
 - Mas afinal quais são esses pensamentos se é que os podes dizer pois nunca chegaste a dizer-me o que pensas, ou sequer quando me pensas.

  Eu quedei-me pensando, depois de muito pensar, que o melhor seria calar-me pois se começo posso cair no exagero, e mal por mal antes o desespero, mas ela, matreira, adivinhando-me o cogito;

  - Deixa-te de tretas já me conheces.

  Eu, a medo, baixinho; - Quando te sonho até te cheiro.

  - E a que cheiro eu dizes-mi ?
  
 A flores de rosa, a maçãs verdes, jasmim, e já me tens cheirado a mel, cheiros que adoro e aos quais associo sabores, a flores de rosa se sonho beijar-te o peito, a maçãs verdes se atrevido ajoelho abraçando-te p’los joelhos, lambendo-te as coxas, encostando a testa ao teu ventre quente, a jasmim se tu sim, dizes que sim e te metes a jeito, a mel porque só o mel chama as abelhas e é o principio de tudo…
   
          - És tão intenso no que dizes. Quase o sinto ao dizeres-me isso, és um homem sábio Leonardo.

         Se não houver beleza no que somos, no que fazemos e dizemos, seremos bichos, quase te sinto agarrando-me com força os cabelos quando te sonho
  
- E eu faria isso mesmo fonix.
   
E eu adoraria fazê-lo, e que o fizesses, seria por aí que adoraria começar-te, pelo cheiro, p'lo sabor acre de maçãs verdes, por esse mel da natureza, saborear-te as coxas primeiro e dar tempo a que uma flor abrisse na floreira do beiral... E gostarias ? Será que desabrocharias como uma flor matinal ?
   
           - Qual a dúvida?
   
Não é dúvida, temos que dar tempo ao desejo, torná-lo urgente, imparável enquanto, paciente, espero que prometas e cumpras,
  
 - Não sou de promessas mas se as faço cumpro.

 Abriria então docemente as pétalas para as beijar se e quando as tuas mãos, carregando o vaso, exigissem aflitas que o fizesse pois amo ser um querido e de me saber querido ao saborear-te, abrir a flor da manhã com dois dedos e beijá-la, lambê-la, sugá-la porque, como canta Ney Mato Grosso,

No fundo do tacho um gosto de fel

Mas um dia as abeias se vortam todinha

No milagre da lida, ai, o amor vira mel

E no milagre da lida, ai, o amor vira mel  *


 - És muito bom com as palavras e não precisas de Ney Mato Grosso para te ajudar. Eu não consigo competir com isso.

  
 Mas amo a música e gosto de mel como as abelhas. E não quereria uma competição, querer-te-ia a ti, beijar a tua pele branca de mármore, o mel e tu e eu…
  
 - Tu deixas - me sem palavras.
  
 - Tu inspiras-mas Benedita.

 - Ai Leonardo ai ai, tu lixas -me a cabeça.

  Talvez agora entendas por que me "furto" a ti, vida é beleza, ensinou-me a Rosa Silva.

  - Inteligente isso sim.
   
E a beleza, se não se frui, respeita-se, não se conspurca, claro que eu podia sonhar com a beleza, e até excitar-me com ela mas quem senão eu tem obrigação de estimar o objecto do meu amor ? Respect, és um rochedo.
   
- Rochedo ?

- Sim, rochedo, não percebes nada de filosofia pá, és um rochedo.
                                    Foto: Aldeia da Terra - Évora
Tu és como um penedo, falas pouco, nunca dizes nada, pouco ou nada dizes, mesmo assim sonhei contigo, eras uma fada e eu, acabrunhado, tive porém ainda tacto para, envergonhado, te soprar os cabelos da testa quadrada e nela depositar um beijo matreiro, depois nos olhos, roçando na tua face a minha face, os lábios nos teus lábios e, ruborescendo, qual aventureiro, tocar c’a ponta da língua a tua língua o que, despertando aberto o apetite, viu despertar também um seio a descoberto, oferecido coroado por doce auréola, então, toldada a minha mente, endoidecida p’la névoa, desatou-se-me a língua enlouquecida que, passeando-se nele, tornada anónima pelo denso nevoeiro dessa praia, ousou poisar com doçura no mamilo, sugado com filial ternura sim mas, abruptamente arrependida, recolheu ao palato atrapalhada quando, gizando-me na mente uma guinada, levou-me a genuflexão acalorada, pelo que me persignei e, sinceramente acanhado, aflito e embaraçado, mergulhei em ti desvairado, ébrio do teu olor, ávido do teu sabor, tendo sido então que, receoso do Senhor, arrependido acordei desse sonho lindo que tudo daria para não dar por terminado chamando-te minha.


