domingo, 24 de junho de 2018

510 - OS REFUGIADOS, ESSES CONTRAPESOS …

Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Tudo isto me faz lembrar Angola em 75, o Rossio em 76, o cais de Alcântara em 77. Mas estávamos em 2003 e ele devia ter aparecido por volta do meio-dia, o sol já zurzia a pique fazendo daquele lugar e avenidas em redor um verdadeiro braseiro como nem no Alentejo eu alguma vez sofrera. 

        Vinha afobado disse um brasileiro, vinha afogueado, na verdade parecia assustado e talvez estivesse desesperado. Galgou de uma só vez os três degraus frente à entradado Hotel Palestina, guturalmente terá pedido escusa, licença, desculpa ou perdão, e nem só perdeu a embalagem que trazia como afastou todos com os braços, qual nadador olímpico de mariposa, deixando ondulando um mar de protestos e murmúrios em cuja ondulação entendi vogarem sede e fome.

 Desapareceu com a mesma velocidade com que surgira arrastando atrás de si um pequeno grupo de gente preocupada, entre as quais eu, vindo a deparar com ele nas casas de banho, torso torcido, boca sedenta aparando o fio de água duma torneira como se dela pingasse a salvação. Dessedentado foi envolvido pela turba, consolando-o e ouvindo-o com atenção, tendo-o conduzido às cozinhas para alguém lhe mitigar a fome e o desespero.

Foi este o primeiro a ser visto e no qual reparei, com maior ou menor aparato haveria, nos dias seguintes, de me aperceber de outras idênticas presenças e desesperos. Este primeiro caso, calças de camuflado duras de sujas, o cinto nitidamente no último furo, uma camisola de alças anteriormente branca e agora castanha de suja, uma barba de muitos dias por escanhoar, olhos saltando das órbitas, era claramente a imagem da desesperança.

Foto roubada da net

Fazia parte do exército de 800 mil homens de Saddam Hussein e que o comando da coligação desmobilizara após vencida a guerra contra o Iraque em 2003. Repentinamente quase um milhão de homens vivendo do pré para se sustentarem e às suas famílias viram-se despojados desse pequeno rendimento e sem esperanças de verem o futuro alterado a médio ou a longo prazo, isto é encontrarem outro modo honrado de subsistirem, eles e os seus.

Centro do mundo por aqueles dias o hall, o bar, o restaurante, as escadarias exteriores de acesso e o jardim rodeando o Hotel Palestina andavam nas bocas do mundo abrindo noticiários. Toda aquela área era ponto de encontro dos habitantes da cidade e frequentado por gente de mais cem ou duzentos países diferentes deixando no ar uma babel de línguas, aquele soldado desmobilizado caíra aqui, ou ali, lá, como um insecto numa teia de aranha, por puro acaso, desprevenido, cegado pela fome e pela sede. Mais calmo, alimentado e apoiado pela turba de curiosos que o tomara a seu cuidado seria a vez dele a alimentar a ela, matando-lhe a curiosidade, coisa que a turba agradeceu com atenção, atenção que retribuiu ao atirar para o lago de cisnes em que a cena se desenrolara o que ia sabendo, provocando uma miríade de círculos concêntricos que se espalhavam até atingirem as margens da mole babélica habitando o Palestina.

Foto roubada da net

Assim chegaram até mim os ressaltos desse tsunami, fiapos da história desse homem cujo desespero até hoje não esqueci. Ainda eu não regressara a este nosso torrãozinho desorganizado à beira-mar plantado e já se esboçava em Bagdad e noutras cidades iraquianas a organização duma milícia pronta a combater o ocupante, um parêntesis aqui para vos esclarecer não terem os soldados da coligação sido vistos como libertadores, ao contrário do que nos fizeram crer e fora propalado por toda a nossa comunicação social, a mesma que sempre escondeu as imagens das centenas de cadáveres que essa libertação largava pelo caminho, caminho a que pomposamente baptizaram de “Operação Choque e Terror”, portanto sem rodeios, sem pejo, sem qualquer tipo de contenção ou pudor a “sua libertação” assumia, sem o assumir, o terror avassalador que os conduzira ao caminho da vitória.

