domingo, 24 de dezembro de 2017

WEST STREET IT'S MORE SOUTH ...

             

A esta distância é difícil recordar qual deles, o João Ruas ou o Celestino David levantou numa das aulas o problema da dúvida existencialista,* a verdade é que começava sentindo-lhe a mordida e se há coisas que me incomodam, garanto-vos, são as dúvidas, já que são bem piores que as certezas. Basta observar o comportamento de um qualquer cabrão, ou cabrona, por mor da igualdade de géneros.   


Quanto mais olhava mais me apercebia do variadíssimo, enormíssimo e riquíssimo arsenal bélico que a URSS e Cuba colocavam à disponibilidade de uma das partes, dando-me o caso mais razões para a vontade de afastamento sentida e que a consciência me ditava. Todavia tinha duas espinhas atravessadas na garganta, um contrato a cumprir até ao dia aprazado, e uma indiscutível lealdade para com os meus homens, os quais cegamente em mim confiavam, cegamente seguiam e cegamente cumpriam o que quer que lhes ordenasse. Essa lealdade e solidariedade eram indiscutíveis, eram inegociáveis, eram o baluarte moral e a base ética da nossa relação, da nossa coexistência. Eram irrevogáveis.

Aquilo era uma guerra, não era “o da Joana” porém as alianças a sul do equador eram estabelecidas tão depressa quão depressa eram quebradas e vogando ao sabor dos interesses do momento, deixando-nos pensando se estaríamos efectivamente combatendo pelo lado dos justos, pelo lado dos pobres, necessitados e oprimidos, pelo lado certo. Se um dos lados** tinha tudo de mão beijada por parte dos amigos e de quem colocava toda a riqueza ao serviço do internacionalismo proletário, uma outra parte corrompia a pureza ideológica da facção contrária*** ao colocar à sua disposição toda a riqueza que o apartheid consentia e no qual apostava.

Extremavam-se os campos e extremavam-se as dúvidas, e ali, no meio do mato, não havia lugar nem tempo para as lentas, arrastadas e plurais aulas de filosofia, ali o existencialismo consistia em mantermo-nos vivos, e claro, natural e preferencialmente actuar sem deixar lastro que pesasse na consciência, tal implicava acreditarmos fazê-lo pelo lado bom e cumprir escrupulosamente com os ditames da “Convenção de Genebra” num cenário em que era necessário ter tomates para o fazer. Nós fazíamo-lo, cumpríamos, mas até uma guerra por mais horrorosa que seja tem momentos hilariantes, ou caricatos, não irei invocar Sartre, nem Vergílio Ferreira, irei no fragor da guerra que cumpríamos chamar à colação o baixinho barrigudo de Torres Vedras.
                               
Era fim de tarde, a hora mais inapropriada para uma emboscada, estava-se ainda longe do lusco-fusco ou do escurecer que o sol-posto proporciona, caminháramos desde manhã, o Calaári há muito ficara para trás e a coluna serpenteava por entre a vegetação a qual ia paulatinamente ficando mais densa. Todos ouvimos nitidamente o matraquear de metralhadoras, todos nos atirámos automaticamente ao chão procurando manter uma formação em meia lua, dispersados seríamos um alvo difícil de abater e a formação escolhida permitiria contra atacar envolvendo ou cercando o foco ofensivo inimigo e abafá-lo fosse ele qual fosse. Irritei-me por não ter sido capaz de identificar claramente a proveniência do ataque, quanto a mim demasiado longínqua, demasiado distante para ser eficaz, um ataque sofrido pelo destacamento duas semanas antes ainda fazia sentir os seus efeitos e os tímpanos, ofendidos e doídos incapacitavam-me de localizar a origem do atacante e a sua verdadeira grandeza ou proximidade. Confiei nos meus homens e, como eles, mantive-me colado ao chão e de atalaia.