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

480 - ROSA SILVA, ROSA SILVA QUE SAUDADES



O catraio fez-me lembrar de mim mesmo ao avançar por ali saltitando p’ra não pisar os riscos entre mosaicos. Eu devia ter onze, doze anos quando fazia as arcadas do princípio ao fim sem pisar as juntas entre as lajes de granito, coisa de rapaz.

Não me lembro quem vinha atrás dele, se alguma mãe galinha se outra qualquer mãezinha, focado que fiquei no que trazia entre mãozinhas. Talvez para guardar os rebuçados do petiz, ou bolinhos pequeninos, pétalas de rosa ressequidas com cheirinho ou pedrinhas redondinhas, calhaus de várias cores ou berlindes coloridos ! Vá-se lá saber agora p’ra que quereria ela aquela caixa de vidro, um quadrado bem quadrado, vinte de lado, vinte, como ela Rosa Silva, devendo andar por essa idade pois muitos mais não teria e me irritou ao deixar tudo aleatoriamente pendurado, quando é sabido que isto anda tudo ligado, e me encolerizou e fez chorar não teria eu mais que dezasseis, dezassete anos.

Chorei eu e a turma inteira, até uns dias depois em revolucionária reviravolta, a fazermos chorar a ela, obrigando-a a cingir-se ao universo, a ver melhor onde pendurava as coisas, a ligar tudo quanto andaria desligado, pois aquilo nem eram aulas nem eram fados, era a nossa triste sina. Fez-lhe bem, olhou-se ao espelho, meditou no nosso conselho, adoptou mesmo um escaravelho e, quando voltou ao grupelho trazendo Mendel na bagagem, provetas de cromossomas e uma alcofa de ervilhas, todos sorrimos felizes por nos sentirmos bem firmes, ela e nós c’os pés no chão, com confiança p’ra olharmos nos olhos de cada um espreitando nas íris coloridas os segredos bem guardados por doses de eumelanina.


Não sabeis quem é Rosa Silva ? Quem é ou quem foi a menina, talvez seja viva ainda, tão linda era e tão querida de todos se tornou, tão querida que nunca mais frustrações, nunca mais irritações, todos ficando sabendo da divisão os segredos, das células o enredo, de enzimas carregando chaves, de mitocôndrias e osmose, p’lo que a felicidade sentida foi finalmente de tal ordem que chegados ao H2O já resolvíamos problemas somando e subtraindo reacções, e malabarismos com moléculas cujas terminações desenhávamos com proficiência e esmero tornando-se mera brincadeira de crianças.


Por isso esqueci o catraio saltitando p’ra não pisar os riscos, esqueci a mãe galinha ou quem a seguia, a mulher do Evaristo, e me foquei na caixa de 20x20 e no desafio da Rosa Silva ao desencantar nem sei de onde vinte e tal caixas daquelas num tempo em que Lojas Dos Trezentos nem vê-las e lojas dos chineses ainda menos. Distribuiu-as por nós todos, uma a cada, cuidado pois são mui frágeis, iremos fazer uma experiência da china que posteriormente reportarão em relatório, p’ra nota naturalmente. Comigo foi um milagre, até um feijoeiro lá cresceu e só aos céus não subiu por a caixa o ter abafado. Como todos deveis saber os feijoeiros só param de crescer nas nuvens, e se não crescem cuidado, ou quem os semeia envelheceu, envileceu, ou passou a adulto e esqueceu as maravilhas prometidas p’la Rosa Silva e cumpridas dentro daqueles cubos mágicos.