Ocupante, usurpador, invasor, eram estes os pomposos e simpáticos epítetos com que os membros da coligação eram apodados e em redor dos quais se organizaram de modo quase mágico e espontâneo os iraquianos. Qual lamparina de Aladino, todos os miseráveis desmobilizados pela coligação vencedora ora condenados a vidas de pedintes, de pobreza, de gente sem esperança ou desesperançada se encontraram repentinamente unidos em redor dum móbil de coesão. Foi fácil para mim adivinhar que dessa desesperança nasceria contudo uma força que alimentaria uma nova esperança e, um pouco por toda a parte, por todas as cidades do Iraque vieram efectivamente a surgir focos de resistência, logo apelidados pelos “do nosso lado” de insurgentes, focos que progressiva e paulatinamente se transformaram em exércitos que viriam a gizar as raízes do ISIS e do DAESH e de tantos outros que há pouco tempo pululavam pelas arábias deixando um rasto de sangue, morte e destruição.

Foto roubada da net

Do confronto entre libertadores, ou invasores, ocupantes, usurpadores e a arraia-miúda ou a “canalha” dos insurgentes surgiria a guerra ou as guerras que têm assolado a região, com o consequente rasto de destruição, mortos e refugiados. Os refugiados que hoje hesitamos receber, ou recebemos contrariados, são o refugo dessa destruição que causámos, causámos nós, ocidentais, europeus e americanos bem instalados, bem empregados e por comodismo esquecidos que demos cabo da vida de países e cidades, demos cabo da vida dessa gente que atravessando com risco o Mediterrâneo busca encontrar em nós a esperança que nós mesmos lhes roubámos.

Os irresponsáveis incompetentes de então são os responsáveis que ninguém se atreve hoje a responsabilizar. Tivesse a coligação mantido sob controle o exército que desmobilizou e toda esta desgraça teria sido evitada,* mas quem pensa em consequências ? Em reflexos ? Não teria sido difícil, mais complicado é adivinhar a movimentação de peças numa partida de Xadrez, de Damas, de Alquerque ou de Qirkat

 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Refugiados oriundos do Mediterrâneo. Foto da net.

* Quatro ou cinco anos depois a coligação tentou repor normalidade na situação que criara, mas era demasiado tarde, a asneira estava feita, era já impossível travá-la. 






sábado, 23 de junho de 2018

509 - YOGA, PILATES E REIKI NA VARANDA ...

Foto roubada da net

A minha Mimi é de hábitos fixos, taras e manias, pelo que só parou com a brincadeira quando me levantei, como se tivesse obrigação de acordar com o acordar dela ou tendo acordado ela eu estivesse proibido de continuar dormindo. Às sete da matina em ponto é forçoso, acordada ela, que eu largue também a preguiça, mas as preocupações dela são outras, já a conheço como a palma da minha mão, quer dizer, de ginjeira.

Também tenho as minhas rotinas, uma delas enfiar os chinelos, enfiar-me na casa de banho, enfiar a escova no cabelo duas, três ou quatro vezes, enfiar o excesso da bexiga no buraco da sanita sem salpicar nem entornar, para o que me sento. Tudo é preferível a ouvir gritar, ralhar, mijar os sapatos novos ou ter que ajoelhar-me e lavar o chão da dita casa de banho. Seguidamente corro a casa toda levantando todos os estores e abrindo a última janela afim de entrar com o ar fresco da manhã a malvasia das rosas e das malvas do jardim, do quintal frente à casa ou melhor dos canteiros no jardim que ladeia a casa. E foi quando abri as ventas e inspirei, como se em contemplação e fruição desse nirvana matinal que dei com os olhos nela, lá estava ela como vai sendo habitual, na varanda do prédio fronteiro ao meu, estendida na toalha apanhando banhos de sol ou praticando yoga, ou pilates, reiki ou qualquer dessas merdas orientais agora muito em voga, as quais nunca me preocupei muito em entender, embora assuma que me prendem, que me chamam a atenção, que cativam, pelo que de imediato puxei a cortina, não fosse a nova vizinha julgar estar eu armado em mirone ou feito voyeur, espreitando-a, eu que coraria de vergonha se ela o pensasse, quanto mais se me visse.