Dez longos minutos de feroz silêncio depois o banto Pende fez-me sinal para que olhasse por cima do capim, qual não foi o meu espanto quando, a cerca de cem metros vi, avançando na nossa direcção um individuo de cor branca, baixinho, arvorando um grande pau trazendo hasteado no cimo, um pano, uma bandeira branca. Caminhava hirto, lenta e cuidadosamente, gesticulando e falando alto. Eu e Pende entreolhámo-nos surpreendidos e, ante a visão dum branco desarmado, armado com um estendal daqueles, fiz sinal para que ninguém abrisse fogo, havia que deixá-lo aproximar-se, dar-lhe oportunidade de dizer ao que vinha e de, em simultâneo “matar” a nossa assanhada curiosidade.


Fugira de Angola dias antes da independência, tinha feito e sido de tudo, agricultor, revendedor, distribuidor, transportador, fugira com a família para a África do Sul e de momento era batedor e intérprete do SAA (South African Army, exército sul-africano), sabia quem eu era, não me conhecia mas havia quem conhecesse bem e desejasse falar comigo. Ri-me do que ouvi mas não pude deixar de abraçar o meu compatriota, embora tal fosse tarefa difícil dado a enorme barriga que o fazia ridículo e risível. Baixo, barrigudo, dois olhinhos muito juntos e muito vivos, loquaz, bom observador, tanto que cuidei de não permitir que viesse a saber de quantos homens se compunha a minha coluna, pelo que gritei para eles bem alto:

- Atenção ninguém se mostra, ninguém muda de posição, ninguém fala, ninguém descura a atenção !

e assim foi durante as quase duas horas em que trocámos impressões. Seria correcto, não o hostilizaria, não desrespeitaria o seu sinal de paz, de tréguas, a sua bandeira branca, mas não lhe permitiria informar quem o mandara de quantos éramos, qual a nossa força, que armamento carregávamos. Amigos amigos negócios à parte, o calado é o melhor e se o lado contrário, o SAA se dispunha a tanta consideração pela minha pessoa tal se deveria única e exclusivamente ao facto de não me terem ainda conseguido “calar”, cousa com que muito teriam a ganhar, portanto nunca fiando. Desde que a Africa do Sul apoiava a UNITA, opositora do MPLA e aliada da Swapo, a nossa actividade na zona passara a processar-se com muito maior dificuldade e sobretudo maior perigo. Evitar a UNITA e a sua aliada de conveniência, a Swapo, passara a ser uma preocupação constante, alianças e amizades sofriam de uma volatilidade assinalável nunca nos permitindo saber de certeza certa a disposição hoje dos amigos de ontem e como cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, mais valia prevenir e evitar que remediar…

Fixei-lhe os olhinhos juntinhos, pequeninos, sobre uma cara de bolacha torrada, uma vez mais não sustive o riso ao ver-lhe o peito medalhado, isto é a proeminência da barriga aparar-lhe-ia todo o pingo babado pelo que as nódoas eram mais que muitas sobre a camisa de caqui do uniforme que não envergava, o chapéu era um velho chapéu do exército bóer mas os calções, a contradizer, testemunhavam nitidamente uma moda nascida em Lisboa há bem mais de uma dúzia de anos, as bota mal amanhadas e as meias curtas na perna despida não auguravam nada bom quanto às mordeduras das cobras, um elemento caricato na caricata situação criada, contudo levei-o a sério. Tersilian House, Ridge Road, West Street, n.157, Durban, não fora o que dissera ?


Que me esperassem pois lá apareceria um dia. Apertei-lhe a mão, garanti-lhe que voltaria em paz, pedi-lhe que voltasse p’lo mesmo caminho e que o percorresse sem olhar para trás, fiquei vendo-o ir pensando de mim para mim que nunca mais veria tal personagem mas estava enganado, dei de caras com ele no Mercado Municipal de Torres Vedras há umas semanas, conseguira regressar e trazer toda a família, uma história com diamantes disfarçados em estreitos e compridos furos nas tábuas dos caixotes que carregavam os seus haveres, era e é um agricultor, bem sucedido.

A vida tem cada uma …


* Profs. de filosofia do meu antigo 7º ano.
** MPLA
*** UNITA