Só não viu quem não quis ver, cada caixa colocada c’a abertura p’ra baixo no jardim ou quintal de cada um, ou onde cada um pôde e quis, e depois, não imaginar mas ver, com estes olhos que a hereditariedade pintou, c’os olhos que os genes coloriram, os dominantes ou os recessivos, e durante um mês inteirinho c‘a lupa que alguém comprou, observei e registei num caderninho alterações, ocorrências, transformações tidas e havidas nessa caixinha de surpresas que tanto nos sensibilizou para os mistérios da flora e fauna, do ambiente e seus precários, periclitantes ou sensíveis equilíbrios, tudo apontado com amor num caderninho verdinho, porque aquela professora de ciências que ensinámos a professar o pedia e exigia e, linda como era quem iria ousar desobedecer ou não dar-lhe motivos para uma boa nota ter ? Quem ?

Eu fui da minhoca ao grilo, do cogumelo a outros fungos, vi ervas brotar, raízes avançar, escaravelhos passar, besouros esvoaçar, centopeias centopar, lagartixas lagartar, sem contar com as aranhas, aranhóis e aranhiços que quebraram em mim o enguiço. Olhando aquela caixa e seu microscópico mundo passei a ver de repente a ténue teia ambiental em que todos nos movemos e quanto estamos minando o frágil tecido que a cerze. A civilização está perdida, ou muda de rumo ou será engolida por si mesma, pelo monstro que criou. Tudo isto nos ensinou a simpática e linda Rosa Silva somente c'uma caixa que emprestou. Nem disse nada, nem falou, limitou-se a ouvir cada um de nós lendo o relatório pessoal e deixando a turma intervir, compreender, explicar, agir e interagir, fez-nos investigadores, críticos de nós próprios, exigentes, responsáveis, competentes. Então já não as coisas no ar como de início, em que tudo nos parecia atado com arames e ninguém tinha noção do que quer que ela dissesse ou sequer onde estivéssemos ou se situava a acção.

Após tuti bien entendido houve vagar p’ra uma incursão não prevista ao universo quântico, aos átomos, à fissão, à fusão, e quanto mais se cingia ao programa mais exigíamos mostrasse e desvendasse o mundo e o universo, a frente e o verso, por isso eu pecador me confesso sucumbi à sapiência e beleza da Rosa Silva, eu e a turma toda. Foi no ano em que descobrimos não terem as mulheres só mamas, pernas e um palminho de cara, têm também sabedoria, inteligência, são interessantes uma hora, duas horas, mas também por uma vida. Tudo isto me ensinou aquela estranha e jovem mulher que me revelou a maravilha do deslumbramento, me ensinou a ver as coisas, a descobrir nelas outras coisas, ensinou-me dependência, independência, interdependência, fotossíntese, simbiose e parasitismo. Ah ! Surpresa ! E osmose, e o mal e principio de todo o bem que acabámos por encontrar. Não há melhor que encarreirar, achar o caminho, perceber quão o percurso, o ambiente, a vida e a democracia são frágeis equilíbrios dificílimos de manter e a cuidar, com amor, pois também esse nos ensinou, amor às coisas, à natureza, à beleza, à estética, à ética, como não acabar amando-a a ela ?

Torres Vedras diziam os concursos, Torres Vedras ou Bombarral, não sei precisar já, sei que chorámos, sei não haver nada mais triste e lamentável que uma turma inteira em lágrimas, disfarçando os olhos envergonhados por esse sentimento de perda que inda lembro com ternura.

Cresci, percorrer as arcadas sem pisar os riscos é agora dificílimo senão impossível por ter a passada maior, mas jamais esqueci a brincadeira, como não esqueci a frágil caixa 20x20, não era maior que isso, e nem estou certo de ter sido Torres Vedras ou Torres Novas, ou Bombarral ou Rio Maior, onde num ou noutro ano tudo e todos vomitavam ameaças, lançando a mão a veras mocas, estaria ela lá ? Ter-lhe-ão partido as caixas todas ?

Eu guardei uma, no coração.