Pelo sim pelo não repuxei as duas partes do cortinado, que se não fechou totalmente deixando uma nesga por onde se infiltravam os raios de sol da manhã e me obrigaram a ir à gaveta buscar os óculos espelhados ou jamais destrinçaria se ela estava fumando ou pintando as unhas, o que também se vai tornando habitual. Contudo tive o cuidado de não me encostar ao cortinado, recordo ter sido apanhado desprevenido, aquilo foi o acaso, eu a começar a lida diária da casa e ela ali em preparos, já se vai tornando vulgar, ela aflorar à varanda para fumar ou pintar as unhas ou tratá-las, umas vezes dos pés outras das mãos, ou ler, ou simplesmente telefonar, ali deve ter mais rede, a varanda tem uma grade e uma rede onde ela de vez em quando estende os fatos de treino, ou de banho ou uma colecção de roupa interior, a malha da rede é pequena, miúda, ideal para aquele fim, mais a mais sem estendedores onde enxugaria ela aquelas miudezas ?

Não estou sempre em casa mas dada a situação é impossível que não veja a varanda dela, ou a ela, comedido como sou evito olhar, ela havia de me julgar um parvónio, gosto de fazer jogo limpo e boa vizinhança, preocupo-me com os vizinhos, invariavelmente entro, fecho a cancela do quintal, curvo-me um nadinha para abrir a caixa do correio e é aqui, confesso, que inadvertida e involuntáriamente o canto do olho me foge para a varanda em frente, para o estendal, o cadeirão, a mesinha redonda, hoje não deve cá estar, nem vejo o carro estacionado por aqui, parece novinho, tem já meia dúzia de anos mas parece comprado ontem, de vez em quando lava-o com um balde de água e uma luva felpuda, frente ao vinte e nove que é onde ela mora e nem uma gota no chão, nem uma cagadela de pássaro na pintura, por vezes tenho vontade de brincando a desafiar a lavar o meu de seguida, a brincar claro não vá ela julgar-me um alarve, ou pensar que a estou observando, mirando, não havia de gostar, eu não gostaria, por isso evito qualquer aleivosia, é melhor assim, com esta história do assédio, do me too, dos piropos etc é preciso cuidado, quem sabe se foi por isso que a vizinha da rua de baixo, a professora de ginástica, a Vivi, deixou de passar aqui.

         Residia a meu lado um bancário, um desatino o homem, até binóculos tinha, trouxera-os do ultramar em 75 quando fora desmobilizado dizia ele, aldrabice pura, comprei há dias uns iguaizinhos na loja do chinês, belíssimos, anti-reflexo e tudo, não por acaso esta nova vizinha tem mais parecenças com a Vivi que possamos imaginar, a predilecção pelas mesmas cores, p’las mesmas marcas e números de sutiãs, p’la roupa interior igualmente de reduzíssimas dimensões, p’las rendinhas, a mesma estatura, já para não falar na pancada pelos ténis de marca ou pelos penteados, enfim, a gente sem querer nota e a Vivi fazia-se bem notada, era impossível não dar por ela, quem sabe quanto essa sua faceta teve a ver com o divórcio, a verdade é que depois disso nunca mais foi vista aqui no bairro, no Público duma destas manhãs vinha relatado um caso em Edimburgo, em que passados mais de dez anos as ossadas duma divorciada foram encontradas casualmente enterradas no quintal quando os bombeiros procediam ao desentupimento de uma fossa asséptica, mas que eu saiba a Vivi não tinha quintal e o passeio frente à casa onde vivia era empedrado, nem por aqui foram encontradas quaisquer ossadas.

