Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
Tudo isto me faz lembrar Angola em 75, o Rossio em 76, o cais de Alcântara em 77. Mas estávamos em 2003 e ele devia
ter aparecido por volta do meio-dia, o sol já zurzia a pique fazendo
daquele lugar e avenidas em redor um verdadeiro braseiro como nem no Alentejo
eu alguma vez sofrera.
Vinha afobado disse um brasileiro, vinha afogueado, na verdade parecia assustado e talvez estivesse desesperado. Galgou de uma só vez os três degraus frente à entradado Hotel Palestina, guturalmente terá pedido escusa, licença, desculpa ou perdão, e nem só perdeu a embalagem que trazia como afastou todos com os braços, qual nadador olímpico de mariposa, deixando ondulando um mar de protestos e murmúrios em cuja ondulação entendi vogarem sede e fome.
Vinha afobado disse um brasileiro, vinha afogueado, na verdade parecia assustado e talvez estivesse desesperado. Galgou de uma só vez os três degraus frente à entradado Hotel Palestina, guturalmente terá pedido escusa, licença, desculpa ou perdão, e nem só perdeu a embalagem que trazia como afastou todos com os braços, qual nadador olímpico de mariposa, deixando ondulando um mar de protestos e murmúrios em cuja ondulação entendi vogarem sede e fome.
Desapareceu
com a mesma velocidade com que surgira arrastando atrás de si um pequeno grupo
de gente preocupada, entre as quais eu, vindo a deparar com ele nas casas de
banho, torso torcido, boca sedenta aparando o fio de água duma torneira como se
dela pingasse a salvação. Dessedentado foi envolvido pela turba, consolando-o e
ouvindo-o com atenção, tendo-o conduzido às cozinhas para alguém lhe mitigar a
fome e o desespero.
Foi
este o primeiro a ser visto e no qual reparei, com maior ou menor aparato
haveria, nos dias seguintes, de me aperceber de outras idênticas presenças e desesperos.
Este primeiro caso, calças de camuflado duras de sujas, o cinto nitidamente no
último furo, uma camisola de alças anteriormente branca e agora castanha de
suja, uma barba de muitos dias por escanhoar, olhos saltando das órbitas, era claramente
a imagem da desesperança.
Foto roubada da net
Fazia
parte do exército de 800 mil homens de Saddam Hussein e que o comando da
coligação desmobilizara após vencida a guerra contra o Iraque em 2003. Repentinamente
quase um milhão de homens vivendo do pré para se sustentarem e às suas famílias
viram-se despojados desse pequeno rendimento e sem esperanças de verem o futuro
alterado a médio ou a longo prazo, isto é encontrarem outro modo honrado de
subsistirem, eles e os seus.
Centro
do mundo por aqueles dias o hall, o bar, o restaurante, as escadarias exteriores
de acesso e o jardim rodeando o Hotel Palestina andavam nas bocas do mundo abrindo
noticiários. Toda aquela área era ponto de encontro dos habitantes da cidade e
frequentado por gente de mais cem ou duzentos países diferentes deixando no ar
uma babel de línguas, aquele soldado desmobilizado caíra aqui, ou ali, lá, como
um insecto numa teia de aranha, por puro acaso, desprevenido, cegado pela fome
e pela sede. Mais calmo, alimentado e apoiado pela turba de curiosos que o
tomara a seu cuidado seria a vez dele a alimentar a ela, matando-lhe a
curiosidade, coisa que a turba agradeceu com atenção, atenção que retribuiu ao
atirar para o lago de cisnes em que a cena se desenrolara o que ia sabendo,
provocando uma miríade de círculos concêntricos que se espalhavam até atingirem
as margens da mole babélica habitando o Palestina.
Foto roubada da net
Assim
chegaram até mim os ressaltos desse tsunami,
fiapos da história desse homem cujo desespero até hoje não esqueci. Ainda eu
não regressara a este nosso torrãozinho desorganizado à beira-mar plantado e já
se esboçava em Bagdad e noutras cidades iraquianas a organização duma milícia
pronta a combater o ocupante, um parêntesis aqui para vos esclarecer não terem
os soldados da coligação sido vistos como libertadores, ao contrário do que nos
fizeram crer e fora propalado por toda a nossa comunicação social, a mesma que
sempre escondeu as imagens das centenas de cadáveres que essa libertação largava
pelo caminho, caminho a que pomposamente baptizaram de “Operação Choque e
Terror”, portanto sem rodeios, sem pejo, sem qualquer tipo de contenção ou pudor
a “sua libertação” assumia, sem o
assumir, o terror avassalador que os conduzira ao caminho da vitória.
Ocupante,
usurpador, invasor, eram estes os pomposos e simpáticos epítetos com que os
membros da coligação eram apodados e em redor dos quais se organizaram de modo
quase mágico e espontâneo os iraquianos. Qual lamparina de Aladino, todos os
miseráveis desmobilizados pela coligação vencedora ora condenados a vidas de
pedintes, de pobreza, de gente sem esperança ou desesperançada se encontraram repentinamente
unidos em redor dum móbil de coesão. Foi fácil para mim adivinhar que dessa desesperança nasceria contudo uma
força que alimentaria uma nova esperança e, um pouco por toda a parte, por
todas as cidades do Iraque vieram efectivamente a surgir focos de resistência, logo apelidados pelos
“do nosso lado” de insurgentes, focos
que progressiva e paulatinamente se transformaram em exércitos que viriam a
gizar as raízes do ISIS e do DAESH e de tantos outros que há pouco tempo
pululavam pelas arábias deixando um rasto de sangue, morte e destruição.
Foto roubada da net
Do
confronto entre libertadores, ou invasores, ocupantes, usurpadores e a arraia-miúda
ou a “canalha” dos insurgentes
surgiria a guerra ou as guerras que têm assolado a região, com o consequente
rasto de destruição, mortos e refugiados. Os refugiados que hoje hesitamos
receber, ou recebemos contrariados, são o refugo dessa destruição que causámos,
causámos nós, ocidentais, europeus e americanos bem instalados, bem empregados
e por comodismo esquecidos que demos cabo da vida de países e cidades, demos
cabo da vida dessa gente que atravessando com risco o Mediterrâneo busca
encontrar em nós a esperança que nós mesmos lhes roubámos.
Os
irresponsáveis incompetentes de então são os responsáveis que ninguém se atreve
hoje a responsabilizar. Tivesse a coligação mantido sob controle o exército que
desmobilizou e toda esta desgraça teria sido evitada,* mas quem pensa em
consequências ? Em reflexos ? Não teria sido difícil, mais complicado é
adivinhar a movimentação de peças numa partida de Xadrez, de Damas, de Alquerque ou de Qirkat.
Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
Hall de entrada, Hotel Palestina - Bagdad - Foto da da net.
Refugiados oriundos do Mediterrâneo. Foto da net.
* Quatro ou cinco anos depois a coligação tentou repor normalidade na situação que criara, mas era demasiado tarde, a asneira estava feita, era já impossível travá-la.