" PASSAJAR-MI "
Abro a caixinha da costura,
procurando o ovo centenário,
foi da bisavó, da avó da mãezinha, e inda dura,
andou de cestinho em cestinho, vivendo solitário,
olho os veios da madeira velha,
como voltas de um novelo, veios como rugas,
ofensa ao materialismo, centelha,
lume, tradição, soltando chispas, faúlhas.
Enfio o ovo p’la meia a passajar,
de dedal, a linha enfiada já pela agulha,
pico-me, retraio-me a praguejar,
o sangue surgindo lento e a pingar,
penso rápido, e mais rápido vou buscar um penso,
remendo-me com calma e o pinga-pinga estanco.
Pensando se poderia passajar a alma,
a alma, as almas deste mundo denso,
onde pontifica o civilizado branco
prenhe de dividas, à terra, à natureza,
sonhando rumar a Marte em caravela,
quando para passajar este lhe falta destreza,
fugindo, levando os eleitos, os outros deixando à luz da vela
ficando e comendo-se uns aos outros,
até ao último, e aos poucos.
Humberto Baião - Évora, 19-12-2017