Esta nova vizinha não tem que se preocupar com isso, ou é divorciada ou mãe solteira, tem dois miúdos mas hoje com essas coisas do género e dos casamentos transsexuais e bissexuais ou homogéneros quem liga a isso, ninguém

E agora desculpem-me, depois acabo este apontamento, a minha Mimi já me arranhou, tem fome e quer a gamela cheia de granulado, entretanto ela chegou com uma caneca numa mão e um livro na outra e assim à vista desarmada não consigo ver o que está lendo, é que não gosto nada de confusões e detesto induzir alguém em erro percebem ? 

Foto roubada da net

domingo, 17 de junho de 2018

508 - LEMBRO-O TANTO ... by Maria Luísa Baião

                
                   
 A vida é um sonho lindo, se vivida. Assim me transmitia meu avô a sabedoria que muitos anos de sofrimento e provavelmente frustrações lhe haviam inculcado no espírito. Recordo-o com saudade, mas com o mesmo amor que então lhe tinha. Contava-me lendas cujo começo era para mim poesia, poesia que invariavelmente me fazia crer em sentimentos e valores em que ainda hoje acredito, como a comoção e a verdade.

Por isso as horas passadas com ele eram magia. Aprendi a ver a Lua rindo para mim à noite, e no seu disco translúcido um velho carregando um feixe de lenha, o meu avô ou outro velho forte como ele. Nas noites mais frescas desvendava-me mistérios. Sentando-me no colo contagiava-me com uma calma impregnada da candura que só os velhos possuem e dele irradiava. Por isso sou forte como ele, pois assim me ensinou.

Os passeios pelo jardim do Paraíso, o ouvi-lo quedada e muda sonhando o mundo como mo descrevia. Ainda volto quando calha a esse jardim impregnado de aromas e ainda creio na candura dos velhos. Aprendi a olhar as estrelas estendida numa esteira. Leio-as, decifro-as nos seus enigmas.

Contava-me dos velhos do Restelo, que os havia em toda a parte e punha-me de sobreaviso. Sim, inda hoje eles são vistos e apesar de cavernosa há quem ouça a sua voz soando, nenhuma outra voz soa como essa.

Com ele aprendi a sentir a brisa do suão, o este e o oeste, o sul e o norte. Quantas vezes dei com ele sentado à mesa na sala, mergulhado na escuridão e num passado tão cheio quanto o vazio do presente. Olhos fixos no velho espelho de parede. Que lhe prenderia tanto a atenção ? Que veria ele ? Depois, dando por mim acendia a luz, disfarçava e murmurava-me que uma vez acabada a razão, restaria a fé. Durante anos não o entendi, quando o entendi chorei-o.

Recordo as suas mãos grandes, calosas, endurecidas na forja dos trabalhos do campo, rígidas de fortes, desajeitadas para os pequenos gestos. Na pele umas manchas, a brancura da reforma, o toque suave das suas carícias. Como esquecer ? E como elas tremiam, pelos anos, por temer magoar-me quando me pegava.

Nesses tempos a infância era um ritual, a vida corria a um outro ritmo. Atingida a menarca o dia virava cerimónia. E dava-se importância às gestas dos santos, às procissões, às festas, às celebrações de Natal, dos Reis, do Carnaval, da Páscoa. As estações do ano sucediam-se diferenciadas, inequívocas na indecifrável mudança dos dias. As festas marcavam a cadência da vida, assinalavam rupturas entre gerações, sem perda da reverência que as mais novas deviam à dignidade dos velhos. A vida não se confundia com um absurdo, e os jovens eram estóicos adultos.

