domingo, 24 de junho de 2018

510 - OS REFUGIADOS, ESSES CONTRAPESOS …

Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Tudo isto me faz lembrar Angola em 75, o Rossio em 76, o cais de Alcântara em 77. Mas estávamos em 2003 e ele devia ter aparecido por volta do meio-dia, o sol já zurzia a pique fazendo daquele lugar e avenidas em redor um verdadeiro braseiro como nem no Alentejo eu alguma vez sofrera. 

        Vinha afobado disse um brasileiro, vinha afogueado, na verdade parecia assustado e talvez estivesse desesperado. Galgou de uma só vez os três degraus frente à entradado Hotel Palestina, guturalmente terá pedido escusa, licença, desculpa ou perdão, e nem só perdeu a embalagem que trazia como afastou todos com os braços, qual nadador olímpico de mariposa, deixando ondulando um mar de protestos e murmúrios em cuja ondulação entendi vogarem sede e fome.

 Desapareceu com a mesma velocidade com que surgira arrastando atrás de si um pequeno grupo de gente preocupada, entre as quais eu, vindo a deparar com ele nas casas de banho, torso torcido, boca sedenta aparando o fio de água duma torneira como se dela pingasse a salvação. Dessedentado foi envolvido pela turba, consolando-o e ouvindo-o com atenção, tendo-o conduzido às cozinhas para alguém lhe mitigar a fome e o desespero.

Foi este o primeiro a ser visto e no qual reparei, com maior ou menor aparato haveria, nos dias seguintes, de me aperceber de outras idênticas presenças e desesperos. Este primeiro caso, calças de camuflado duras de sujas, o cinto nitidamente no último furo, uma camisola de alças anteriormente branca e agora castanha de suja, uma barba de muitos dias por escanhoar, olhos saltando das órbitas, era claramente a imagem da desesperança.

Foto roubada da net

Fazia parte do exército de 800 mil homens de Saddam Hussein e que o comando da coligação desmobilizara após vencida a guerra contra o Iraque em 2003. Repentinamente quase um milhão de homens vivendo do pré para se sustentarem e às suas famílias viram-se despojados desse pequeno rendimento e sem esperanças de verem o futuro alterado a médio ou a longo prazo, isto é encontrarem outro modo honrado de subsistirem, eles e os seus.

Centro do mundo por aqueles dias o hall, o bar, o restaurante, as escadarias exteriores de acesso e o jardim rodeando o Hotel Palestina andavam nas bocas do mundo abrindo noticiários. Toda aquela área era ponto de encontro dos habitantes da cidade e frequentado por gente de mais cem ou duzentos países diferentes deixando no ar uma babel de línguas, aquele soldado desmobilizado caíra aqui, ou ali, lá, como um insecto numa teia de aranha, por puro acaso, desprevenido, cegado pela fome e pela sede. Mais calmo, alimentado e apoiado pela turba de curiosos que o tomara a seu cuidado seria a vez dele a alimentar a ela, matando-lhe a curiosidade, coisa que a turba agradeceu com atenção, atenção que retribuiu ao atirar para o lago de cisnes em que a cena se desenrolara o que ia sabendo, provocando uma miríade de círculos concêntricos que se espalhavam até atingirem as margens da mole babélica habitando o Palestina.

Foto roubada da net

Assim chegaram até mim os ressaltos desse tsunami, fiapos da história desse homem cujo desespero até hoje não esqueci. Ainda eu não regressara a este nosso torrãozinho desorganizado à beira-mar plantado e já se esboçava em Bagdad e noutras cidades iraquianas a organização duma milícia pronta a combater o ocupante, um parêntesis aqui para vos esclarecer não terem os soldados da coligação sido vistos como libertadores, ao contrário do que nos fizeram crer e fora propalado por toda a nossa comunicação social, a mesma que sempre escondeu as imagens das centenas de cadáveres que essa libertação largava pelo caminho, caminho a que pomposamente baptizaram de “Operação Choque e Terror”, portanto sem rodeios, sem pejo, sem qualquer tipo de contenção ou pudor a “sua libertação” assumia, sem o assumir, o terror avassalador que os conduzira ao caminho da vitória.

Ocupante, usurpador, invasor, eram estes os pomposos e simpáticos epítetos com que os membros da coligação eram apodados e em redor dos quais se organizaram de modo quase mágico e espontâneo os iraquianos. Qual lamparina de Aladino, todos os miseráveis desmobilizados pela coligação vencedora ora condenados a vidas de pedintes, de pobreza, de gente sem esperança ou desesperançada se encontraram repentinamente unidos em redor dum móbil de coesão. Foi fácil para mim adivinhar que dessa desesperança nasceria contudo uma força que alimentaria uma nova esperança e, um pouco por toda a parte, por todas as cidades do Iraque vieram efectivamente a surgir focos de resistência, logo apelidados pelos “do nosso lado” de insurgentes, focos que progressiva e paulatinamente se transformaram em exércitos que viriam a gizar as raízes do ISIS e do DAESH e de tantos outros que há pouco tempo pululavam pelas arábias deixando um rasto de sangue, morte e destruição.

Foto roubada da net

Do confronto entre libertadores, ou invasores, ocupantes, usurpadores e a arraia-miúda ou a “canalha” dos insurgentes surgiria a guerra ou as guerras que têm assolado a região, com o consequente rasto de destruição, mortos e refugiados. Os refugiados que hoje hesitamos receber, ou recebemos contrariados, são o refugo dessa destruição que causámos, causámos nós, ocidentais, europeus e americanos bem instalados, bem empregados e por comodismo esquecidos que demos cabo da vida de países e cidades, demos cabo da vida dessa gente que atravessando com risco o Mediterrâneo busca encontrar em nós a esperança que nós mesmos lhes roubámos.

Os irresponsáveis incompetentes de então são os responsáveis que ninguém se atreve hoje a responsabilizar. Tivesse a coligação mantido sob controle o exército que desmobilizou e toda esta desgraça teria sido evitada,* mas quem pensa em consequências ? Em reflexos ? Não teria sido difícil, mais complicado é adivinhar a movimentação de peças numa partida de Xadrez, de Damas, de Alquerque ou de Qirkat

 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
 Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.

Refugiados oriundos do Mediterrâneo. Foto da net.

* Quatro ou cinco anos depois a coligação tentou repor normalidade na situação que criara, mas era demasiado tarde, a asneira estava feita, era já impossível travá-la.