Já não há bufarinheiros, ou carroças com toldos. Cal branca. Vendedores de gelados. Circo. Nem a vinda dos paisanos. Burricos, limpa-chaminés, aguadeiros, amola-tesouras, e já ninguém repara um guarda-chuva. Já não há originalidade, ingenuidade, integridade. Então, respeito e dor eram terna e respeitosamente ajudados ruas adiante. Funerais a pé davam tempo ao carpir. Já não há braçadeiras negras nos braços, nem escritos nas janelas, felizmente nem morrem já os anjinhos, como dantes.

O meu avô era um homem. Esculpia nas tabernas conversas sem fim. Largava tudo quando dava por mim. Já não há escultores. Nada é perpétuo, mas acreditamos que sim. Que ilusão, que engano. Que pena não ter comigo o meu avô, ele dir-vos-ia que somente a esperança é perpétua, e perene. Aprendi isso com ele. Não, ele nunca se enganou. Paz à sua alma.



quinta-feira, 14 de junho de 2018

000507 - LEÓNIDAS * … by Maria Luísa Baião


Em boa verdade a vida não me tem corrido bem ultimamente. Conjugações e astros não se perfilaram de molde a satisfazer-me os desejos e teimaram caprichosamente em toldar-me um horizonte que há muitos anos se me abrira deslumbrante. A sina, que plêiades de luzes celestes nos traçam, teimam ofuscar-me um caminho que visionara bem mais fácil de percorrer. Tolheram-me os desejos, é certo, mas não me frustraram nem caprichos nem ambições que nunca acolhi. Olhei os céus eivada de esperança, perscrutei o negro das noites em desespero, debalde o esforço. Quebrado o anseio tornei a casa, venceu-me o cansaço e o sono. O universo recusava desvendar-me segredos que já foram medos.
  
Formulo desde sempre um desejo a cada estrela que cai riscando a abóbada como fulminante, e fico deveras radiante quando, entre mim e o infinito, uma aliança se esboça, de que guardo segredo temendo que disso façam troça. Sempre que assim foi em torvelinho me sustive, esperançada, aguardando a hora. Imaginem só a impaciência, alimentada agora pela ciência, que nos modera ímpetos e resguarda receios, que nos marca encontros e recreios.
  
Um traço no céu é um desejo, imaginem então quantos posso pedir a Aladino num só beijo, se em vez de uma estrela caindo, uma miríade delas vir fugindo. Riscam os céus em flashes de encantar, em data marcada para que as possamos apanhar. Saíra à rua esperançosa, cara afogueada, tez viçosa, de braço estendido e regaço bem cosido não fosse alguma perder-se. O outro braço bem erguido, não calhasse Deus esquecer-me ou não me ver por distraído, o que dizem não fazer. Mas toda a gente esqueceu, se é que nem sequer lembrou, que essa bela constelação sempre sempre nos brindou, p’los dias de Novembro, com uma chuva de estrelas, cadentes, resplandecentes, que de trinta em trinta anos nos livra a vida de enganos.


E de Leão partes vi, de fugida e em contrastes com as nuvens que temi em mim descarregarem ira. Tal não aconteceu, mas o seu negro se fez breu e a constelação escondeu para meu grande pesar. E em vez das belas Leónidas, me vieram abraçar lágrimas pródigas, frias, tentando-me ao recolher, mas não a esperança esquecer. Volvi a casa quebrada, quebrada mas não vencida, e tal como um Rei de Esparta, Leónidas de seu nome, (não por acaso, talvez), defendi a minha Termópilas, não contra Xerxes da Pérsia, mas contra esta vida magana, que me torceu, não dobrou, e mais me fortaleceu.
  
É que há muitos anos atrás, tecendo ilusões e sonhos, bafejada fui num momento. Fugaz é certo, lamento, mas que nunca mais esqueci, porque foi abraçada a ti que nessa luz me embebi e sofri por ficar sóbria. Pirilampos e Leónidas nos cobriram como um manto, parecendo até que o céu, em pranto, se fechara sobre nós, eleitos, de tal modo que, ainda hoje o aroma de amores-perfeitos me lembra essa noite que eu invento em cada dia ou pensamento. O Céu tornado jardim florido, de luzes e luzinhas preenchido. O sangue nas veias me ferveu, e senti-me protegida por um véu.
  
Mas fosse agora esse dia e não mais recuaria ante tão ébria alegria. Ter vida em mim é noção de não perder ocasião, crer sempre que o amor não tarda. Não sou já a menina que se guarda, mas mulher que mesmo na bruma, busca precisamente a luz que ofusca e emana de um coração. É-me de todo indiferente, o modo a hora o lugar, não me custa sofregamente respirar e resguardar no pensamento a chama que me permita, até ao vento, consumir-te, saborear-te, devagar...  

* By Maria Luísa Baião cerca de Novembro/Dezembro de 2002 in Diário do Sul, rub. Kota De Mulher.


terça-feira, 5 de junho de 2018

506 - MARCA AMARELA OU NÓDOA AMARELA



Antes mesmo que se sentasse já aquela mancha me chamava a atenção como se fosse, sei lá, um pirilampo, ou a marca amarela do Tintim, há décadas que não me lembrava deste personagem e, repentinamente eis que a mancha, qual medalha ou amuleto me fixava nela. De imediato e sem motivo que a justificasse fixei nele a atenção. Real e aparentemente o motivo não existia mas, sem que eu mesmo o quisesse, os olhos lá voltavam a fixar-se na mancha, quase na lapela, indiciadora de coisa nenhuma mas captando a nossa atenção, p’lo menos a minha, tal qual alguma solenidade lhe estivesse associada.

O tipo aparecia aqui pelo café de vez em quando, nem era presença assídua, nem assídua nem relevante, ninguém sabia bem o que fazia, nem ele o dizia. Sabíamo-lo vagamente ligado à música, vagamente reformado do outro lado do equador, vagamente novo para pensionista, vagamente ligado a familiares algures no Alentejo profundo, tudo dum modo demasiado vago, muito vago mesmo, sem probidade alguma conhecida. Ele nada mais adiantava e todos lhe respeitavam o mistério de que se rodeava, razões teria para o manter, um homem tem direito à privacidade, ao passado, tanto quanto ao presente e ao futuro.

Um dia piquei-o, para ver se se descobria, disse-lhe que não passaria de um elemento da quinta coluna, um membro da quinta coluna, encaixou, não se desfez, nada perguntou, nada estranhou, e fiquei sem saber se aparara a golpada e a estava a disfarçar ou se seria somente desconhecimento, ignorância, nem toda a gente saberá o que é a quinta coluna, o que era, o que foi, e qual o significado da frase, do termo.



Uma vez aparecera vestido com um casaco muito colorido e, disse ele, cerzido com lã de alpaca, ao que eu prontamente reagi erguendo os braços, colocando-os na minha frente, assim como as mãos abertas, à guisa de protecção pois toda a gente sabe que a alpaca é pior que a cobra cuspideira, que a alpaca nos cospe para cima, toda a gente sabe, quer dizer, ele não sabia, ele que tinha vivido entre elas lá longe para baixo ou para cima do equador, mas o que nele me prendia a atenção era a mancha, aquela mancha que não teria mais que o tamanho de uma antiga moeda de dez escudos, aquela mancha que nos deixava pensando se derrame de chá preto, se o café que se entornara pela comissura da boca ao levá-lo à dita, e então era atraído pela boca do dito cujo tentando descortinar nela a mais pequena sequela de trombose, que como sabemos deixa torta a boca, mais ou menos torta, de qualquer modo a fechar mal, a entornar, daí a mancha, aquela surpreendente e inaudita mancha que mais parecia uma nódoa, não era, todas as nódoas mancham mas nem todas as manchas são nódoas.


Até que um dia voltou anunciando que iria, que partiria, que abalaria, e eu diria que já agora seria tão inesperada e motivo de pasmo a ida quanto o fora a chegada, já que chegara sem avisar, um dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um frequentador daquele café, não é nenhum café especial mas não é um café onde vamos e nos sentamos, é um café onde vivemos e convivemos, estaria pois de partida, quer dizer hoje estava mas amanhã já não estaria, e isso foi o que todos nós pensámos mas antes de desaparecer ainda viria a estar por três ou quatro vezes, não duas ou três mas três ou quatro e nada me admiraria se um dia voltasse a aparecer como da primeira vez aparecera embora toda a gente saiba que primeira vez há só uma, como mãe há só uma, e pátria há só uma, logo ele que chegara sem avisar e um dia nada e no outro lá estava ele, como se há muito fosse um frequentador daquele café, que nem é nenhum café especial.

Curioso como sou indaguei para onde, de volta ao equador ?

Não não, desta vez seria mais para cima, um tudo nada mais para cima, para a Guiana.

Isso é administração francesa não é ? Indaguei sem tirar os olhos da mancha, era impossível não dar por ela se frente aos nossos olhos, ao que ele respondeu nem saber e aí então é que eu torci o nariz e o cenho ao mesmo tempo e mesmo a sério, atão este tipo não sabia o que fosse a quinta coluna, agora não sabe o regime do país para onde diz ir, está a brincar ou a mentir, tem que estar, e se a confiança já era pouca passou a ser nenhuma, eu já andava pelos ajustes, a abalada dele acabava por ser um consolo, já que embora lhe tivesse emprestado um livro meu, fotocopiado, um poema, uma epopeia sobre a história épica do Alentejo, afim dele conhecer a terra para onde viera morar e acerca do qual se pronunciara com um curto juízo critico mas de muito mau gosto, ele que nunca aqui estivera, ele que desconhecia completamente o Alentejo, mas em frente que atrás vem gente, parvo fora eu que lho emprestara, e depois desse um romance, sim um romance, também ele sobre o Alentejo e sobre o qual se viria a pronunciar por escrito através dum e-mail enviado em cima da abalada e alertando para o facto de fazer parte, ele, de um tal MINDGROUP e que, acerca do romance e não querendo deixar de me dar a opinião final e que lhe solicitara quando do empréstimo, pois que a leitura que fizera, transversal, ora transversal o caralho, atirei-me ao ar, transversal digo eu quando quero dizer que não li, ou o que li não vale um caralho, escudando-me na leitura transversal, além disso tenho para mim que uma atitude transversal é tudo menos frontal, é uma fuga ao real, ao linear, ao longitudinal, ao horizontal, ao vertical, apaguei o e-mail com um clique do rato e ele que vá para o caralho, para a Guiana, para a cona da mana, dizer que fez uma leitura transversal é desconsiderar-me, é falta de correcção, de formação, de educação, mais uma que ele não sabe, apesar de, segundo dissera, vogar no meio do tal MINDGROUP, imagino a taça, o tanque, a piscina, cheia de merda até acima e onde todos se entreterão a pensar, a polir o pensamento, a limpar a alma e a aura, para depois largarem baboseiras daquelas, um tipo está destinado a cada uma … Nem o banho de merda até ao pescoço lhe tirou a mancha, a nódoa, o homem é uma nódoa, por acaso não tem aparecido, tem sido um sossego. 

Quem te manda sapateiro tocar rabecão ? Eu é que nunca deveria ter pedido opinião a quem não estivesse avalizado para a dar. Mea culpa…

Mas se não é nele que fixo os olhos, fixo-os em cada um que se senta à minha frente no café e se bem que olhe fixamente e conclua logicamente não haver ali mancha nenhuma, não me passa este hábito entretanto adquirido, esta pancada, esta tara, isto já é mania que apanhei porra, nem toda a gente anda por aí ostentando uma mancha na lapela, e quem diz mancha diz nódoa, ou não será ?